REPORTAGEM
O ANTAGONISMO DE RICARDO SALLES
Entenda a atuação do ministro do Meio Ambiente e suas contribuições para a degradação ambiental.
Por Guilherme Matos
Editado por Elisa Romera e João Vitor Custódio
Se tem algo que os dramaturgos brasileiros sabem fazer muito bem é criar vilões. Os escritores das novelas exibidas em horário nobre conseguem captar personagens comuns do cotidiano brasileiro e, a cada episódio, dar mais motivos para os espectadores odiarem o antagonista. A personagem Carminha, interpretada pela atriz Adriana Esteves na novela Avenida Brasil, é um bom exemplo dessa construção de personagem.
Para criar um vilão forte, que prenda os espectadores, os escritores precisam dar uma explicação aceitável para as apáticas ações do personagem. Dinheiro? Ignorância? E depois de centenas de episódios, os escritores precisam oferecer uma “catarse’’, geralmente no último episódio, quando o vilão se dá mal.
Desde que assumiu a pasta, o Ministro do Meio Ambiente trabalha para o avanço da degradação ambiental e, consequentemente, do desequilíbrio climático. Suas ações visam desmantelar os órgãos de fiscalização ambiental para garantir a impunidade de criminosos; investigações indicam que Ricardo Salles pode ter lucrado com o tráfico de madeira ilegal.
A política brasileira se tornou uma novela com muitos vilões e poucos mocinhos. A cada dia, a realidade nos noticiários é mais surpreendente e mais desoladora do que qualquer escritor poderia criar.Hoje, vamos tentar entender o projeto de destruição ambiental de Jair Bolsonaro (sem partido) e seu fiel ministro Ricardo Salles: o principal antagonista da novela política brasileira, nesse núcleo.
REVELANDO O ”PLANO” E PASSANDO A BOIADA
Dia 22 de Abril de 2020, a pandemia estava apenas começando no Brasil, sabia-se pouco sobre o Coronavírus, mas as projeções já eram aterrorizantes, principalmente se levadas em conta as posturas do Governo em relação ao enfrentamento da doença.
Nesse dia, o Governo Federal se reuniu em uma reunião ministerial para discutir os rumos do país. Posteriormente, um conflito entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro, fez com que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello determinasse a divulgação do vídeo desta reunião.
Os absurdos ditos na reunião iam desde interferência na Polícia Federal (PF) até ofensas e pedidos de prisão à ministros do STF, e um dos que mais se destacaram foi a fala de Ricardo Salles, em que ele aconselhaos outros ministros a aproveitarem a oportunidade trazida pelo coronavírus:
“Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. […] Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”.
Essa situação se assemelha a um velho clichê de gibi. O vilão decide revelar seu plano inteiro para algum cativo, dando tempo o suficiente para o herói chegar, salvar o prisioneiro e impedir que o opositor concretize seus anseios.
No entanto, na vida real, não é bem assim que funciona. Ricardo Salles já vinha “passando a boiada” desde o início de sua gestão em Janeiro de 2019.Mesmo depois de compartilhar suas intenções com o Brasil inteiro, não desacelerou o ritmo das “baciadas de simplificações”.
O ministro foi para cima dos biomas brasileiros um a um e, na “canetada”, conseguiu desmantelar os órgãos de fiscalização ambiental. E qual é a intenção de Salles ao dificultar a fiscalização?
A ativista Neidinha Suruí, foi a primeira mulher a trabalhar com indígenas isolados e, a datar de 1992, lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. É uma das ativistas mais ameaçadas do país e, desde o início de sua carreira, enfrenta madeireiros, garimpeiros e grileiros.
Em entrevista à Revista Torta, Neidinha afirmou que os povos indígenas já vêm sendo prejudicados há muito tempo. A diferença, agora, é que estão “legalizando o ilegal”. A ativista citou a diminuição da reserva extrativista de Jaci-Paraná e do parque de Guajará, ambos em Rondônia (RO).
As terras, que pertenciam à União, foram invadidas, desmatadas e utilizadas para criação de gado. De acordo com a entrevistada, o alto número indica que a ação partiu de grandes pecuaristas. O passo seguinte foi a aprovação de um Projeto de Lei (PL) na Assembleia Legislativa que regularizou a terra para os grileiros.
“A diferença hoje está muito nisso,, a justiça está banalizada. O crime passou a ser a ordem do dia”.
COMO SALLES BANALIZOU OS CRIMES AMBIENTAIS E GARANTIU A IMPUNIDADE
A impunidade é a principal aposta do ministro para garantir que o agronegócio e os garimpos avancem mais rapidamente e mais destrutivamente sobre a natureza brasileira. Em Abril de 2019, Salles e Bolsonaro assinaram um decreto impondo as “audiências de conciliação” entre infratores e fiscais, sempre que uma multa ambiental for aplicada.
Na prática, as audiências criaram um empecilho para a aplicação de multas, que já tinham uma alta taxa de inadimplência. Desde quando o decreto n°9760/2019 entrou em vigor, só 1,7% das 14,9 mil multas aplicadas passaram pela audiência de conciliação.No final de abril de 2020, o ministro também exonerou o coordenador-geral da Fiscalização Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o coordenador de operações de fiscalização e o diretor de Proteção Ambiental. As demissões ocorreram logo após o órgão realizar operações de sucesso contra garimpeiros ilegais em terras indígenas no Pará (PA).
