REPORTAGEM

O PATRONO DA EDUCAÇÃO: COMO A MAGIA DE PAULO FREIRE TRANSFORMOU O ENSINO NAS ESCOLAS BRASILEIRAS

Diante do constante descaso com o ensino no Brasil, o centenário do pedagogo evidencia a necessidade de uma educação emancipadora.

Revista Torta
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Escrito por Ingrid Felix

Editado por Eduarda Motta e João Vitor Custódio

Com ideias polêmicas e revolucionárias a respeito da educação brasileira, Paulo Freire discute e critica métodos pedagogos || Arte: Júlia Silva/Revista Torta

Em 19 de setembro, Paulo Freire completaria 100 anos. O legado do pedagogo envelhece como vinho, inspirando educadores de todo o mundo com seus conceitos que superam meros ensinos normativos das disciplinas escolares.

Nascido em Recife, na cidade de Pernambuco, em 1921, era o filho caçula de uma dona de casa e um policial militar, do qual ficou órfão aos treze anos. Se formou em Direito mas dedicou sua vida à Educação.

Em 1961, Freire tornou-se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, atual Universidade de Pernambuco (UFPE), e seu trabalho possibilitou a realização da Experiência Angicos, um projeto de implementação de mudança pedagógica para a educação.

O programa consistia na alfabetização de cerca de 300 trabalhadores rurais da pequena cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em um curso de 40 horas. A campanha formou leitores e eleitores, conscientes de seus direitos.

O sociólogo José Willington Germano, em sua resenha “As quarenta horas de Angicos”, afirma:

“Nesse contexto, a educação passou a ser alvo de grande interesse por parte dos setores reformistas, com uma particularidade: uma acentuada ênfase na dimensão política da educação. Assim, o que estava em jogo, para além da alfabetização de milhões de adultos, adolescentes e crianças, dizia respeito à necessidade de politizar e conscientizar o povo para que ele pudesse participar efetivamente da vida do país e influenciar decisivamente na transformação da sociedade brasileira”.

O projeto, no entanto, também ocasionou o exílio de Paulo Freire após o início da Ditadura Militar (1964–1985). Isso porque alguns de seus alunos que trabalhavam em uma obra iniciaram uma greve e exigiram que seus direitos fossem garantidos, ação acusada de ser uma manifestação subversiva e contribuir com a suposta “ameaça comunista” durante a Guerra Fria (1947–1991).

Além disso, com o sucesso do projeto, Angicos inspirou o Programa Nacional de Alfabetização, desenvolvido no governo de João Goulart (1961–1964). Entretanto, esse também foi derrubado com o golpe militar, já que a iniciativa reduziu expressivamente o número de analfabetos no país, o que gerou maior oposição política para as classes dominantes.

Enquanto esteve afastado do país, o pedagogo produziu algumas de suas obras mais conhecidas como “Educação como uma prática da liberdade” e Pedagogia do Oprimido”, introduzindo conceitos que estruturam a pedagogia crítica, filosofia educacional que preza pela liberdade de expressão e o diálogo.

De acordo com a Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem Mona Mohamed, escritora do artigo “A pedagogia crítica no trabalhos de formação de professores”:

“Sua ação reflexiva facilita o desenvolvimento autônomo e emancipador dos participantes do processo ou por meio de uma ênfase crítica e de reconstrução social, que considera no ensino e na formação de professor.”

Posteriormente, no governo de Dilma Rousseff (2011–2016), Paulo Freire foi nomeado Patrono da Educação Brasileira, título que reconhece a importância do pedagogo para o desenvolvimento do estudo no país. Apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a percorrer no campo educacional do Brasil.

Muitos dos conceitos e princípios freireanos ainda não são introduzidos nas escolas públicas brasileiras, apesar da discussão fervilhante entre a comunidade acadêmica sobre a necessidade para que isso seja realizado.

Um dos principais conceitos definidos por Freire é a educação bancária. A modalidade de ensino em questão não tem relação com o sentido literal de finanças, mas sim com o significado figurado da expressão.

