Mas eu tô RINDO à toa

Gustavo Simas
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12 min readOct 8, 2019

Um artigo sobre Humor e análise de Coringa

Parte 1: “Tô numa boa, tô aqui de novo…”

Falamansa é uma banda brasileira de forró formada em 1998 na cidade de São Paulo. Com a ascensão do forró nas noites da capital paulista, surgiu na cidade um movimento para atender a demanda das casas noturnas e do público adolescente, que se identificou de imediato com a dança e com o ritmo contagiante do estilo.

Isso é o que a Wikipédia brasileira diz sobre este grande grupo.

E o que isso tem a ver com o atual filme do Coringa? Atual, quero me referir aqui, ao de 2019 (caso você esteja lendo este texto num futuro não tão distante em que há outro filme do Coringa). Bem, a princípio: nada. Mas, se você parar para analisar um pouco mais cuidadosamente, cara leitora ou caro leitor, algumas canções, mais especificamente a Rindo à toa e a Xote da Alegria, têm tudo a ver. E, a bem da verdade, me parece que elas sintetizam o espírito deste filme melhor do que Smile, a qual foi composta por Charlie Chaplin em 1936 para seu filme Tempos Modernos e é tocada na película com interpretação de Jimmy Durante.

Pois bem. Talvez você ache isso engraçado. Se sim, então é possível que seja devido a alguns pontos característicos de uma contradição, da criação de uma imagem e formação de conceito derivado de duas coisas desconexas. Isto pode ser explicado a partir de uma das 3 teorias do humor: a Teoria da Incoerência. Vejamos.

1. A Teoria da Incoerência

Segundo o magnânimo pessimista filósofo alemão xará do Coringa, Arthur Schopenhauer:

“A razão do riso em todo caso é simplesmente a repentina percepção da incongruência entre um conceito e os objetos reais que foram pensados através dele em alguma relação, e o riso por si só é apenas a expressão dessa incongruência”

Meme sobre livro proibido na Bienal do Rio de Janeiro 2019

Eu, como criador de uma página de memes, a Centro Tecnológico Memes — CTM (aliás deixem o like na page, sigam o canal, ativem o sininho…) utilizo da teoria da incoerência o tempo inteiro. O meme ao lado representa um exemplo. Temos a junção de dois assuntos, aparentemente, sem grande ligação: um livro de Cálculo, amplamente empregado no estudo de Ciências Exatas e Engenharias, somado a uma notícia nacional, altamente popular na semana a qual foi lançada, sobre a intenção da prefeitura do Rio de Janeiro em proibir a venda de um certo livro de História em Quadrinhos (HQ’s) na Bienal. O fato, quase fantasioso, foi recheado de reviravoltas.

Vale a pena ver de novo.

Uma observação válida é que ninguém precisa saber solidamente e dominar estas teorias do humor para produzir memes, contar piadas ou ser comediante. A simples ideia disso ser mandatório é risível e, em si mesmo, incoerente. Eis, apenas, que a ideia da relação inesperada de conceitos disparatados é o ponto-mor, o gráviton desta Teoria. Imannuel Kant não morreu sem antes dizer:

“O riso é um afeto resultante da transformação repentina de uma tensa expectativa em nada”

Levando ao subentendimento de que uma piada de boa qualidade deve mesclar dois elementos altamente contrastantes de forma que estabeleça forte relação entre ambos. Obviamente nem tudo agrada a todos. Temos aquele velho clichê de que nem Jesus agradou todo mundo. De todo modo, vale a tentativa de causar a gargalhada pela incoerência sagaz.

Mas não só de incoerência vive o riso do homem…

2. A Teoria do Alívio

Frequentemente, o humor surge da total falta de coesão entre conteúdos apresentados, de uma incongruência mais complexa, do absurdo, de um deslocamento da realidade; o que seria o nonsense. Pela própria denominação desta expressão inglesa, algo (seja verbal ou não) provoca o riso (seja vocal ou não) pela ausência de sentido, nexo, lógica, coerência. Alice no País das Maravilhas, Rick and Morty e Rubber, o Pneu Assassino são alguns exemplos de obras que exploram a forma de arte desprovida de sentido, mesmo assim, divertida.

E a carência de significado alinha-se com a Teoria do Alívio por ser possível expressão de algo suprimido consciente ou inconscientemente. E quando falamos de consciência, psiquê, e tópicos relacionados, citamos quem?

