A Vingança nunca é PLENA

Gustavo Simas
ReViu
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6 min readApr 27, 2019

Artigo sobre Vingança e análise de Vingadores: Ultimato

Este texto não tem spoilers de Vingadores: Ultimato

Parte 1: Um prato frio

Quando em 2008 eu li/ouvi dizer que o filme Homem de Ferro tinha uma cena pós-créditos, fui correndo procurar algum vídeo com qualidade razoável que a mostrasse no Youtube (sim, já existia Youtube em 2008 e não tinha propagandas). Em tal parte, Tony Stark torna à casa e encontra um senhor curioso com tapa-olho. Essa figura careca o informa sobre um Universo maior do que o gênio, bilionário, playboy, filantropo imaginava que pudesse haver…

Pois aí iniciava o investimento audacioso para o Marvel Cinematic Universe (MCU). E nem eu imaginava o grande Universo que viria.

Matrix Reloaded, Constantine, Curtindo a Vida Adoidado e vários outros filmes já apresentavam esse recurso de cena após o encerramento como piada, revelação para algo da trama ou como sugestão de continuação da saga. Porém foi na Marvel que esse utilitário se consolidou. E mais do que produzir narrativas isoladas no Cinema, a ambição era desenvolver personagens carismáticos, interconectar um universo de ideias e unir forças para explorar o potencial de aventura, drama e comédia, tal qual foi projetado nos quadrinhos por Stan Lee, Jack Kirby e Dick Ayers em setembro de 1963 (como resposta à Liga da Justiça construída pela DC, a bem dizer…).

Aos poucos se foi disseminando entre os espectadores fãs um estado de animação a cada teaser ou trailer de próximo filme; indagações sobre easter eggs e elaboração de teorias mirabolantes; ansiedade após o rolar dos créditos para receber dicas de um futuro surpreendente.

Assim, 11 anos, 21 filmes e 44 horas e 50 minutos depois é lançado Vingadores: Ultimato, simbolizando o encerramento do “primeiro estágio”, o qual se considera como sendo composto pelas 3 fases iniciais do MCU.

E se percebe claramente que valeu o esforço de todos os envolvidos, e a paciência dos bravos espectadores.

Parte 2: Justiça Selvagem

O motorista da Uber falava de sua esperança para o filme. Mortes e retornos, combates e caminhos possíveis, palpites e análises. Ele já havia assistido pelo menos duas vezes a cada um dos 21 precedentes relacionados àquele que estreava. Comentávamos que estava sendo um ano de encerramentos: Vingadores, Game of Thrones, Star Wars…

O cinema era festa. Holofotes, dj, sorteios, fantasiados, uma réplica da Manopla do Infinito exposta no hall. O público já possuía a pipoca e os óculos 3D em mãos. Amigos se encontravam, cantavam e dançavam para celebrar o momento. Um evento em que dominava a sensação de conforto, contentamento e fuga temporária da realidade oferecida pelas 3h de sessão. Todas as salas, com ingressos esgotados há dias, transmitiriam ao mesmo tempo aquela obra de fantasia, aventura e ficção-científica.

Menos a sala 4.

No longo espaço de tempo coberto das 23h50 até 00h20 o telão ultra-wide-big-giant em conjunto com o sistema de som Dolby Atmos exibe youtubers comentando sobre o histórico de filmes, expectativas acerca da história finalizadora desta fase e projeções para a posteridade. O público se irrita e requisita aos berros o início da sessão. Um funcionário do shopping chega então à base da sala e nos explica que a equipe notou um atraso no som e está buscando solução para este inconveniente delay. Pouco mais de 10 minutos passados, o problema técnico é resolvido, as luzes se apagam e a tela é iluminada com a projeção do filme.

Porém algo ainda está estranho… O erro é logo percebido por olhos e ouvidos agoniados: falha no cruzamento de imagens para resultar no efeito 3D, além do som em baixa intensidade.

A tela é congelada.

Mais alguns minutos de grandes murmurações, fluxo de pessoas na saída/entrada, petições recheadas de impaciência. Xingamentos e risos.

A tela é desligada. O filme reinicia.

Agora o público vai poder assistir até o último segundo sem interrupções. Custe o que custar.

