O muito que aprendi em dois dias com Amara Moira

Relato de um bate-papo com Amara, a doutora em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp, travesti, escritora e professora. Esses termos se completam, não se excluem.

Revista Torta
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8 min readApr 17, 2019

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Por Rafael Junker Simões

Amara Moira e seu livro “E seu eu fosse puta”. O título da obra, pelo peso social do nome “puta”, depois foi alterado para “pura”. Fonte: Twitter de Amara

Era uma terça-feira, dia 9 de abril. A minha rotina estava tranquila até que a editora da Revista Torta — da qual faço parte cumprindo também o papel de editor — me mandou uma mensagem curiosa. Ela estava estranhando a minha tranquilidade quanto a realização da Segunda Feira de Livros da Unesp, cujo meu papel era cobrir nas redes sociais, uma vez que eu era o único da redação a estar em São Paulo. De início, não entendi o estranhamento dela e sua insistência para que eu decidisse quais palestras cobrir, mas, assim que abri o site do evento, notei que a data de início era quarta-feira, dia 10. Eu pensei que seria na quinta. Sou péssimo com datas.

Abri o Whatsapp com as mensagens da Giovana, a editora da Torta, e enviei alguns áudios desesperados tentando me orientar no tempo e decidir de quais palestras ou bate-papos eu participaria. Ela me recomendou o bate-papo com a Amara Moira sobre o livro “E seu eu fosse pura”, de sua autoria. Giovana argumentou que o tema tinha certa relação com o primeiro dossiê produzido pela Torta, que tratava da criminalização da homotransfobia. Fiz uma breve pesquisa.

Amara é transgênero, bissexual e a primeira trans a conquistar um título de doutorado pela Unicamp usando o nome social. Uma conquista e tanto. E não para por aí. Ela também escreveu para a revista Azmina e ainda escreve para a Mídia Ninja. Durante um tempo, trabalhou como prostituta em Campinas, sua cidade natal. Não hesitei e me inscrevi para o bate-papo que, como má notícia, trazia um desrespeitoso horário: 10 horas da manhã. Para alguém que têm hábitos noturnos e mora há uma certa distância da Barra Funda — era na Unesp de lá que o evento aconteceria -, 10 horas era um horário cruel. Mas isso não me impediria de participar, ainda que fosse necessário acordar cedo.

Como bom ex-estudante de jornalismo que sou, comecei a me aprofundar na vida de Amara Moira, lendo uma parte do que já tinha sido publicado sobre ela. Amara, em 2014, durante a Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, começou a se reconhecer como mulher. Estava se sentindo tão bem que foi com a maquiagem e com a roupa que usou na Parada em São Paulo de volta para Campinas. Na rodoviária, os pais e a avó de Amara, que fazia aniversário, se surpreenderam. A mãe logo indagou: “esse o presente que você quer dar pra sua avó?”. Amara, irresoluta, respondeu: “ela quer algo melhor do que ganhar uma neta?”. Essa resposta me encantou, e me divertiu também, confesso. Quanto mais eu lia, mais queria ler.

Depois de ler algumas entrevistas e assistir a uma palestra de Amara em Volta Redonda, decidi ler os seus textos na Mídia Ninja. E foi lá que a defesa da regulamentação do trabalho sexual entrou no meu horizonte de saberes. Essa era a principal bandeira defendida por Amara que, como já anunciei antes, trabalhou durante muito tempo com a prostituição. Era um assunto tão novo pra mim e parecia ter uma urgência tão grande de vir à tona. Li uns 5 textos de Amara e logo já tinha na ponta da língua argumentos sólidos contra qualquer um que pudesse se posicionar contra a regulamentação do trabalho sexual. E esses argumentos eram baseados em textos de alguém que viveu a prostituição.

Aprendi, naquela noite de terça, que discutir a regulamentação era preciso para assegurar a vida das pessoas que trabalhavam com a prostituição. Aprendi que é extremamente equivocado — e surpreendentemente comum — associar prostituição à pedofilia, que é um crime previsto em lei. Essa associação não pode existir, uma vez que imobiliza o debate sobre a regulamentação do trabalho das profissionais do sexo. Exploração sexual de menores é crime, prostituição é um trabalho e, como tal, deve ser regulamentado, garantindo segurança àqueles que o prestarem. Essa discussão não visa ao estímulo do trabalho sexual, mas à garantia de que as pessoas que optarem por prestá-lo tenham os benefícios sociais de um trabalho como todos.

Aprendi que o argumento — também muito comum — de que prostituição é um “estupro pago”, só contribui para o esvaziamento semântico da palavra “estupro” e, novamente, para a imobilização do debate sobre a regulamentação do trabalho sexual. Esse argumento desconsidera a possibilidade de escolha das prostitutas quanto à realização do trabalho sexual. É como se elas não pudessem rejeitar, porque o cliente está pagando pelo serviço. Essa visão também se reveste de um caráter homogeneizador da profissão, colocando em pé de igualdade as prostitutas que cobram 300 e aquelas que cobram 30. O trabalho é muito mais complexo do que se pensa. Nas palavras de Amara, “eis a visão de quem jamais exerceu esse trabalho, eis a visão de quem tem horror à mera ideia de fazer sexo com desconhecidos, corpos variados, muitos deles longe do que se considera bonito”.

E assim foi a minha noite de terça. Depois do turbilhão de argumentos que li de Amara, acordar cedo para ir ao bate-papo nem chegava mais perto de ser peça de minha preocupação. Seria um prazer. Depois de alguns goles de água, organizei os pensamentos na cabeça, tranquilizei a editora da Torta, e fui dormir.