“O humor é a maior manifestação dos mecanismos de adaptação do indivíduo” — Sigmund Freud

Coringa dançando: Eu curtindo as férias. Coringa se maquiando e chorando escrito: eu me arrumando 6h da manhã pra ir à aula.
Meme da Centro Tecnológico Memes (CTM)

O austro-húngaro Sigmund Schlomo Freud nos trouxe, ao longo de sua vida, conhecimentos relevantes sobre sonhos, desejos involuntários de se casar com a mãe, interpretações de medos, etc. Em O chiste e sua relação com o inconsciente (obra de 1905) debate sobre a origem do riso, sobre técnicas que usamos para incitá-lo. Revela que a exteriorização do riso, como energia nervosa interior, é forma de relaxamento, de libertação de alguma censura ou repreensão social. Vivemos em uma sociedade. E as pressões se acumulam, de modo que o comportamento fora dos padrões, o excêntrico (benigno) e a identificação com uma problemática coletiva resultam na exibição de dentes.

O meme anterior tanto usa da Teoria da Incongruência (imagens do filme fora de contexto) em superposição com a do Alívio (identificação do público com uma comum problemática estudantil). E esta técnica pipoca em páginas humorísticas desde atualmente e sempre. Tampouco a graça tem data de validade.

Pois, sendo sincero, muito do que produzo em memes (e do que se vê) é apenas repetição da mesma ideia em adornos diferentes.

Vimos duas teorias que visam explicar aspectos do humor. Quem são, onde vivem e do que se alimentam. Prosseguiremos, para a última delas…

“Sempre que vou fazer alguma coisa, eu penso: ‘será que um idiota faria isso?’. Se sim, então eu não faço essa coisa.” — Dwight Schrute

Parte 2: “ Doeu, doeu, agora não dói, não dói, não dói…”

Arthur Fleck muitas vezes dança no filme, com sua magreza ossuda evidente. Joaquin Phoenix teve de emagrecer 23 quilogramas ao longo de 4 meses de preparação fisiológica, mergulhado numa dieta baseada em maçã, alface, vagem de feijão verde ao vapor. Ele bailou conforme a música e se esquivou de pretzels, donuts e batata frita. E fez com que a dança de Fleck fosse de um movimento transformador. Os gestos no banheiro me lembram do que Tato canta:

“Tô ficando esperto. Já não pergunto se isso tudo é certo. Uso esse tempo pra recomeçar”

Palavras e dança que representam o fluxo de alteração do ser.

Joaquin afirma que o peso baixo permitiu uma movimentação graciosa que não previa ser capaz de fazer. Comenta que se inspirou no ator Ray Bolger, mais especificamente na dança de The Old Soft Shoe, proposta a Phoenix pelo coreógrafo Michael Arnold. O ator elucida que os gestos arrogantes impressos por Bolger ajudaram a construir a 2ª arte nesta obra dirigida por Todd Phillips (pessoa que gosta bastante de viagens insanas e filmou Road Trip, Se Beber, Não Case! e Um Parto de Viagem).

Arthur, o palhaço de aluguel pisoteado e vilipendiado, evolui para figura de entretenimento do caos, criador de entropia. Símbolo da pirâmide invertida e superioridade cruel na sombria Gotham City. Uma caminhada de superação por uma longa e tortuosa estrada. Com pedras, lágrimas e sangue no caminho…

“Doeu, doeu, agora não dói, não dói, não dói. Chorei, chorei, agora não choro mais”

3. Teoria da Superioridade

Nem todo humor vem da desgraça alheia. Numa pesquisa rápida no Google (mais precisamente, 4 segundos) podemos encontrar este artigo do maior site clickbait do planeta: Buzzfeed, que traz alguns exemplos.

Enquanto Charlie Chaplin dizia que “a vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe”, outros comediantes explanavam em detalhamento, exemplificando:

“Tragédia é quando eu corto meu dedo. Comédia é quando você cai num esgoto e morre” — Mel Brooks

Eu sempre

E aqui temos a explicação das famigeradas pegadinhas. Rimos ao testemunhar outrem inseridos em situações de risco (controlado), trapalhadas, fracassos e tombos diversos durante ocasiões corriqueiras.

