Previdência feminina: como é, porque é, e o que será se mudar

Os impactos das mudanças na Previdência Social propostas pelo governo de Jair Bolsonaro para as mulheres

Revista Torta
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6 min readMay 31, 2019

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Por Rafael Junker Simões

Editado por Arthur Almeida e Giovana Silvestri

Até o encerramento deste texto, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma da Previdência, apresentada pela gestão do presidente Jair Bolsonaro, está sob análise da Comissão Especial formada por deputados federais. A essa Comissão, cabe analisar o mérito da Proposta e sugerir mudanças por meio de emendas. Essa fase sucede a análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), também formada por deputados e responsável por garantir a constitucionalidade da Reforma.

Não cabe, aqui, — embora, inevitavelmente, o texto apresente alguns elementos argumentativos contrários à Reforma — discutir a necessidade de mudanças na previdência social, mas, sim, analisar a Proposta do governo Bolsonaro a partir das suas consequências para as mulheres. Afinal, são elas o foco do Dossiê da Revista Torta.

Como é a aposentadoria hoje e porque é assim

Antes de mais nada, é preciso entender como funciona atualmente, grosso modo, a aposentadoria no regime urbano. Pelas regras atuais, o trabalhador pode se aposentar por dois modos: tempo de contribuição e idade.

Aqueles que optarem por se aposentar por tempo de contribuição precisam ter contribuído por 30 anos, no caso das mulheres, e 35, no caso dos homens. Não há idade mínima, nessa modalidade. No entanto, o valor do benefício a ser recebido depende, entre outras coisas, da soma do tempo de contribuição e da idade da pessoa. Para que o valor da aposentadoria seja integral, é preciso que a soma resulte em 86, para as mulheres, e 96, para os homens.

Aqueles que optarem por se aposentar por idade podem receber o benefício aos 60 anos, para as mulheres, e aos 65, para os homens. Todavia, para o recebimento do benefício é preciso, além da idade acima, ter contribuído para a previdência social por, no mínimo, 15 anos.

O acesso à Previdência nos moldes de hoje permite algumas constatações. A primeira delas é que há uma marcante diferença de gênero na aposentadoria. Tanto a soma entre tempo de contribuição e idade, no caso da primeira modalidade de aposentadoria, quanto a idade, no caso da segunda, são menores para as mulheres. Essa diferença é uma compensação social importante e que leva em consideração, primeiro, que as mulheres enfrentam, frequentemente, uma dupla jornada. Uma no mercado de trabalho e outra em casa, com a responsabilidade pelos afazeres domésticos.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2014 revela que 90,6% das mulheres brasileiras realizam afazeres domésticos. No caso dos homens, a porcentagem é de 51,35%. Considerando o tempo de dedicação para trabalhos de cuidado sem remuneração, as mulheres dedicam-se cerca de 21 horas por semana, enquanto os homens, menos da metade desse valor. Menos, portanto, de 10 horas. Esse fosso que divide homens e mulheres é ainda maior no ambiente rural.

Além da dupla jornada, esmagadoramente mais comum para as mulheres, elas também estão submetidas a piores condições de trabalho e, estatisticamente, ganham menos que os homens. Joana Mostafa, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), afirma que: “Segunda a Pnad de 2017, elas [mulheres] ganham cerca de 77% da remuneração dos homens. Acima de 12 anos de escolaridade, essa diferença é ainda maior, já que a remuneração representa cerca de 65% do que eles [homens] recebem”.

Como deve ficar a aposentadoria e quais os seus impactos para as mulheres

A Reforma da Previdência propõe várias mudanças no sistema atual. No entanto, algumas delas, mais polêmicas e que afetam com maior clareza as mulheres, serão tratadas neste texto. A começar pela mudança na forma de acesso à aposentadoria.

Se, antes, as pessoas poderiam se aposentar ou pela modalidade de tempo de contribuição, ou pela idade, hoje, de acordo com a Reforma, o acesso à aposentadoria só poderá ser feito a partir de uma idade e de um tempo de contribuição mínimos. Assim, os trabalhadores do regime urbano — diferentes dos funcionários públicos e dos trabalhadores do campo — só poderão se aposentar quando chegarem aos 62 anos, no caso das mulheres, e 65, para os homens, e tiverem contribuído por pelo menos 20 anos.

Essa mudança institui uma idade mínima para o acesso aos benefícios da Previdência. Os trabalhadores não podem mais se aposentar só por terem contribuído 30 ou 35 anos. Essa modalidade de acesso, na Reforma atual, não existe mais. É preciso ter alcançado as idades mínimas.

