Fotomontagem: Danilo Fleury (COARQUITETOS) / Divulgação

Exploração do cotidiano invisível

A trilha urbana poética de Luciana Lara e da Anti Status Quo no espetáculo ‘Microutopias Cotidianas Aglutinantes do Lugar’

Traços Digital
Revista Traços
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5 min readMar 19, 2019

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Por Rhenan Soares

Não há regras. Apenas algumas, poucas, orientações. E um acordo de comprometimento bilateral entre elenco e público. Entretanto, no dia anterior, convém dormir cedo. O suficiente para acordar, se aprontar calmamente em roupas confortáveis e estar pontualmente às 9h30 no Centro de Dança do Distrito Federal, horário e local de partida do espetáculo Microutopias Cotidianas Aglutinantes do Lugar, nova montagem da Anti Status Quo Companhia de Dança.

Em direção à Luciana Lara, guia dessa superprodução onde o modernismo da cidade é o cenário e o pós-modernismo da gente é o roteiro, também é prudente, antes da partida, apurar os sentidos no silêncio possível da primeira manhã. Mas não se afobe, ainda haverá tempo. O tempo-convite de Luciana Lara nesse espetáculo-convite ao despertar dos sentidos.

E, então, saiba que o primeiro ato da itinerância é uma curta caminhada com mapa à descoberta da exploração desses sentidos, todos. Vá com calma. Leia. Leia de novo. Ouça. Ouça mais uma vez. Sinta. Sinta novamente. Para seguir Luciana e a Anti Status Quo, é necessário que a repetição da busca oriente o encontro. O que ela tem a te mostrar, contudo, é livre do seu próprio exercício de enxergar. A paisagem anda, ora esbarra em você ora desaparece sem ser notada.

Outra vez: não há regras. Apenas algumas, poucas, orientações. Mas se permita apurar ao máximo os sentidos de exploração do lugar. Quem viu vê algo novo quando vê novamente. Quem ouviu escuta algo a mais quando se aproxima do som. Quem sentiu percebe novas sensações quando se lança outra vez na sorte de tocar um imenso pedaço insólito do cotidiano.

Fotomontagem: Danilo Fleury (COARQUITETOS) / Divulgação

Negócio de artista

Quando todas as respostas apontam, enfim, para o encontro, descobre-se que ele é horizonte. Todavia, a partir daí esse encontro é um micro exército de no máximo 24 curiosos arrebanhados para a trilha urbana poética de Luciana Lara. Poética e algo distópica. Um caminho hostil à hostilidade da rotina de quem precisa passar pelo tempo ou cumprir a excursão diária das horas comerciais. Um caminho hostil que revela a hostilidade empenhada para conceber o que se convencionou a chamar de vida urbana.

“Vão trabalhar, bando de vagabundos!” “Não têm mais o que fazer, não?!” “Isso é negócio de artista, né?!” É importante compreender a agressividade do ato de contemplar o próprio espelho. As reações, apressadas em carros ou caminhadas atrasadas, revelam o incômodo de quem não consegue se projetar no andar daqueles que buscam o desconhecido no que parecia, sempre, algo familiar.

Fosse em um circo, Luciana Lara seria a mestre de pista do espetáculo. Em Microutopias, ela tem função semelhante, embora proclame cada cena no mais absoluto silêncio e em leveza de gestos que oferecem ao público modestas intenções: olhe, pare, ouça, siga, vire, pegue, sinta. O prosaico do ato de assistir, subvertido na provocação de precisar orientar a distração. A diretora parece adestrar sua plateia. A grandeza de quem deseja compartilhar, mais do que propriamente ensinar qualquer coisa.

Fotomontagem: Danilo Fleury (COARQUITETOS) / Divulgação

BalzaquiAglutinantes

Com 30 anos de existência, a Anti Status Quo tem algo a dizer. Ou melhor, mostrar. E devolver a percepção do espectador foi, aparentemente, o caminho escolhido pela Companhia neste 11º espetáculo, sucessor do bem sucedido De Carne e Concreto — Uma Instalação Coreográfica, que teve dezenas de apresentações pelo país e pelo mundo. É do histórico do grupo que se faz o parto de Microutopias em todas as suas peculiaridades de coisa pensada e sem acordos com o convencional.

Se no espetáculo anterior a nudez poderia ser transformada em questão, em Microutopias é a concretude do caos que expõe ao limite tanto o elenco quanto o público, que em parte também é elenco, ou se transforma em elenco durante a experiência. Sem saber exatamente o que é elenco e o que é público ou o que são apenas o caos e a beleza acostumada da cidade. A Companhia confunde não para explicar, mas talvez para fazer pensar e, em lugar de um programa impresso, entregar de mimo ao espectador algumas provocações sobre o seu próprio lugar.

Fotomontagem: Danilo Fleury (COARQUITETOS) / Divulgação

É neste lugar que dá nome ao espetáculo onde moram as discussões silenciosas da Anti Status Quo. É na descoberta das cenas, das coreografias, dos bailarinos e dos cenários que surge a dramaturgia de potencial catártico. E é na presença por vezes grandiloquente; por vezes apática e sufocante da cidade, que a Companhia guarda seu protesto esmagador. É sobre Brasília (o lugar). É sobre você (o eu). É sobre a gente (o todo).

Como quase toda experiência, Microutopias Cotidianas Aglutinantes do Lugar deve ser experienciada, mais do que comentada. A saber de antemão, talvez, apenas a óbvia certeza do cuidado com que o espetáculo foi construído e imaginado para todas as liberdades que se possam fazer crer. O discurso mudo, em ambiência ruidosa e imprevista, transcende a técnica, a habilidade ou o que mais as três décadas de atuação da Anti Status Quo teriam a ostentar e, em lugar disso, conseguem fazer desaparecer no processo.

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