O Coliseu pós-moderno: facetas violentas dos Estados

Revista Torta
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7 min readApr 26, 2019

As singelas experiências contemporâneas de destruição humana e a violência como forma de governo na pós-modernidade

Por Giovana Silvestri

Editado por Arthur Almeida, Giovana Silvestri e Rafael Junker

Foto por Vinicios Rosa

A banalização da violência configura-se em micro e macro espaços dentro da sociedade. Com o molde das facetas violentas dos governos vigentes, a pós-modernidade se transformou em um grande Coliseu que, com o espetáculo do horror, renova cotidianamente seu “roteiro”. Assim, mantém seu público com os novos “episódios” de uma “série televisiva, digital e jornalística” que não é fictícia, e sim, política e governamental.

A violência, como comentada pela professora doutora Dulce A. Adorno-Silva, se expande como se fosse uma prática comum, assim, se transforma em uma ocorrência cotidiana e repetitiva. Trocando em miúdos, um fato espantoso que causa inquietação é visto como “só mais um fato espantoso que causa inquietação” com a ajuda da tecnologia.

“Isso ocorre porque a banalização da violência se insere no avanço da tecnologia; a sociedade se modifica e modifica o ser humano que a constitui. As informações veiculadas e repetidas todos os dias, em vários horários, pelas emissoras de televisão tornam a violência comum, como também fazem os games.”, comenta a professora. Além desse panorama, a violência existe em micro espaços que são a base da pirâmide para a violência do “Coliseu pós-moderno”.

MICRO-ESPAÇOS e MICRO-VIOLÊNCIAS

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Cremonezi

Como comentado no artigo “A banalização da violência: efeitos sobre o psiquismo”, de Maria Laurinda Ribeiro Souza, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, a violência pode ser percebida nos singelos e “pequenos” atos e desafetos que, ao vivenciados perto das manchetes aterrorizantes dos jornais, passam despercebidos pela sociedade que os alimenta.

O preconceito racial dos filmes hollywoodianos ao priorizarem atores brancos; a discriminação sexual no carnaval com a comunidade LGBT, como no tweet de Jair Bolsonaro; o machismo no mercado de trabalho ao atribuir salários menores às mulheres; a visão social de demérito com algumas profissões, como o trabalho doméstico ou a coleta de lixo; o desprezo fraterno entre pais e filhos; a ausência de diálogo numa relação amorosa; a competição e a rivalidade profissional; a negligência de cidadãos, que não cobram os governantes, e o descaso dos governantes, que não prezam pelos cidadãos.

Foto por Vinicios Rosa | Modelos Gustavo Cremonezi e Maria Eduarda Tarda

A manifestação da violências nos micro-espaços forma a destruição da humanidade que, aos poucos, acarreta na destruição humana ou na manifestação das violências nos macro-espaços. São as “micro-violências” que, enraizadas na sociedade e, portanto, nos cidadãos e nos governantes de um país, formam a base para as “macro-violências”, como a política da morte (necropolítica).

Necropolítica

Em patamar mais subjetivo, “Necropolítica”, livro de Achille Mbembe, filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês, teoriza sobre a política da morte. Em um ensaio seu para a revista “Artes e Ensaios” da UFRJ, o filósofo retrata a relação de soberania (soberanos-governantes) como a capacidade de ditar quem pode viver e quem pode morrer dentro de uma sociedade.

Mbembe retoma Michel Foucault, que conceitualiza sobre a biopolítica, ou seja, a política da vida. O Estado escolhe, segundo o filósofo francês, as pessoas que devem viver dentro da sociedade, aquelas que trazem benefícios econômicos para o capital e gerem à máquina, o capitalismo. Assim, Mbembe reconceitualizar a biopolítica com sua teoria da necropolítica, ou seja, a política da morte.

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Gustavo Cremonezi

Para o teórico político, a necropolítica é a produção conceitual da política da morte, ou seja, uma ação política centralizada na produção da morte em larga escala. Assim, o Estado escolhe pessoas para morrer. No caso do Brasil, exemplos como o sistema prisional superlotado que acarreta na morte; mesmo o país não tendo uma pena de morte presenciamos uma “morte sem pena” em que os culpados não são penalizados, tendo em vista que o Brasil não soluciona nem 10% dos homicídios.

A pauta em questão está relacionada com as relações de poder entre as classes sociais. A teoria é voltada para as questões raciais e sexistas, pois, em uma sociedade racista e machista, o alvo da necropolítica são as pessoas de determinada origem, com determinados traços e até mesmo gênero. Isso enfatiza a questão das minorias que são atacadas e afetadas na sociedade, sendo elas negros, mulheres, LGBTs e cidadãos de baixa renda.