Nesse método, o professor enxerga o aluno como um banco, no qual deposita conhecimento. Essa interpretação considera o aprendiz como alguém desprovido de qualquer ciência prévia do assunto tratado e o mestre deveria então preencher esse “vazio”.

“O educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados”, diz Freire em “Pedagogia do Oprimido”. O pedagogo explicita a necessidade do diálogo entre as duas partes, porque o objetivo do professor é desenvolver o senso crítico de seu aluno, que está em constante aprendizado.

Crítico ao modelo e com a proposta de combatê-lo, Freire propõe o ensino libertado, pois

“[A educação bancária], na medida em que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar-se”.

A apreensão da realidade e o reconhecimento de identidade cultural também são concepções de Freire que propõe a conscientização da população. Para ele, era necessário que o aluno e o professor trabalhassem a aceitação do outro e de si mesmo. A alfabetização só é possível quando se assume que todos são iguais e devem ter os mesmo direitos.

Para Freire, é importante que a formação docente se paute em estabelecer uma relação com o aluno de forma que o conhecimento seja produzido em conjunto e esse seria o conceito de “pensar certo”, em contrapartida da ideia de que os professores são tidos como “iluminados intelectuais” e “centro do poder”.

Uma definição do pedagogo, entretanto, se destaca entre os demais: todo método de educação é ideológico, já que:

“É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível, não porque professoras e professores baderneiros e subversivos o determinem. A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política”, afirma.

O cenário brasileiro atual de ensino parece ir no sentido oposto do princípio de Freire. Diante de 5,1 milhões de crianças e adolescentes sem acesso à educação e mais de 10 milhões de analfabetos, o ensino à distância (EAD) foi introduzido na rotina dos estudantes de forma emergencial durante o ano de 2020 devido à pandemia.

O resultado foi um congelamento do nível educacional entre os jovens, que não conseguiram adquirir mais conhecimentos dos que já possuíam antes do início do ensino remoto. De acordo com o Datafolha, 51% das crianças em processo de alfabetização ficaram no mesmo estágio de aprendizado.

No entanto, contrariando a expectativa de professores e alunos, o Governo Federal anunciou a institucionalização do Programa de Ensino Integral (PEI) em 2022. A reformulação do ensino médio amplia o tempo de permanência nas escolas, com períodos que duram até nove horas por dia.

Somente Língua Portuguesa, Matemática e Inglês serão disciplinas obrigatórias e o aluno poderá optar por matérias de outros campos do saber e aulas técnicas voltadas para formação profissional. Ainda que pareça uma expansão consideravelmente abrangente, é necessário ter em mente que o foco do projeto é formar trabalhadores que não terão seu senso crítico incentivado.

O projeto não considera outras disciplinas fora das obrigatórias, como essenciais para o desenvolvimento do aluno, além de possuir inclinação para movimentos como o “escola sem partido” que exigia o ensino sem viés ideológico, por meio de um Projeto de Lei (PL).

Conforme aponta a psicóloga Caroline Bastos Copaverde em seu artigo “Escola sem Partido”, para quem?”, ”se formos ao texto do PL, ao analisarmos minuciosamente sua redação, emerge um sem número de paradoxos, ambiguidades, dicotomias”. Ela ainda ressalta:

“Podemos inferir que os redatores do PL desconsideram que o fato de legislar objetivando atender a uma neutralidade ideológica, por si só já constitui um direcionamento ideológico, em uma não neutralidade”.

A reformulação do ensino médio brasileiro também estimula a evasão escolar de alunos e professores por conta da expansão de duração do horário das aulas. A iniciativa não envolveu a opinião da comunidade acadêmica e científica, sendo realizada “às escuras”.

Os princípios freireanos, reconhecidos mundialmente, são sistematicamente censurados pela adoção da perspectiva reducionista na educação e com isso a liberdade e consciência social são privadas de muitos estudantes, sob o disfarce de uma suposta autonomia.

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