As operações ocorreram entre janeiro e abril de 2020 e resultaram em mais de 100 equipamentos de garimpeiros destruídos. A legislação ambiental permite que o Ibama destrua maquinário utilizado por extrativistas ilegais, mas o presidente se comprometeu com um grupo a retirar essa atribuição do órgão.
Além disso, o ministro Ricardo Salles também intercedeu pessoalmente em prol de madeireiros ilegais. A operação Handroanthus da PF realizou a maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil: foram 213 mil m³. A investigação apontou desmatamento, grilagem de terra, fraude em escrituras e exploração em áreas de preservação permanente.
A extensa lista de crimes, no entanto, não impediu Ricardo de ir até o local e realizar uma “pseudoperícia”. Segundo o ex-superintendente da Polícia Federal do Amazonas (AM), o delegado Alexandre Saraiva — aquele que enviou ao STF uma notícia-crime acusando o ministro -, Salles chegou ao local, olhou duas toras e disse que “estava tudo certinho”. Saraiva foi exonerado poucos dias depois de apresentar o documento.
Essas são só algumas das ações do ministro que contribuíram para a impunidade dos envolvidos. Outros decretos e as constantes falas públicas favorecendo os criminosos em detrimento dos órgãos de fiscalização, demonstram que o Ministério do Meio Ambiente agora advoga em favor dos extrativistas ilegais e não mais pelo equilíbrio ambiental.
INDÍGENAS E RIBEIRINHOS
O avanço da degradação ambiental e da impunidade não resguarda suas consequências para o futuro. Atualmente, milhares de famílias que residem na Amazônia já enfrentam desastres. De acordo com Neidinha Suruí, o desmatamento destrói toda a biodiversidade que era utilizada para a subsistência dos indígenas e ribeirinhos da área.
“O empobrecimento da floresta causa uma série de danos tanto na segurança alimentar quanto na biodiversidade local. ‘Tu’ atinge animais ameaçados de extinção, causa um prejuízo enorme não só a ribeirinhos e indígenas, mas também à própria humanidade. […] A Floresta Amazônica é pouco estudada e podemos estar destruindo a cura de alguma doença no futuro”.
A ativista também citou o desequilíbrio climático. Ela, que é da região, afirmou que já percebe diferenças nos períodos de chuva e citou o exemplo de uma fruta chamada “bocar”, que deixou de nascer na safra em que costumava.
Além dos madeireiros, os garimpeiros também avançaram muito desde o início do Governo Bolsonaro. Segundo Neidinha, o avanço é “trágico”: os garimpeiros aliciam alguns indígenas e “levam tudo o que é de ruim para dentro de uma terra indígena”. Ela cita o alcoolismo, as drogas, a prostituição e as doenças, o quee gera problemas sociais graves.
“A meia dúzia de indígenas que foi aliciada ganha as migalhas e acha que está ganhando muito. O restante fica na miséria”.
Devido à impunidade, os criminosos se sentem mais à vontade para avançar em seus desígnios destrutivos. Os garimpeiros, além de disparar contra indígenas desarmados, também têm se envolvido em conflitos armados contra a polícia.
Enquanto isso, os ativistas se sentem mais vulneráveis. Neidinha afirma que procura fazer tudo estritamente dentro da lei, porque tem certeza absoluta que pode ser presa, mesmo que injustamente.
“Se eu sair de motocicleta sem capacete eles vão me prender. Vão achar pêlo em ovo” — Neidinha afirma se referindo à inauguração da ponte do Abunã, onde o Presidente Jair Bolsonaro andou de moto sem capacete. Segundo ela, essa cena demonstra o descaso com a lei, pois nem mesmo a mais alta autoridade do país se preocupa com a justiça ou dá exemplo.
OPERAÇÃO AKUANDUBA
No dia 19 de maio deste ano, a Polícia Federal deflagrou a Operação Akuanduba, para apurar crimes da administração de Salles. As acusações são de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando. O ministro teria atuado para atender pedidos de empresas que buscavam facilitar a exportação de madeira ilegal brasileira.
O ministro do STF Alexandre de Moraes autorizou a operação e determinou a quebra do sigilo fiscal e bancário dos 23 investigados, entre eles, o de Ricardo Salles. A justificativa são relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) que indicaram “operações suspeitas” envolvendo o escritório de advocacia cujo o acusado é sócio.
Os relatórios indicaram uma “movimentação extremamente atípica” de mais R$14 milhões no período de 2012 a 2020. A polícia ainda está apurando, no entanto, a investigação já oferece uma pista sobre as motivações do ministro.
O FINAL DA NOVELA
A Amazônia tem sido muito prejudicada pela gestão de Salles, porém ele também tomou medidas que prejudicaram outros biomas brasileiros: a Mata Atlântica já foi alvo de uma tentativa de redução na proteção.
Os manguezais, protegidos desde 1577 por um regimento da Coroa Portuguesa, também tornaram-se alvos de Salles; o Pantanal, por sua vez, perdeu mais de 14 milhões de hectares em 2020 devido às queimadas provocadas por fazendeiros.
Entretanto a novela “Política Brasileira”, escrita por Jair Bolsonaro, ainda não chegou ao fim. A trama “Avenida Brasil”, apesar de todas as vezes que “Carminha” triunfou, terminou com uma catarse para o público: a vilã foi presa pelos crimes que cometeu.