O poder do Estado é traduzido na escolha da morte, pois, não é por acaso que os homicídios no Brasil possuem vítimas “semelhantes”. É mais comum a violência ocorrer nas minorias, e, assim, os altos casos de feminicídio, a pesquisa de que o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo e os policiais que atiram oitenta tiros por engano em um carro com uma família negra, confirmam a tese.

“O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência contra eu próprio povo“ afirma a socióloga Suelen Aires Gonçalves em “Parem de nos matar: sobre dor e necropolítica no Brasil”. A socióloga afirma ainda que as vítimas têm cor, idade, e classe social. É uma escolha, é uma necropolítica. Assim, como foi o caso do estudante Marcos Vinicíos, morto por bala perdida no Complexo da Maré. Essas mortes tem cunho político, como diria Mbembe.

Assim, a violência eleva-se para um patamar preocupante: o político e governamental.

“A violência como forma de governo”

Foto por Vinicios Rosa | Modelo Maria Eduarda Tarda

A violência se configura como uma forma de governo, como retratada por Vera Telles, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), em um artigo para a Le Monde Diplomatique.

O (des)governo, como comentado por Telles, alimenta-se de micro-violências e cria macro-violências: as violências como forma de governo. Um exemplo, são as formas de controle e de gestão de espaços urbanos e populações.

Aqueles espaços e populações entendidos como “ameaçadoras” da “ordem e leis” ou como “espaços intrinsecamente problemáticos, pontilhadas por lugares de concentração de populações sob suspeita, insurgentes (…)”,pelas autoridades policiais e pelos gestores urbanos, como comentado por Telles, sofrem de macro-violência.

Esses espaços e populações são controlados sob forma de “guerras urbanas” que criam mais violência. A lógica militarizada de controle e gestão teorizadas por Stephen Graham, que Telles coloca em argumentação, explica o desgoverno.

O “novo urbanismo militar” que Graham comenta é fruto de experimento, procedimentos, técnicas e tecnologias testados em zonas de guerras como Iraque, Afeganistão e Gaza, são “modelos explicitamente coloniais de pacificação, militarização, controle e contenção, testados e afinados nas ruas do Sul global, estão espalhados pelas cidades do centro capitalista do mundo (…)” como colocado por Telles.

Abaixo, alguns exemplos de violência como forma de governo:

Intervenção militar no Rio de Janeiro que causa mortes diárias de inocentes, como a Marcos Vinicius no Complexo da Maré;

A gestão política e econômica dos países subdesenvolvidos ou “em desenvolvimento” como os da África que não conseguem garantir direitos básicos aos cidadãos com uma das maiores taxas de mortalidade infantil;

O regimento de governos ditatoriais como o da Coreia do Norte que censura e governa seus meios de comunicação.;

A censura da liberdade que Vladimir Putin emprega na Rússia ao implementar leis rigorosas e proibições peculiares;

O (des)governo de países do Oriente Médio como Iraque e Palestina que perpetuam uma guerra territorial sem margem para sobreviventes como no conflito na faixa de Gaza.

Além disso, em outro viés de pensamento muito parecido, Telles ressalta a teoria de Jeff Harper, antropólogo israelense e ativista da causa palestina, sobre a “guerra urbana” que usa as técnicas da chamada “gestão de multidão”, testadas nos Territórios Ocupados Palestinos. Assim há uma “palestinização do mundo” que é, pura e simplesmente, a militarização argumentada por Graham. Assim, seria evidente pensar que vivemos em uma constante guerra? Basta assistir ao noticiário. O mundo é um Coliseu aberto.

Outra faceta que molda a violência como Estado, é a má gestão política e econômica de diversos países e a corrupção de governos. Ao entrarem em estado de grande desigualdade econômica que não garante direitos básicos à população, a sociedade passa a vivenciar uma violência fora do comum, que rotineiramente passa a ser vista como normal.

Além disso, a censura de regimes autoritários/ditatoriais são uma forma de violência. Ao privar a população de suas liberdades e direitos, os governos praticam, por diversos meios, seja por gestão, por censura ou por corrupção, uma violência contra seus governados.

O Coliseu Pós Moderno

Foto por Vinicios Rosa

O Coliseu pós-moderno é apresentado para nós, todos os dias, pelos meios de comunicação. É representado, em uma parte, pelas micro-violências e, principalmente, pelas macro-violências; pelas violências em forma de governo como as intervenções militares; pelas guerras dentro dos espaços urbanos interpretados como ameaçadores pelos governantes e autoridades policiais; pela censura das ditaduras na pós-modernidade; pela implementação de leis que visam a limitar a liberdade dos cidadãos; e, por fim, a não garantia de direitos básicos para a maioria dos cidadãos de um Estado.

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