Certo dia Epicuro falou e disse:

“A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem”

Um desejo derivado de um estado de humor alterado devido à perda e/ou situação indesejada que o indivíduo vivenciou. O ato de retaliação seria instintivo? A “justiça selvagem”, como dita por Francis Bacon, emerge inevitável quando ultrapassado o limiar da tolerância. Quão útil é a revanche? Justiça, como conceito abstrato e mecanismo de mediação do que é devido aos executores de ações a serem julgadas… Justiça cabe múltiplas interpretações. Tendo o sentido de proporcionar equidade, acaba por remeter a impasses e consequentes discussões sobre o que seria este último termo. Na corrente de ideias que a encara como moderadora do bem-estar geral, pode gerar a discussão acerca da maneira ótima de se maximizar um estado de satisfação, passível de ser estendida a um cunho econômico.

De toda forma, independente de perspectivas utilitaristas, libertárias, etc., os heróis aqui entendem justiça de forma contrária ao dito proverbial que afirma: “a glória de um homem é ignorar as ofensas”. Ignorar e se resignar com a dura carga do tempo e das perdas não traz o bem maior (não seria o bem maior de Grindelwald, em Animais Fantásticos, justo igualmente?).

Sob esse ponto é necessário contornar a moral, tomar uma decisão. E impor um Ultimato.

O extenso processo esfria o prato. No fim, o banquete é delicioso, mas com algum um custo considerável.

Cada cena que compõe o buffet marvelesco é memorável. Opções doces, apimentadas, exóticas… Notadamente há uma mescla das peculiaridades de cada integrante, combinada de forma harmoniosa com as personalidades imagéticas e musicais de cada filme antecessor. Entrega-se exatamente (e além) do que se pedia, o que provoca a vontade de deixarmos uma boa gorjeta pela experiência.

Em relação à composição narrativa, é admirável o equilíbrio (Thanos curtiu isso) que os irmãos Russo conseguem capturar na obra, entregando a escala macro com o frenesi das dimensões que extrapolam o campo de visão, em consonância com a simplicidade e o foco emocional da escala micro. Em detalhe, podemos ver a fraqueza dos que são ditos super e suas reações à perda e desastre: o amor e altruísmo frustrado de Steve Rogers (Capitão América); a honradez e receios de Tony Stark; a busca por família e resistência de Natasha Romanova (Viúva Negra); o controle racional de Bruce Banner; a sensação de abandono e sofrimento de Clint Barton (Gavião Arqueiro); a desmotivação do Deus do Trovão.

Em certo momento do filme (mais especificamente na batalha final), enquanto muitos aplaudiam, gritavam, choravam e batiam os pés, eu me mantive boquiaberto e imaginando a demora para a renderização daquelas imagens, o espaço de armazenamento necessário para a tonelada de dados daqueles efeitos especiais e a quantidade de colaboradores envolvidos para a produção daquela cena. O espetáculo aparenta hiperbólico, mas é uma Maravilha.

Daqui para frente uma nova fase e novos rostos surgirão. E o impacto do que ocorreu não se desintegrará como um pó ao vento.

Parte 3: Ideias nunca morrem

Por baixo da máscara há uma ideia”, disse V.

Por trás da capa, por baixo da armadura, por baixo do uniforme há indivíduos que desejam, que aprendem e que transmitem razões com suas ações e olhares, e que fazem o espectador se sentir representado. Representatividade, empoderamento, diversidade. Marvel não decepciona em nestes tópicos.

É interessante perceber também que o filme retrata ações de superação numa condição de quase pós-apocalipse. Embora traga todos os heróis cinegrafados na última década, explora mais a relação e pensamentos dos Vingadores originais vistos na película de 2012: Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Viúva Negra, Hulk e Gavião Arqueiro; sendo todos, no fim, bem resolvidos. A nostalgia/melancolia/saudade/felicidade conduz ao choque, êxtase e alívio.

Enfim, Ultimato é um marco de bela importância para a Marvel e para o Cinema. Pois as obras de fantasia são uma grande forma de entretenimento contemporâneo, unidora de gerações. São fundamentais para atiçar o criativo coletivo e possibilitam uma discussão descontraída, mas aguda, sobre problemas que vivenciamos longe dos bancos confortáveis das salas de cinema.

P.S.: Escrevi algo também sobre vingança e frustração nesse artigo. E esse outro artigo discute que spoilers não vão arruinar a sua experiência como você pensa…

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Gustavo Simas
ReViu
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”