PERIFERIA GEOGRÁFICA
NO IÊMEN, A GUERRA ESQUECIDA
Se o país tivesse 100 habitantes, 80 deles precisariam de assistência humanitária para sobreviver. Mas são 29 milhões.
Por Sérgio de Toledo
Editado por Arthur Almeida, Eduarda Motta e Elisa Romera
No Brasil, o estandarte com listras horizontais em vermelho, branco e preto — necessariamente nessa ordem — é sempre hasteado às quartas e aos finais de semana — dias nos quais acontecem as principais competições esportivas do país.
É corriqueiro que, em grupos de WhatsApp, o emoji da bandeira do Iêmen — nação que ocupa a extremidade sudoeste da Península Arábica — seja amplamente utilizado para referenciar um popular clube de futebol da capital paulista que também encontra na sequência tricolor as suas cores.
Aludindo o São Paulo Futebol Clube, os torcedores não fazem ideia de que, na verdade, comemoram gols e títulos se valendo da bandeira do país que atravessa a mais grave crise humanitária do mundo desde 2014.
DOIS PONTOS CARDEAIS, DUAS HISTÓRIAS
No desenrolar da construção histórica do Iêmen, a divisão quase sempre foi a regra. O fracionamento do povo iemenita em duas partes contrárias e beligerantes não é exclusividade da guerra civil que explodiu no país em março de 2015.
O precedente mais recente está na segunda metade do século passado. Durante quase três décadas, o Iêmen se desmembrou em Iêmen do Norte e Iêmen do Sul. A unificação se tornaria realidade somente quando o século XXI já batia à porta, nos anos 1990.
Com o ideal de nação forte e, enfim, engajada no mesmo propósito, os fundadores da República do Iêmen — república federativa que adotou o islamismo como religião de Estado — confeccionaram sua nova bandeira embasados em seus sonhos e anseios por um futuro promissor.
Ao voltar os olhos para trás, os iemenitas pensaram em incluir o preto em sua flâmula — com inúmeras guerras civis e conflitos sangrentos contra o governo monárquico no preâmbulo, a nova república julgou que o seu passado fora marcado pela ausência completa de luz. Havia muito com o que aprender. Não havia nada para repetir.
Ainda em retrospectiva, os iemenitas se recordaram dos seus que pagaram o preço amargo da vida para que a República do Iêmen fosse possível. Em memória desses, o vermelho.
O futuro, por outro lado, era o sopro de esperança dos iemenitas. Os ventos que pairavam sobre a nação que se formava pareciam frescos, suaves e, sobretudo, renovados. O branco da bandeira representou a expectativa por um futuro brilhante.
O tom de otimismo geral também era espelhado pelo hino nacional da República do Iêmen, batizado ainda nos anos 1950 de “República Unida” (do original: الجمهورية).
A realidade, contudo, se impôs rigorosa. O sonho do Iêmen forte e com um povo engajado no mesmo propósito não se concretizou. O estandarte que os iemenitas da nova república conheceram era coberto por caligem.
O futuro brilhante do Iêmen escureceu. O amanhã iemenita se apresentou como um circuito cruel onde o passado sempre se repete em voltas circulares.
OS REIS, AS POTÊNCIAS E O DITADOR
O esboço do que seria o Iêmen contemporâneo surgiu no Reino Mutavaquilita do Iêmen, que se organizou depois do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, em territórios que pertenciam ao colapsado Império Otomano.
O reinado ficou marcado por repetidas tentativas de golpe contra a família Hamidadine, que constituía uma déspota monarquia hereditária no Estado iemenita.
Para além, a demografia montanhosa tornava o Iêmen um território de difícil controle para os monarcas, dada a dificuldade de deslocamento e, por consequência, a inibição da presença do governo em todas as regiões.
Por fim, em 1962, forças revolucionárias depuseram a monarquia e o Iêmen se fracionou nos já citados dois Estados — Iêmen do Norte e Iêmen do Sul.
Em plena Guerra Fria, no irmão do norte, prevaleceu a influência do Bloco Capitalista — e, de modo muito particular, da Arábia Saudita e do Reino Unido.
Apesar disso, o Iêmen do Norte (ou República Árabe do Iêmen) viveu em situação de contínua guerra civil entre governistas e remanescentes da monarquia do Reino do Iêmen.
No ano de 1978, a República Árabe do Iêmen alçou ao poder o major Ali Abdullah Saleh, com a promessa de estabilizar o país.
Já o irmão do sul, por sua vez, seguiu a cartilha da Internacional Socialista. Controlado pelo Partido Comunista Iemenita durante toda sua existência, o Iêmen do Sul (ou República Democrática Popular do Iêmen) se alinhou ao Bloco Socialista, estreitando relações com China, Cuba e União Soviética.
Em 22 de maio de 1990, as duas partes chegaram, enfim, a um acordo de reunificação. A constituição da recém-fundada República do Iêmen — resultado da união entre Iêmen do Norte e Iêmen do Sul — previa eleições periódicas e livres, um sistema político multipartidário, o direito à propriedade privada e a proteção aos direitos e liberdades fundamentais.
