O MALDITO Conhecimento

Diogo Zimmermann
ReViu
Published in
9 min readNov 5, 2018

Nunca fui muito fã de Killzone. Por isso, quando a Guerrilla Games apareceu na E3 2015, fiquei meio apreensivo de ser um game na mesma vibe que o FPS futurista.

No entanto, surpreendi-me de forma surreal quando a incrível paisagem de Horizon: Zero Dawn apareceu no telão: uma vegetação bastante detalhada, iluminação de dar inveja em alguns jogos, e principalmente a sua fauna intrigante composta por animais e robôs.

À medida que mais ia sendo mostrado do game, mais esperançoso eu ficava em relação ao que mais me interessava: o enredo. Tudo o que eu sabia, era que por algum motivo máquinas dominavam o planeta Terra, e as pessoas, por um estranho caminho do destino, voltaram a uma era tribal, caçando as criaturas tecnológicas com arcos e flechas.

Só vários meses após o lançamento de Horizon que tive a chance de pôr as mãos — e a mente — na jornada de Aloy. E bem, o que eu posso dizer…

Foi incrível.

A jornada da garotinha exilada que se torna um mulherão inabalável é muito mais do que uma briga para salvar a humanidade; é uma jornada de autoconhecimento e o poder ilusório de um conhecimento excessivo.

CONHECER-SE

“ Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”

— Sócrates

Foi quando eu li essa frase de Sócrates que a ficha caiu. Talvez por eu ser meio lento para pegar as nuances de algum personagem, ou por algumas vezes demorar para prestar atenção em algo.

O enredo do jogo leva consigo não apenas a temática do conhecimento em si (este será tratado à medida que avanço na análise), mas também atenta ao jogador para o fato de que nada adianta ter o conhecimento das coisas se você nunca se autoconhecer.

A citação de Sócrates é tão certeira para a situação de Aloy no mundo de Horizon que chega a ser assombrosa. A fim de explicar, é necessário que se entenda o escopo geral do enredo do jogo.

Horizon: Zero Dawn se passa a vários séculos no futuro do nosso tempo atual. Nesse planeta Terra, a sociedade está mais uma vez em uma organização bastante tribal, fortemente alicerceada em deuses. Máquinas que lembram nossos animais vagueiam pelo mundo, atuando como se fossem, de fato, animais vivos.

Aloy acaba, após diversos acontecimentos, se vendo como o alvo de um grupo de cultistas conhecidos como Eclipse. Tal grupo procura nas ruínas do Povo Antigo, máquinas de destruição de épocas passadas, às ordens de uma entidade mais tarde conhecida como HADES, a qual eles consideram ser um deus. Cabe a Aloy a missão de descobrir quem é HADES, e por que ele deseja tanto a ver morta, além de, é claro, parar o Eclipse.

Tendo tudo isso em vista, podemos então dedicar um momento à jornada de autoconhecimento de Aloy.

Durante o jogo, conhecemos três fases de vida da jovem caçadora de máquinas: bebê, criança, e jovem adulta. As duas primeiras fases darão fundamentos importantes para podermos criar a figura final da protagonista.

Em sua fase bebê temos o primeiro e principal fundamento de autoconhecimento: o nome.

Na tribo de Aloy, chamada de Nora, existe uma importância gigantesca em torno do nome. Pela tribo ser matriarcal, é possível crer que os produtores quiseram referenciar ao fato de que em nosso mundo, as mães dão muito mais importância ao nome dos filhos do que o pai. Contudo, isso não diz nada sobre a jornada da garota.

Então passemos para o próximo passo.

Embora eu não seja religioso, é interessante fazer uma menção: na Bíblia, mais precisamente em Josué 7:9 e Deuteronômio 7:24, temos que ao se cortar, retirar, ou abandonar o nome, tal ato significa o extermínio, o fim da pessoa nomeada.

Não só isso, Miguel Unamuno, um ensaísta, filósofo e poeta espanhol diz, em um de seus ensaios, o seguinte:

“ O nome é em certo sentido a própria coisa; dar nome às coisas é conhecê-las e apropriar-se delas; a denominação é o ato da posse espiritual.”

