A MEMÓRIA e a NOITE.

Diogo Zimmermann
ReViu
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4 min readMay 27, 2019

“O inverno está chegando".

Acredito que todo mundo que tenha internet já deve ter lido, ou ouvido falar dessa frase, citada por muitos e muitos personagens ao longo das incontáveis páginas das Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire) e dos episódios de Guerra dos Tronos (Game of Thrones).

À medida que avançamos, seja por entre as intermináveis descrições de G.R.R.Martin, ou pelos minutos em forma de áudio e vídeo que a produção da HBO nos entrega, percebemos que o inverno não é só a estação que, pelo menos aqui no Brasil muitos adoram. Frio, café quentinho e tudo mais não são nada se comparado com o verdadeiro temor de Westeros: O Rei da Noite e seu Inverno Sem Fim.

Tal personagem, que é a personificação da morte, do medo, do esquecimento, foi explorado pouco, apenas o suficiente para que, em tese, tivéssemos um clímax suficientemente bom ao chegar na oitava e última temporada da série de TV. E quem diria que teríamos uma entrega tão pobre para o que deveria ser a maior ameaça de toda a história.

Game of Thrones, a série televisiva, ao começar a criar suas próprias pernas quando os livros acabaram (de propiciar conteúdo, tendo em vista que Martin leva séculos para escrever o restante), começou engatinhando para o ápice da tristeza infundamentada que mais tarde os roteiristas deram o nome de roteiro. E isso, como eu temia, transmitiu para o personagem que mais me atiçava por mais: O Rei da Noite.

Afinal, depois de 8 temporadas de teasing sobre o que ele poderia ser, quem diria que ele no fim foi apenas um personagem qualquer, morto numa cena anticlimax, não é mesmo?

A VIDA:

Pouco foi explorado sobre o Rei da Noite, e isso, pensei, seria deixado para o final da série, a fim de termos uma espécie de laço mínimo com o personagem, seja ele de ódio ou amor. Mas caramba, eu estava bem errado.

Tudo o que nos é mostrado sobre o ser ameaçador é que ele foi um homem comum transformado na aberração que conhecemos pelos Filhos da Floresta, que estavam sendo ameaçados pelos Primeiros Homens. E isso foi literalmente tudo o que descobrimos sobre ele!

Para uma série aclamada, e livros que poderia lhes dar uma base incrível para ao menos um episódio de explicação mínima para uma entrega maior de terror, os roteiristas preferiram ir de encontro ao mais fácil, ao “surpreendente", e não ao coeso e leal às suas raízes.

A MORTE:

A história é émula do tempo, repositório dos fatos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro

— Miguel Cervantes

Quando chegamos próximos a esperada batalha contra o mal encarnado, Bran revela a todos que estavam reunidos no pequeno conselho de batalha, que o Rei da Noite pretendia apagar a memória de toda a história de Westeros para sempre.

Samwell Tarly diz então algo bastante parecido com o que Miguel Cervantes disse há tempos: a memória é o que nos torna vivos, a história é o que nos faz ser o que somos hoje e o que seremos amanhã.

A Longa Noite, ou a Noite sem Fim, acaba sendo não um momento do dia infinito, em que viveríamos em uma escuridão para o resto de nossas vidas — até porque estaríamos mortos — mas sim fazendo um paralelo entre a memória e a morte de um homem.

Ao destruir toda a memória, nos tornamos nada além do que caminhantes, sem rumo, sem referência, sem cultura. Caminharíamos para sempre num eterno e escuro vazio do esquecimento.

E isso tudo me assustou demasiado. Aquelas palavras me fizeram refletir a respeito de o que de fato é a memória que guardamos. Pensar que tais coisas seriam tiradas de mim fazia-me estremecer.

Passei o episódio inteiro da batalha contra o derradeiro fim de forma bastante ansiosa. Eu ansiava por aquele momento, um momento climático, em que olharíamos bem fundo nos olhos do Rei da Noite e ele desceria a espada em Bran.

E ficaram cara a cara. A trilha sonora impecável de Ramin Djawadi acrescentava ainda mais à tensão que se criava ali. Mas em questão de pouquíssimos frames, o ser destruidor, ameaçador, o entregador do medo, aquele que ficou 8 temporadas sendo vendido como o pior pesadelo de Westeros, foi morto por Arya.

Veja bem, o fato de Arya tê-lo matado pouco importa. O que me entristeceu profundamente foi a morte tão simples, facilmente resolvida.

“Você não viu quantos morreram para aquilo acontecer?”

Vi, e os roteiristas preferiram converter Arya como um Deus Ex Machina.

Talvez se possuíssem mais uma temporada, eles conseguissem explorar melhor tudo o que aconteceu. Talvez não, eles poderiam enrolar ainda mais e pouco ajudar.

Mas quando temos um vilão com tamanho potencial a ser explorado, e simplesmente jogamos ele para segundo plano em favor a uma guerra já ganha de Daenerys contra Cersei, precisamos analisar o que há de errado com nossas noções de planejamento geral.

Tudo bem, a Guerra dos Tronos provavelmente fosse o verdadeiro foco de sempre. Mas quando a Noite chegou — a mesma que era cheia de terrores — provou-se simplória e pouco satisfatória.

Infelizmente, o Rei da Noite conheceu seu fim, prematuro e pouco digno.

Embora ao menos possamos continuar nossas vidas, vivendo bem longe da Longa Noite…

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