A primeira vista, parece uma mudança positiva e que visa à diminuição da desigualdade social. Isso porque as aposentadorias por tempo de contribuição também são chamadas de “aposentadorias precoces”, uma vez que o aposentado acaba recebendo o benefício muito cedo, em uma idade em que ainda poderia estar no mercado de trabalho.

As pessoas que conseguem acessar a aposentadoria por tempo de contribuição mantiveram-se mais tempo no mercado de trabalho formal. São pessoas mais favorecidas economicamente, que raramente recorreram ao trabalho informal, e que se aposentam mais cedo e com benefícios maiores.

Os dados da Secretaria da Previdência, de dezembro de 2018, revelam que, à época, o Brasil tinha 17,1 milhões de aposentados pelo Regime Geral da Previdência Social — que envolve os trabalhadores do setor privado da cidade e do campo. Desses 17 milhões, 10,8 milhões eram aposentados por idade e 6,3 milhões por tempo de contribuição, número significativamente menor.

É importante ressaltar, também que, no campo, os aposentados por tempo de contribuição somam 23,5 mil pessoas, somente. A diferença é percebida quando se compara o valor médio do benefício recebido pelos aposentados por idade e os aposentados por tempo de contribuição.

No caso do primeiro grupo, o valor médio do benefício recebido era de R$969,08, com mulheres recebendo cerca de R$1089,00 e homens recebendo R$1206,00; no caso do segundo, o valor médio do benefício era de R$1984,75, com mulheres recebendo R$2132,00 e homens R$2489,00. Esses dados, portanto, a primeira vista, corroboram com a tese segundo a qual o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria reduzirá a diferença das classes sociais. Mas, essa é uma análise isolada e descontextualizada. Os mais pobres já trabalham até mais tarde. A idade mínima pouco vai afetá-los.

Além disso, o Governo, com a Reforma, quer aumentar o tempo mínimo de contribuição de 15 — existente no sistema atual para os trabalhadores que se aposentam por idade — para 20 anos. Daí a concomitância exposta nos parágrafos anteriores. Para se aposentar, será preciso uma idade mínima de 62 ou 65 anos e um tempo mínimo de contribuição de 20 anos, para os dois gêneros. Acontece que esse aumento no tempo mínimo de contribuição afeta diretamente os pobres e as mulheres. A vulnerabilidade desses dois grupos é esmagadoramente maior que aquela apresentada por aqueles grupos mais ricos e favorecidos no estabelecimento de uma idade mínima.

Um estudo de economistas do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal, com base em dados de 2014, revela que as mulheres aposentadas por idade, na época, contribuíam, em média, 18,2 anos. A mediana do tempo de contribuição é ainda menor, de 16 anos. Metade das mulheres contribuíam ou 16 anos ou menos que isso quando se aposentavam por idade.

E ainda tem mais: 69% das mulheres que se aposentaram por idade em 2014 contribuíram menos que 20 anos. Assim, com as novas regras, elas se aposentariam com idades acima da idade mínima de 62 anos exigida pela Reforma, uma vez que teriam de trabalhar mais até alcançar os 20 anos de contribuição exigidos.

Essa dificuldade de alcançar o tempo mínimo de contribuição para as mulheres ocorre porque elas, por vezes, apresentam dificuldade em se manter no mercado de trabalho formal. Muitas acabam saindo do emprego para cuidar dos filhos ou aceitando ofertas de trabalho informal dada à dificuldade de arranjar emprego. Todos esses fatores atuam como obstáculos para a aposentadoria das mulheres.

Os parágrafos anteriores pouco falaram sobre a aposentadoria dos trabalhadores do campo. Nesse ambiente no qual a diferença de dedicação aos afazeres domésticos entre homens e mulheres é ainda maior que nas cidades, a Reforma da Previdência pretende igualar a idade mínima entre homens e mulheres para 60 anos. Há diferença social, mas ela não é respeitada no acesso à aposentadoria.

Muitas mudanças propostas pela Reforma e suas consequências para as mulheres não estão neste texto. Infelizmente, são muitas e, como todo texto — este incluso — a forma e o conteúdo são escolhidos propositalmente, vítimas da inevitável parcialidade humana. Aos que desejarem se aprofundar na discussão da Reforma, recomendo a leitura do especial da Previdência elaborado pelo Nexo Jornal, dos textos publicados pelo Le Monde Diplomatique Brasil sobre o tema, da série do HuffPost Brasil sobre as mulheres e do estudo, já citado, do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal.

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