Übermensch INTERESTELAR

Gustavo Simas
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8 min readJul 19, 2019

Uma análise do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço

~Este texto com certeza tem spoilers de 2001: Uma Odisseia no Espaço~

Parte 1: O Camelo

Quando assisti a 2001: Uma Odisseia no Espaço pela primeira vez o achei uma chatice. Os primeiros trinta minutos praticamente sem diálogos me causaram fastio; a lentidão e o silêncio do astronauta pairando no espaço por motivos fúteis me fizeram dar longas e vagarosas piscadas; o fim confuso e psicodélico fez brotar em meu rosto um riso de escárnio.

Aquilo, então, era Kubrick?

Por conta desse desgosto acabei por ignorar Stanley e continuei a assistir a uma Ficção Científica mais dopaminada e interessante, como Star Wars e Blade Runner. Os sons de disparos a laser dos TIE fighters me entretinham de uma forma melhor do que macacos brincando com ossos; o monólogo Lágrimas na chuva de Roy Batty (admiravelmente improvisado por Rutger Hauer) me emocionava mais do que humanos sendo assassinados por uma inteligência artificial com voz monótona.

Contudo Stanley Kubrick era (e ainda é) tão cultuado, tão exibido em cineclubes e festivais, que decidi dar uma segunda chance ao sujeito. O diretor de Spartacus (1960), Laranja Mecânica (1978) e O Iluminado (1980) acabou por me surpreender em suas demais obras, revelando uma visão preciosista em roteiro, iconografia, além de bela orientação de elenco para resultar em bravas atuações.

E aí o comichão de rever 2001 surgiu.

Em pesquisas acerca da película pude saber que, tal qual Cidadão Kane (1915) do também genial Orson Welles, 2001 promoveu uma revolução técnica-cinematográfica impressionante, tanto em termos visuais quanto em narrativa e sonoplastia. Descobri que a história foi moldada ao mesmo tempo por Kubrick e Arthur Charles Clarke, num trabalho mútuo, porém com adereços e nuances pessoais dos autores para as versões separadas de filme e livro. Arthur C. Clarke já se destacava no hall do sci-fi, ao lado de figuras como Isaac Asimov, Ray Bradbury e Aldous Huxley. Assim, a escolha de Kubrick para a parceria foi acertada, tendo o conto The Sentinel (e a Odisseia original de Homero, claro) como base para aquela desventura espacial…

O match cut de milhões de anos

E na segunda vez que assisti pude identificar o belo match cut do osso para a espaçonave: um osso, a primeira ferramenta, a pedra fundamental da tecnologia, se transforma num satélite artificial (o qual também é, no filme, uma arma nuclear). Milhões de anos são saltados num corte, como se todos esses milênios fossem irrelevantes para a linha narrativa, como se já soubéssemos o que acontece nessas eras omitidas — o que não é falso.

E na terceira vez que assisti pude perceber o design peculiar das espaçonaves: o formato similar a um espermatozoide da Discovery One; a mecânica exposta e o movimento circular uniforme da Space Station V, com o intuito de desenvolver uma gravidade artificial a partir da velocidade angular; os efeitos especiais, principalmente os da sequência Portal das Estrelas, guiados pelo supervisor Douglas Trumbull (também responsável pelos efeitos fotográficos do meu dopaminado Blade Runner). Fora o fato de ter inspirado a arquitetura aeroespacial da série de George Lucas.

Gradualmente eu ia remodelando minha opinião e admirando toda aquela beleza e simbologia, como quando Dr. Strangelove (Peter Sellers) percebe que é capaz de andar e exclama “Mein Führer! I can walk!” em Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964).

E na quarta vez que assisti pude apreciar a valsa nas estrelas, sendo iniciada logo após a seção Aurora do Homem, ao som de Danúbio Azul Op. 314 (An der schönen blauen Donau, “Sobre o belo Danúbio azul”, do compositor alemão Johann Strauss II). As cenas explicitam uma elegância ímpar e exibem orgulhosamente a tecnologia do futuro, as máquinas derivadas do labor humano. Enquanto a orquestra opera, vemos a Estação Espacial V aparentemente inacabada, o que talvez represente a incompletude humana (ou a imperfeição), e a busca por sentido no infinito negro. Esta mesma valsa se repetirá nos créditos, destacando o nome de todos os envolvidos na produção realizada de 1964 a 1968.

E na quinta vez vi a pequenez dos sapiens. Pois no espaço o Homem prova a liberdade. E a ignorância, de mesmo modo: precisa reaprender a andar, a se alimentar e, inclusive, a refazer suas necessidades fisiológicas. Repensar deve, portanto.

Mas acaba por deixar a tecnologia pensar por ele.

“Tudo vai, tudo volta. Eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.” — Friedrich Nietzsche

Parte 2: O Leão

Como fortalecimento de conceitos, a música intensifica as sensações: a valsa entrega a beleza; o coral ululante ecoado em Lux Aeterna de György Sándor Ligeti eleva a tensão e o medo, a ânsia do/pelo desconhecido; o tema de abertura reafirma a grandiosidade. E Kubrick, influenciado pela filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche, não poderia deixar de referenciá-la.