Nos últimos anos, com uma mudança de mentalidade do público (coachs diriam mindset), da extensão da empatia, do politicamente correto em crescente, etc., surgiu a visão de que a teoria da superioridade pôde relaxar vagamente. Pode-se ver, por exemplo, em termos televisivos, porque algumas vídeo-cassetadas do Faustão ou pegadinhas do Silvio Santos não são mais tão engraçadas. Outrossim, o rol de opções foi ampliado por motivos de internet. Ainda vemos muito do riso a partir da distinção de posições, da inferiorização e condutas insalubres. Menes (com “n”), por outro lado, são plantados, cultivados e cultuados como peças de humor, contra a perpetuação do preconceito.

Vale ressaltar que são tênues as bordas entre o sem graça, o engraçado e o chocante. E o filme trabalha bem com isso, nas risadas involuntárias (contagiantes, em certo sentido) de Fleck que terminam num engasgo de agonia; na sua ingenuidade infantil com requintes do maligno; no seu narcisismo atrapalhado. O homem toma consciência de suas ações e quebra regras: fuma em lugares proibidos; entra em portas destinadas a “apenas saída”; ri do que não é próprio à risada.

E, paulatinamente, torna-se o que sempre quis… Mas não exatamente da maneira que desejava.

“Se um dia alguém mandou ser o que sou e o que gostar, não sei quem sou e vou mudar. Ser aquilo que eu sempre quis”

Teoria da Violação Benigna

Outra teoria, à parte das três anteriores, foi confeccionada recentemente e explora o conceito das precedentes, numa tentativa de investigar e unir as conclusões propostas por cada uma delas num compêndio lógico e eficiente.

Peter McGraw, professor diretor do Humour Research Lab (HuRL), propõe a Teoria da Violação Benigna (Bening Violation). Nela o humor (para pessoas “normais”, claro) provém da intersecção entre o que é benigno e o que viola alguma regra ou padrão. Isto sintetiza as características da incongruência, do alívio e da superioridade.

Inclusivamente, há a caracterização do engraçado pela distância, seja temporal ou espacial. Assim, algo de maior violação exige uma compensação de espaçamento. Por exemplo: dizer que “eu bati meu mindinho na quina da estante hoje de manhã, quando estava apressado para o trabalho” aparenta apresentar maior teor humorístico do que “eu bati meu mindinho na quina da estante 10 anos atrás”. Para alguns, a primeira vale o sorriso pelo contexto atrapalhado; para outros, a segunda frase pode parecer mais engraçada devido ao deslocamento de nexo, o que remete ao nonsense.

Adicionalmente, podemos comparar a tendência ao riso com afirmações sobre passado, presente e futuro: “eu estava levando meu tio no médico quando batemos numa ambulância ano passado” com “alguém, neste exato momento, está morrendo atropelado” ou “você vai morrer numa batida de carro daqui a três meses”. Na primeira, temos a expressão de algo pessoal e um tanto irônico. Na segunda, vemos algo que, provavelmente, é um fato, sem grandes surpresas. Na última, apenas uma prospecção maligna (ou uma previsão acertada, nunca se sabe).

Diagrama de Venn da Teoria da Violação Benigna

Tendo isto em vista, este artigo analisa, auxiliado por dados como evidência, a aplicação da Teoria da Violação Benigna no contexto do simples ato de nomear um cachorro (“Schlomo” seria minha sugestão de nome engraçado). As conclusões remetem a potenciais tecnológicos desde aperfeiçoamento dos atuais sistemas de recomendação, até substituir por robôs os humanos comediantes fracassados de stand-up (se isso já não é um pleonasmo).

Portanto, a Teoria da Violação Benigna tenta estimar o que é risível a partir de leis simples, da intersecção entre dois conjuntos distintos, representável por um básico Diagrama de Venn, como mostrado. Todavia, o que realmente parece ser mais engraçado a um indivíduo (ou se nada lhe parece), cabe à subjetividade.

E esta é somente uma das tantas pesquisas científicas em progresso atualmente. O humor continua sendo amplamente analisado e inovado, inclusive com intenções de certos matemáticos aficionados em desenvolver um modelo que prediga se algo é engraçado ou não.

Pudemos ver alguns parágrafos atrás que o camarada Choppenhauer afirmou com propriedade e com toda a veemência da sua força interior e do seu coração que o humor é unicamente proveniente da incongruência. Creio que podemos dizer: “Errooou”. Não só disso que surge a explosão de uma gargalhada.

