I have a DREAM

Gustavo Simas
ReViu
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7 min readJul 19, 2020

Um artigo sobre Perspectiva e análise de Superliminal

Parte 1: “Mr. Sandman, bring me a dream…”

Pelo que me lembro, se minha memória não me falha, quando criança tive um kit de mágica. Ou, por outro lado, o melhor seria dizer “kit de ilusionismo”. Porém, à época, como eu era incapaz de distinguir os termos, pensava que aquilo seria meu passaporte para um mundo novo, um futuro de truques para a fama e o sucesso. Ao abrir o kit deparei-me com alguns instrumentos e cacarecos diversos: cartas, elásticos, moedas, canetas, mini-cartola, panos, papéis… Objetos comuns que, ao observar um profissional manuseando, tornavam-se espetaculares diante de meus olhos.

Contudo ali, na minha frente, debaixo da cartola não havia coelho algum; o pano de seda era mais útil para limpar do que para entreter; as cartas serviriam melhor como uma reposição de meu outro baralho. A banalidade da cena desconstruía o cenário místico de um show de magia/ilusionismo. Um folheto tutorial se apresentava como último objeto no fundo do kit: texto e mais texto de instruções para os mágicos padawans.

Li.

Tentei executar os movimentos conforme as descrições.

Reli.

Nada.

Minhas mãos não se moviam sozinhas para completar a ação como desejava, nada dos confetes explosivos para encerrar o manejo, nada do movimento fluido de mestres ilusionistas. Já no primeiro dia de treino a frustração superou a expectativa, logo a desistência emergiu como saída tentadora. E, infelizmente (ou felizmente, nunca se sabe) não hesitei em guardar o kit no fundo do gavetão para empoeirar-se por todo o sempre.

Tive de assistir a mais episódios de Criss Angel, tentar identificar os segredos de Mister M, fuçar sobre Copperfield e Houdini para perceber a diferença entre magia e ilusionismo, remontar o significado de “truque” e constatar as veracidades dos fatos.

E, assim, o sonho acabou.

Um mágico nunca revela seus segredos”. Mas depende.

A curiosidade intrínseca e vontade humana de sermos surpreendidos são o que levam a dirigirmos nosso foco para aquilo que se afirma “fora do normal”. O surreal é atraente. Natural é o desejo de satisfação por surpresa a partir de fato intrigante. Instintos detetivescos se aguçam — viva a sagacidade dos que ousam desvendar os segredos de tudo que se denomina mágico.

Mas depende. Pois “tudo é relativo”. Eis a frase einsteniana que, em si, pode ser relativa; logo nem tudo é relativo. Um eclipse só é um eclipse quando visto a partir de uma perspectiva. Um ponto de vista.

E é algo neste caminho que Superliminal, jogo desenvolvido pela Pillow Castle, tenta explicar.

“O sonho é a satisfação de que o desejo se realize.” — Sigmund Freud

Parte 2: “You may say I’m a dreamer…”

O cérebro busca satisfação e conforto ao processar todos os sinais que recebe. Tentamos interpretar sons que são meros ruídos, barulhos desinteressantes; procuramos encontrar significado em imagens estranhas, identificar rostos em objetos inanimados (num fenômeno conhecido como pareidolia); buscamos resgatar a origem de sensações de dor que não sabemos exatamente de onde surgiram. Reações comumente são desencadeadas com liberação de hormônios e demais formas de manutenção da homeostasia do organismo. Isto pois, voluntária ou involuntariamente, estamos sempre à procura ̶d̶a̶ ̶f̶e̶l̶i̶c̶i̶d̶a̶d̶e̶ de estabilidade.

Podemos verificar isto claramente pela Pirâmide de Maslow, um instrumento gráfico desenvolvido pelo psicólogo estadunidense Abraham Harold Maslow. A pirâmide é sustentada pela Fisiologia, a qual representa nossas necessidades mais básicas (abrigo, sono, comida); em seguida temos Segurança, Social, Estima e Realização Pessoal. Mas, aqui, focaremos na Segurança, andar no qual se situa a segurança da família, da propriedade, do corpo. E a segurança cognitiva. Embora os conceitos da Pirâmide ainda sejam muito debatidos no campo da psicologia, é um instrumento aceito e bastante referenciado ainda hoje.

