Minha LÍNGUA é minha PÁTRIA

Um artigo sobre Linguagem e análise de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain

Gustavo Simas
ReViu
7 min readAug 10, 2018

--

Este texto também está disponível em versão áudio:

1. No Princípio era o Verbo

“Não choro por nada que a vida traga ou leve” — Fernando Pessoa

Fernando Pessoa era um gênio. Também o é, Hideo Kojima. Embora não possamos comparar a genialidade de figuras não contemporâneas e que têm seus campos de atuação em áreas tão distintas... Porém ambos nos presenteiam com arte. E com sensações. E com significados que transbordam o simples espaço de uma página de livro ou de uma tela de televisão.

Nunca joguei muito a série de games Metal Gear Solid. Talvez pelo maior desejo de cores e ação nas desventuras megalomaníacas de Grand Theft Auto (GTA), ou pela atração à brutalidade espartana, desmotivada e combinada com tragédia grega de Kratos em God of War. Ou talvez porque a confusa história da série Metal Gear me anti-seduzia, em termos cronológicos, de um jeito mais repelente do que a série dos X-Men nos cinemas...

De todo modo, foi em Metal Gear Solid V: The Phantom Pain (MGS: TPP) que percebi e reconheci, de fato, a grandiosidade da saga.

Diferentemente do 7º jogo lançado (Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots), o qual joguei 10 anos atrás e trata sobre controle/descontrole e mudança, TPP nos introduz uma discussão incisiva e épica sobre Linguagem.

Big Boss/Punished Snake e Skull Face batendo um papo

Skull Face, o, a princípio, vilão da obra, utiliza dos conhecimentos em biologia genética e ciência natural de Code Talker, apelido de um sábio ancião Diné (navajo), para modificar um parasita capaz de se alojar nas cordas vocais de hospedeiros humanos, infectar seus pulmões e conduzi-los ao destino fatal. O detalhe, contudo, é que diferentes cepas de parasitas existem para diferentes linguagens, sendo ativados de acordo com a detecção de uma sequência específica de frequências que determinam a característica da língua. Traduzindo: há certos parasitas que infectam falantes do português, outros parasitas específicos do espanhol, outros do inglês, etc., compondo um arsenal — pronto para o apocalipse — de todas as 6.912 linguagens existentes no planeta (no então ano de 1984 em que se passa a história).

Isto pelo (com o perdão da piada literal) desejo mortal do Rosto de Caveira em exterminar a língua imperialista estado-unidense, em um ato vingativo por sua infância, por sua família e por sua linguagem nativa perdidas. Pois é pela destruição do meio de comunicação de um povo que se derrota totalmente uma nação, que se implode uma sociedade e se apaga uma cultura secular. [Imagine se os alemães soubessem disso…]

Você também conhece a perda”, diz o Caveira para o protagonista Big Boss. Pois ele sabe que ambos sofrem com a Dor Fantasma da falta; seja de um ente, de um passado não-realizado, de um lar. E Big Boss se mantém calado, tanto pela precaução em não ativar o efeito do vírus/parasita, quanto por estar compreendendo as ideias que lhe são transmitidas por aquela caricata figura intrigante.

Você também conhece a perda

Afinal, simplesmente pelo fato de nos vermos obrigados a aprender o inglês, para o sucesso nos estudos, para o sucesso no trabalho, para a realização do sonho de viajar pelo mundo, já não estamos nos submetendo à superioridade norte-americana?

Creio que em 1984 ainda não existiam linguagens de sinais

2. E o Verbo era Deus

“As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo” — Ludwig Wittgenstein

Toda vez que passo pelo Terminal do Centro de minha cidade vejo pessoas conversando. Com as mãos. Não no sentido de gesticulação exclamativa concomitante à fala, tão própria e evidente em falantes italianos, por exemplo. Mas sim quanto à não-pronúncia.

Nunca tive aulas de Libras. Um dia quero aprender um pouco.

Ou muito, quem sabe…

Enfim.

Retomando: essa observação nos evoca o sentido de que a expropriação da linguagem verbal não resulta na impossibilidade de comunicação, nem na dissipação da identidade. Embora possa ser mitigada significativamente, a linguagem não-verbal persiste, pelos gestos, pelos movimentos, pela dança, com seus significantes e significados; já aproveitando um pouco das belezas da semiótica de Charles Peirce.

Emil Cioran, filósofo romeno, posteriormente em citação adaptada por Pessoa, Camus e outros, expressava a nós que “não habitamos uma nação, mas sim uma linguagem; nossa língua nativa é nossa pátria”. Não à toa esta é a epígrafe do game.