O novo Iêmen herdou como Chefe de Estado Abdullah Saleh, ex-presidente do Iêmen do Norte, eleito com 77,2% dos votos. À época, os iemenitas não sabiam — mas seria o último processo eleitoral pelas próximas três décadas.
FINS E MEIOS QUE NÃO SE JUSTIFICAM
Desde que assumiu o cargo mais alto do Iêmen, Saleh se transformou em um especialista em se retroalimentar no poder — foram 33 anos ininterruptos, em um governo que era, na prática, uma ditadura cleptocrata.
Diante de uma democracia estéril e embalados pelos eventos da Primavera Árabe, em fevereiro de 2011, os jovens iemenitas foram às ruas. A economia inoperante e as altas taxas de desemprego causaram uma verdadeira ebulição social no país que apresentava os indicadores de desenvolvimento mais baixos do Oriente Médio.
Sentindo a pressão dos protestos — que se tornavam cada vez mais violentos — Saleh assinou sua carta de renúncia em novembro daquele ano, cedendo a cadeira presidencial ao vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi — ratificado em um processo eleitoral de candidato único.
O evento entraria para os livros de história como “Revolução Iemenita”. A utopia da Primavera Árabe, contudo, se converteria em pesadelo.
Fiel à corrente sunita do islamismo, o presidente Al-Hadi passou a reprimir com mão de ferro a minoria Houthi do Iêmen — seguidores da vertente xiita. Como resposta, os Houthis se mobilizaram como guerrilha armada.
O espectro do ex-presidente também continuou presente no cotidiano iemenita — Saleh passou a atuar lado a lado dos rebeldes, visando se catapultar de volta ao poder. Ao que parece, 33 anos não foram suficientes para saciar o ditador.
Não obstante, se bem era verdade que o Iêmen de Abdullah Saleh era uma ditadura, também era fato que o ditador, bem ou mal, conseguia equilibrar os conflitos internos do país ao canalizar o poder em uma figura conhecida e influente entre os cidadãos iemenitas.
O choque entre sunitas e xiitas fez com que o Iêmen caísse de bandeja no tabuleiro de xadrez da Arábia Saudita e do Irã — uma das características mais acentuadas do mundo árabe moderno.
Como também ocorre na Síria, por exemplo, os sauditas — da nação árabe mais influente de maioria sunita — , ao lado dos aliados ocidentais, passaram a sustentar o governo estabelecido, enquanto os iranianos — da nação árabe mais influente de maioria xiita — passaram a financiar os insurgentes Houthis.
Em 2014, os rebeldes tomaram a capital do Iêmen — Saná — e, no ano seguinte, anunciaram a formação de um governo paralelo. Comendo pelas beiradas, o Estado Islâmico e a Al-Qaeda também se aproveitavam da instabilidade geral para controlar zonas estratégicas do território iemenita.
O Iêmen estava, oficialmente, em mais uma guerra civil — que dura até os dias atuais e não tem data para terminar.
Na esfera econômica, cercados de embargos e bloqueios marítimos, aéreos e terrestres — do Oriente ao Ocidente — tiram do Iêmen o acesso a alimentos e recursos básicos. Como não vivem em um país com economia autossuficiente, a população iemenita padece, para além da guerra, diante da fome e da escassez de medicamentos.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), 80% da população do Iêmen sobrevive abaixo da linha da pobreza — enquanto 2 em cada 3 se encontram sufocados pela pobreza extrema.
O saneamento básico também se transformou em um garrote no Iêmen. Com o sistema de saúde em retalhos, os iemenitas convivem com sucessivas epidemias de cólera desde 2016.
Mais à frente, desde que o conflito entre governo e rebeldes eclodiu, 233 mil civis iemenitas tiveram suas vidas ceifadas — direta ou indiretamente — pela guerra — dentre eles, 10 mil crianças.
No Iêmen, morrer dá medo. Mas viver dá medo também.
O ABSURDO DA GUERRA DAS GUERRAS
Tem sido frequente que usuários nas redes sociais — em especial, no Twitter — contrastem a cobertura midiática concedida à Guerra da Ucrânia (2022–) e à Guerra do Iêmen (2014–).
É mais do que justa a argumentação que aponta que, somente por se tratar de uma nação europeia, celebridades, pessoas públicas e autoridades de todo o mundo se reúnem para oferecer suporte à Ucrânia e aos ucranianos. O mesmo definitivamente não acontece com países fora do eixo ocidental — nesses é carimbado um selo indiferente de “situação sem solução”.
Não por coincidência, a Guerra do Iêmen é apelidada de “guerra esquecida” — em razão justamente da baixa presença do conflito civil iemenita nos noticiários dos veículos de comunicação, em particular, do Ocidente.
Algumas alegações, todavia, cometem o erro crasso de colocar a Guerra da Ucrânia em oposição à Guerra do Iêmen — como se o leitor tivesse que escolher entre uma e outra. Como se pudéssemos, de fato, colocar guerras em balanças para descobrir quais merecem mais a nossa indignação.
Nas guerras, não existem espaços para criar métricas. Guerras são catástrofes. Todas elas.