E segurança cognitiva é saber com uma acurácia mínima os tópicos principais de questão a serem apresentados: onde, por que, como e quando estamos. É sobre processar e entender os sinais coletados pelos 5 sentidos de forma assertiva. É sobre conseguir alargar o círculo (ou bolha) da compreensão, para que o limiar da ignorância se distancie, mesmo que seja impossível expandir infinitamente tal limiar. E fazemos isto, pois o desconhecido nos assusta. E o que está fora de nossa ilha do conhecimento pode ser amedrontador…

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Tendo isto avaliado, podemos afirmar que Superliminal trabalha bem com estes conceitos. Somos desafiados a manipular objetos (com uma mecânica parecida com Portal), seguir um caminho com presença de um narrador atento a nossos passos (como em The Stanley Parable) e pensar fora da caixa. O doutor Glenn Pierce é a figura presente em voz que nos relata sobre os rumos e desrumos do protagonista sem pés e sem sombra que controlamos. Somos dotados de superhabilidades, como conseguir alterar dimensões de objetos, dependendo da perspectiva; criar caminhos antes impossíveis, apenas ao modificar o ponto de vista.

A obra interativa é repleta de simbolismos: o xadrez e a lógica; o despertador-rotina com o mesmo horário de sempre; a cama e o quadro de nuvens de sonho; a maçã, fruto proibido. Uma bela poesia visual composta por designers e programadores.

O fio de Ariadne narrativo segue o clássico modo de salas de desafios. Passamos um quebra-cabeça e avançamos para o próximo, com elevação de dificuldade e uma abordagem semelhante, porém com leve distinção para que possamos aprender algo novo. A curva de aprendizagem é rápida, afinal o jogo não é longo como os AAA, por exemplo. Em verdade, um considerável naco de jogos indie acompanha esta tendência: explorar uma ideia inovadora (ou quase-inovadora) e construir uma história de fundo para preencher os vazios e tornar a obra coesa em poucos minutos ou poucas horas de gameplay.

Caminhamos por espaços repetidos neste puzzle/walking simulator. Descobrimos que estamos sendo testados, que somos cobaia de um experimento com boas intenções. E nos divertimos (com a sensação recompensatória após a irritação devido ao árduo esforço intelectual) neste breve sonho lúcido.

E toda esta experiência nos mostra que, em muitos casos, tudo o que precisamos fazer é abrir os olhos.

“Para realizar um sonho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é não realizar.” — Fernando Pessoa

Parte 3: “Don’t dream it’s over…”

Na Wikipédia, “liminaridade” é descrita como:

“Um estado subjetivo, de ordem psicológica, neurológica ou metafísica, consciente ou inconsciente, de estar no limite ou entre dois estados diferentes de existência”

Já no dicionário de inglês, superliminal é um termo relacionado à psicologia, fisiologia ou atividade mental que significa pertencer ou estar envolvido em um estado de alcance de consciência acima da consciência normal. Uma consciência acima do consciente ou do subconsciente. Uma metaconsciência com este pseudo-quase-pleonasmo.

E, sobre isso, artes de Salvador Dalí e, especialmente, do artista holandês Maurits Cornelis Escher conseguem nos transportar para um mundo de perspectivas incomuns, sendo, de mesmo modo, uma espécie de demonstração de “superconsciência”. A inteligência espacial de Escher, além de suas habilidades de transformação de ideias em desenhos, são notáveis e fascinantes. E, por conta disso, era capaz de criar (ou descobrir) e expressar um mundo possível além do habitável; um universo de pensamentos fora da caixa.

Relativity, litografia de M.C. Escher, 1953

Superliminal apresenta uma proposta interessante em uma gameplay de aproximadamente 2 horas. A mecânica é conhecida, como já referenciado na parte anterior deste artigo relacionando a outros jogos conhecidos, sendo isso algo que facilita o entendimento por parte dos jogadores. O design de níveis é bem cuidado, embora possa ter sido melhor explorado com o leque aberto de combinações. Em alguns momentos ficamos presos por conta da exigência de precisão acima do normal nos comandos, dificultando em termos locomotores (e não só intelectuais/lógicos) esta obra interativa.

Mas nada que um pouco de paciência não resolva para abrir portas e liberar caminhos neste déjà vu onírico.

A lição final que fica é de um “nem tudo que reluz é ouro” mais completo. E mais complexo. Pois, quem planta tamareira não colhe tâmaras. E não necessariamente pelo número de recuperados que temos um bom índice para afirmar um cenário positivo de uma pandemia…

E, escrevendo isso agora, pensando bem, acho que minhas memórias de infância com kit de mágicas tenham sido, talvez, apenas um sonho…

“A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata.” — Virginia Woolf

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”