Giorgio Agamben, em seu sapiente Categorie Italiane evidencia:

O “fato linguístico” (que não é a língua, mas o que os linguistas chamam o factum loquendi, o mero fato, inacessível ao saber, de que os homens falam) apresenta-se como uma estrutura dupla ou, melhor dizendo, como um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas e opostas, que de modo incessante se tocam, habitam-se, nutrem-se e se descartam: o dialeto e a língua, “mátria” e “pátria”.

Molto bello, non?

Hank Larsson da 2ª temporada de Fargo (aliás recomendo a série) se encucava com o sonho da língua única, a qual uniria os povos e neutralizaria os conflitos mundiais (Esperanto está digitando…). Algo que remete ao ideal de Snake em MGS, com sua utópica Outer Heaven, sem explorações de Governos, estabilidade e bem-estar, um Lar sem nação, embora mais no sentido militar do conceito.

Daniel Kahneman, nobelista de Economia em 2002, nos demonstra experimentalmente que a apresentação de mais palavras/adjetivos já nos possibilita a melhor caracterização de um produto. Uma simples meia “bonita e confortável” passa a ser uma meia “macia com tecido sedoso, levemente rugoso e com bordas aveludadas”. Não que precisemos ser sommeliers das coisas, mas isso nos induz a pensar que sofremos com a limitação da expressão devido à memória (ou falta dela), assim como a ativação do pensamento devido à palavra. Não lembrar é o equivalente a não saber, em certos casos.

Pois a palavra e significado são inseparáveis.

Não por coincidência o jogo se passa em 1984. Kojima leu Orwell. E entende muito bem que a retirada de uma palavra do dicionário impossibilita (ou dificulta) a interpretação de seu conceito.

No admirável continente novo da Eurásia nunca se ouviu falar de “revolução”, nem de “ditadura”.

O G̶r̶a̶n̶d̶e̶ ̶I̶r̶m̶ã̶o̶ Chefão tá te stalkeando…

Talvez se, um dia, alcançarmos a utópica linguagem única de Larsson (tal qual pré-Babel), ela não possua palavras como “ódio” ou “violência”. E assim viveríamos num mundo não-bélico. Pacífico. Livre.

É.

É bom sonhar.

Big Boss/Punished Snake segurando D-Dog (e Revolver Ocelot com seu Rayban ao lado)

3. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós

“O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore” — Manoel de Barros

Quem nunca se afogou ao nadar, não deve ser humano. Aprendizado por tentativa e erro. Aprendizado reforçado. É preciso saber domar a água para flutuar. Assim como a língua.

Já tomei muitos choques nos meus projetos de Eletrônica, principalmente num de confecção de uma fonte de tensão DC (saudades “laboratório de protótipos”…). Já fui mordido pelo meu cachorro. As cordas do meu violão já arrebentaram nos meus dedos. As coisas parecem que se revoltam contra você.

Você tem o direito de permanecer calado”. Palavras suas podem ser usadas como acusação.

Boss, Katsuhira Miller, Ocelot e dois caras aleatórios no fundo

Pois até mesmo O Grande Chefe abandona os próprios grupos paramilitares que ajudou a criar. E até mesmo O Locutor de Código se resigna na incapacidade de voltar a controlar seus belos parasitas. E até mesmo O Cara de Caveira se vê esmagado pela grandiosidade e ousadia de sua obra.

Quem nunca se contradisse? Quem nunca se viu sem controle dos resultados de suas ações?

Por bem ou mal, revivemos Viktor Frankenstein, Marie Curie, Santos Dumont(?).

Nem mesmo o singular Boss, com sua imagem de Pai e Cristo, se vê livre das ironias do acaso, do probabilístico. Pois Snake, com sua jornada crucis é um moderno erchomenos (“aquele que vem”), tratado como tal pelos seus discípulos fardados. O Replicado que, embora silencioso, carrega a identidade em seu silêncio e a palavra em seu coldre. E, com ela, a sua filosofia.

E de Babel cada um criou sua língua. E de cada língua surgiu um lar. Pois a nossa língua é o nosso lar. E, embora possamos construir e habitar novas casas, mesmo estando no outro lado do mundo nos confortamos quando ouvimos um semelhante lusófono.

Ora, pois.

E, parando para perceber, se Big Boss é Messias, Revolver Ocelot e Katsuhira Miller completam a Santíssima Trindade: um trio de sonhadores vivendo na Base-Mãe, em alto-mar. Um bando de insanos, ilhados no conforto de sua própria criação.

Punished Snake refletindo

Metal Gear Solid V: The Phantom Pain desenvolvido pela Kojima Productions. Screenshots tirados por mim

--

--

Gustavo Simas
ReViu

Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”