No dia seguinte, às 7 horas da manhã, o despertador tocava a música fúnebre cuja tradução do título para o português é “você não se importa o suficiente comigo para chorar”. Gosto de acordar com músicas melancólicas e com bons acordes de violão. Fiz o que precisava fazer e, com a cabeça repetindo o nome “Amara Moira” — estava com medo de esquecer — fui até a Unesp de São Paulo, ao lado da estação Barra Funda. O bate-papo começaria às 10 e eu estava entrando correndo pelos portões com 5 minutos de atraso. Subi no elevador, tentei me orientar para descobrir onde ficava a sala 116, e corri. Chegando à porta, olhei e vi que a sala, com um chão amadeirado, com um piano no canto esquerdo e com cadeiras estofadas, ainda estava vazia. Nem um sinal de Amara, somente algumas organizadoras do evento que controlavam a entrada daqueles que participariam da conversa. Por enquanto num quórum de somente uma pessoa: eu.

Um pouco desconcertado e tímido, entrei na sala e logo me dirigi para uma cadeira no canto direito. Tomei alguns goles de água para tentar relaxar e, em poucos minutos, entrou um garoto de cabelo encaracolado que sentou algumas cadeiras ao lado. Depois um homem perguntou se queríamos — eu e o menino ao lado — o ar-condicionado ligado, não negamos a oferta. Mais alguns minutos se passaram quando um casal e uma outra moça chegaram, compondo uma turma de 7 pessoas, contando com duas organizadoras que também participariam. O número baixo de pessoas foi muito positivo para o bate-papo.

Uma das organizadoras distribuiu o livro “E seu eu fosse pura” para os presentes, alegando que o valor para quem quisesse comprar era de 20 reais, contando os 50% de desconto dado pelas editoras presentes na Feira. Amara chegou com um vestido preto e um sorriso no rosto. Cumprimentou-nos com um beijo no rosto — fiquei surpreso com isso — e falou para uma das organizadoras nos ajudar a formar um círculo com as cadeiras. Era assim que ela queria que fosse o bate-papo. Amara saiu da sala para terminar de responder um e-mail antes do início da roda de conversa. Aproveitei o tempo para folhear o seu livro o máximo possível e tirar as fotos para postar nas redes sociais da Torta.

Passados 20 minutos do horário previsto para o início do bate-papo, Amara entrou na sala novamente, sentou-se em uma cadeira que, na roda, estava logo à frente da minha, colocou o livro sobre o colo e começou a falar. Primeiro perguntou se conhecíamos o livro. Eu, que já tinha ouvido falar dele brevemente, aquiesci com a cabeça. Fui o único. Amara dirigiu o olhar pra mim e, pelo que me pareceu, pensou que eu já tivesse lido o livro. Ela comentou sobre a importância social da sua obra e sobre como falar de algo — lembrando que o livro conta suas experiências trabalhando como prostituta — que está tão à margem da civilização é também falar sobre a própria civilização.

Ela usou termos como hipocrisia para se referir ao tratamento velado que se tem em relação à profissão. Comentou sobre o desafio de escrever o livro e, em dado momento descontraído, se contorceu de rir, junto à nós, comentando sobre a gravação do livro em formato de áudio. Como a obra contava sem titubeios as experiências com a prostituição e, certamente, sexuais de Amara, ela se sentiu um pouco envergonhada enquanto lia em voz alta trechos do livro com o editor de áudio ao lado.

A conversa seguiu e, após alguns minutos falando, Amara olhou pra mim e perguntou se eu já tinha lido o livro. Com certo constrangimento, assumi que, infelizmente, ainda não tinha tido a oportunidade de ler. Ela continuou falando sobre a obra até que senti uma abertura para perguntas que estimulassem o debate. Levantei a mão e perguntei a ela como ela enxergava a possibilidade de regulamentação do trabalho sexual com um Congresso conservador como o brasileiro e com o Jean Wyllys, que elaborou um Projeto de Lei em 2012 que abordava o tema, morando fora do país por perseguição e ameaças. Amara respondeu que os políticos não se interessam pelo tema ou evitam de abordá-lo, haja vista a ausência de consenso de defesa dessa pauta tanto pela esquerda quanto pela direita. Inclusive os argumentos do estupro e da pedofilia eram empregados por pessoas que assumem ser do campo progressista. Curioso. As expectativas de regulamentação não eram das melhores. Ela também pontuou a ausência de protagonismo das trabalhadoras do sexo no debate. Elas deveriam encabeçar o movimento de regulamentação mas, na prática, não é o que acontece. Querem falar por elas.

Mais de quarenta minutos passaram, com várias intervenções e perguntas dirigidas à Amara, até que surgiu o tema da identidade. Amara se identificava como mulher mas, apesar disso, a sociedade tem uma visão de gênero intimamente atrelada à genitália. É justamente a imposição dessa visão que leva às pessoas transgênero a se submeter a processos cirúrgicos invasivos. Processos esses que, curiosamente, surgiram para “corrigir” um corpo indeterminado, como os hermafroditas que possuem ambas as genitálias. Essa fala de Amara merece reflexão.

Antes do fim, ela ainda comentou que, quando trabalhava com a prostituição, era tratada como mulher, como Amara. Fora desse ambiente, para ser tratada e reconhecida como mulher, precisava de alguma lei. E isso sem considerar os casos nos quais as pessoas simplesmente se recusam a tratá-la como Amara.

Uma hora já havia passado desde o início do bate-papo. Eram 11:20 quando Amara, interrompida por uma das organizadoras do Evento, assumiu que precisava entregar um artigo às 10 da manhã. Estava atrasada. Despediu-se de nós com a naturalidade e intimidade com a qual nos cumprimentou e saiu pela porta da sala.

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