Como bem dito por Herbert Spencer, biólogo, filósofo e antropólogo contemporâneo de Darwin:

“O riso é uma expansão de energia nervosa, uma transição rápida entre um pensamento solene e outro trivial. O que deixa um estoque de energia nervosa que necessita ser gasto na forma de riso”

Ademais, o riso explode de estímulos vários, não limitando-se apenas ao humor: embala-se no pacote a criatividade artística, a descoberta científica, entre outros instantes de júbilo pessoal ou coletivo.

Enfim, vemos que o humor consiste, aditivamente, numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e ainda tirar prazer disto.

O que é majestosamente retratado no filme e relembrado por Tato, no embalo da sanfona:

Toda mágoa que passei é motivo pra comemorar. Pois se não sofresse assim, não tinha razões pra cantar…

“As pessoas dizem, ‘ah, é perigoso para manter armas em casa ou no local de trabalho’. Bem, eu digo, é melhor ser ferido por alguém que você conhece, acidentalmente, que por um estranho, de propósito.” — Dwight Schrute

Parte 3: “Pois se não sofresse assim não tinha razões pra cantar”

Coringa apresenta uma das possíveis origens de um dos maiores vilões dos quadrinhos. A transformação de um palhaço freelancer solitário, que cuidava de sua mãe num cubículo de apartamento, em um símbolo assustador de vingança e anarquia. Encontramos a arte do clown, com a retirada de máscaras ao cutucar a ansiedade própria e alheia, por meio da experiência corporal, do silêncio angustiado, num exercício de auto-conhecimento e reconhecimento do mundo.

Coringa traz referências claras a obras de Martin Scorsese, principalmente a Taxi Driver e O Rei da Comédia. Robert De Niro protagoniza ambos, interpretando, no último, um homem que sonha em ser comediante famoso de tevê e acaba por quebrar algumas regras… Por genialidade de escalação de elenco, aqui, De Niro interpreta justamente um comediante famoso de tevê.

Coringa é um filme mau. Tanto para seu protagonista quanto para os personagens ao redor. Expõe à desgraça uma pessoa com labilidade emocional intensa, com fatores patológicos que merecem atenção, sendo a síndrome pseudobulbar uma explicação médica plausível para sua condição. Tal síndrome emerge como reação de outras doenças neurológicas, afeta o controle sobre língua e músculos faciais, podendo causar também disartria (dificuldade na articulação da fala), disfagia (dificuldade na deglutição), disfonia (dificuldade na produção vocal). Embora o diagnóstico esteja implícito na obra e seja incerto.

Coringa faz dançar e expandir o peito de alguém que passa a viver sobre sorrisos e mentiras, pantomimas e patuscadas. Alguém que sente regozijo do sarcasmo e do vazio neurótico. Alguém que provoca momentos catárticos e apoteóticos em histeria coletiva piromaníaca.

Coringa consegue montar parcialmente e embaralhar um quebra-cabeças narrativo de um universo muito maior no qual está contido. Sutilmente evoca a Psicologia Evolucionista que, oposta ao medo, planta o riso na face por conta de algo, anteriormente percebido como assustador, o qual agora se apresenta como desprovido de ameaça. Uma reação do cérebro às amenizações percebidas num situação tensa.

Coringa deixa aberta a possibilidade do múltiplo; incita a indagação sobre o “real” e o fictício; propõe um exercício de imaginação aos espectadores. Como comentado pelo próprio diretor, é possível que o Coringa aqui representado não seja o verdadeiro, mas apenas tenha influenciado o verdadeiro palhaço do crime.

Sobre isto, não sou capaz de opinar.

E, se o velho ditado já dizia: “rir é o melhor remédio”, Coringa e Falamansa reforçam o ensinamento que, apesar dos problemas, apesar dos pesares… um sorriso ajuda a melhorar.

E se acaso você diz que sonha um dia em ser feliz. Vê se fala sério…

Isso é tudo, pessoal! :)

“Eu nunca dou risada se posso evitar… Mostrar os dentes é um sinal de submissão nos primatas. Quando alguém sorri para mim, tudo que vejo é um chimpanzé implorando por sua vida.” — Dwight Schrute

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”