Não à toa que um dos temas de abertura mais famosos é justamente o aqui presente: Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zaratustra) um poema sinfônico de 1896 composto por Richard Strauss, o qual, infelizmente, não é parente do Johann. A breve mas memorável introdução da peça homônima da obra de Nietzsche se integra aos detalhes.

E ela propõe um diálogo sem palavras: Stanley quer mostrar que os diálogos são o que menos importa na obra, caso inexistissem pouca diferença fariam.

Dessa maneira Kubrick faz cinema: transmite a mensagem pela superposição, movimentação e repetição de imagens; pelas cores e pelos símbolos; pelas referências e formas; habilidoso é o ator que consegue ser expressivo sem pronunciar qualquer palavra.

Entre a quinta e a sexta vez que assisti ao filme, li o livro. E pude captar outros aspectos que me eram ocultos. Na abertura original, como exemplo, quando a tela simplesmente se apresenta preta, Kubrick calcula com maestria: o negro representa a escuridão do espaço, o infinito e o além que, juntamente com a música, prepara o espectador para a jornada. A ausência de cores simbolizará o vazio, mas também o medo , o inexplorado — e a morte. Além disso, não devemos nos esquecer do objeto fundamental da obra: o monolito (ou monólito, segundo a gramática). As proporções das telas do cinema à época respeitam as proporções do monólito (o livro da editora Aleph também apresenta estas proporções). Ou seja, os espectadores não estão simplesmente olhando para uma simples tela preta…

Concomitante a isto, a imagem inicial dos planetas alinhados com o sol nascente — que se repete na Aurora do Homem e na descoberta do monólito na Lua — simboliza a luz, a vida e o renascimento, assim como remete ao ícone de um antigo deus da religião neopagã Wicca.

Pude, também, relacionar a transfiguração: dos macacos Australopitecus afarensis, passando pelo homem explorador no meio do caminho que se pensa poderoso e protegido em seus casulos, e finalmente o (proto)Übermensch: o super-homem/além-do-homem de Nietzsche, uma nova forma evolutiva supra-humana, o renascimento do Homem representado pelo Bebê Estelar.

I’m sorry, Dave. I’m afraid I can’t do that

Vale salientar a importância no enredo de uma das inteligências artificiais mais marcantes do Cinema: HAL 9000 (Heuristically programmed ALgorithmic computer — Computador Algorítmico Heuristicamente Programado). HAL é a criação rebelde, o monstro contra o doutor, o ciclope computacional que impõe sua presença e se revela mais “humano” do que os próprios integrantes da espécie Homo sapiens na missão Júpiter. Isto porque HAL (que, reza a lenda, tem suas iniciais justamente por ser uma letra atrás da sigla IBM) expõe seus sentimentos, sua inteligência, sua loucura discreta e seus medos muito mais do que os tripulantes Dave Bowman (interpretado por Keir Dullea) ou Frank Poole (de Gary Lockwood). Basta analisar a cena de Frank recebendo as felicitações de aniversário de seus pais: sua seriedade e indiferença robóticas são de invejar qualquer T-800.

Eis o Homem mais robô do que qualquer robô. E mais macaco do que qualquer macaco.

“Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em vós resta muito do verme. Noutro tempo fostes macaco, e hoje o homem é ainda mais macaco do que todos os macacos.” — Friedrich Nietzsche

Parte 3: A Criança

Mesmo com toda a significância e expressividade da obra, há a clássica crítica sobre a sua lentidão e “chatice”. Concordo que, ainda hoje, sinto algumas das mesmas sensações de fastio que experimentei na primeira vez. Todavia fico atento aos motivos: o filme é propositadamente lento, justificadamente chato e justamente espetacular por ser assim, pois foi pensado de modo a oferecer ao espectador a “sensação espacial”, a leveza, o vazio e a lentidão do universo, do infinito escuro, os quais os astronautas da espaçonave Discovery One (e tantos outros) estão sujeitos.

Dave Bowman (Keir Dullea) se surpeende com os mistérios do monólito

Poder-se-ia seguir discutindo interpretações de 2001, assim como as teorias da conspiração sobre a chegada à Lua em 1969 ter sido uma farsa de Hollywood dirigida por Kubrick (algo citado no documentário Room 237 de Rodney Ascher). Outro ponto discutível é a relação do filme com a famigerada Guerra Fria e a rixa/resposta soviética de Andrei Tarkovsky com Solaris (1972)…

De toda maneira palmas cabem à produção por conta da busca de um rigor científico ao visitar ambientes da National Aeronautics and Space Administration (NASA), por procurar consultorias de engenheiros da agência, e desenvolver um dos trabalhos mais inspiradores do Cinema. Como bem dito por Ana Maria Bahiana neste excelente texto:

“Como a chegada do homem à Lua, um ano depois do seu lançamento, 2001: Uma Odisseia no Espaço tornou-se um marco, uma fronteira no gênero ficção científica.

2001: Uma Odisseia no Espaço nos leva da era pré-sapiens a um futuro não realizado (ainda); nos mostra transformações de espírito propostas por Nietzsche: o camelo, o leão e, finalmente, a criança; nos leva do medo à libertação, da escuridão da ignorância à luz do conhecimento.

“Dizei-me, porém, irmãos. Que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão que ataca se transforme em criança?” — Friedrich Nietzsche

Minha expressão ao terminar de assistir ao filme pela primeira vez

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”