Portanto, quando a cena de nomeação da bebê Aloy acontece, Horizon procura passar duas coisas: dar-nos a oportunidade de nos apropriar da garota (em termos de conhecimento e espiritualidade), e fazer com que ela mesma possa iniciar o processo de se conhecer. Além disso, ao nomeá-la, o jogo efetivamente dá a ela um lugar no mundo, e consequentemente garante sua existência no reino dos homens.

Quando o jogo avança no tempo para a fase criança de Aloy, já estamos em uma versão primitiva do autoconhecimento da menina.

Aqui, ela passa por outro processo relacionado a isso: o entender.

Nessa fase, Aloy é negada por todos na vila por ser uma exilada. Todos se distanciam e nunca dirigem a palavra a ela (e quando isso acontece, há uma repreensão enorme para que nunca mais se repita).

Aqui, ela não entende o por quê de ser exilada e ter que conviver por isso. Não consegue compreender que seu cuidador — chamado de Rost — não faz ideia do motivo por trás de seu exílio. Ela quer respostas imediatas.

Com essa fase da vida da garota, conseguimos identificar coisas que nós mesmos passamos durante a vida: muitas das vezes não sabemos sequer quem somos de fato, ou quem queremos ser.

Paul Valéry diz:

“ Se tudo fosse claro, tudo nos pareceria inútil.”

E de fato, se possuíssemos clareza de tudo, por qual motivo gastaríamos tempo para nos conhecer?

É por isso que o enredo de Horizon procura expressar através da jornada de Aloy o quão difícil é se adequar ao mundo que nos é apresentado quando nascemos. Seja pela cena em que Aloy é desprezada mesmo após pegar frutinhas para uma mulher que indicava outras crianças a fazerem o mesmo, ou quando ela é acertada com uma pedra por um garoto, este obviamente mais privilegiado que ela.

As cenas, por mais banais e simples que possam parecer, não são apenas para emocionar o jogador ou deixá-los com raiva; são também para revelar que as dificuldades modernas do nosso próprio mundo também se encaixam em um outro em que a sociedade foi toda refeita do zero.

Mesmo tantas dificuldades não abalam a menina. Tais acontecimentos no fim, geram a determinação de procurar por respostas do seu passado, fazendo com que consequentemente ela passe por uma nova fase de autoconhecimento, ao perceber que a medida que cresce, consegue fazer coisas que jamais imaginava. Passa a conquistar seu lugar no mundo e em sua mente. Torna-se ainda mais forte e, o mais importante, consciente às coisas ao seu redor.

Por fim, chegamos na fase final. Aloy agora é uma mulher feita, capaz de tomar suas próprias decisões, com uma personalidade forte e decidida.

É nessa fase que as coisas começam a complicar, pois é à partir dela que a jornada de autoconhecimento da garota se entrelaça com todo o tema de conhecimento, terror tecnológico, e o mal que a inteligência humana possui.

Tudo que Aloy tomou por conhecimento vai se desvanecendo pouco a pouco, se reformulando, até alcançar o clímax da história.

Vale ressaltar, que a garota ainda não adquiriu o valor fundamental do autoconhecimento: O entendimento de si.

Portanto, ela segue em sua jornada, em busca de finalmente descobrir sobre si mesma.

PARA CONHECER O MUNDO:

Enquanto a primeira parte do jogo deixa bastante explícito a jornada de autoconhecimento de Aloy, ela não acaba ali. A aventura que a segue, e os problemas que surgem em frente da protagonista, cooperam para que ela atinja a completude de si mesma.

Não só isso, tais acontecimentos nos trazem mensagens bastante reais e um pouco aterrorizantes.

Em Horizon, quando Aloy sai em busca de respostas sobre o ataque durante a provação, acaba caindo na história acensyral do seu mundo: o que aconteceu com o Povo Antigo, por que existem máquinas, e por que elas estão ficando mais furiosas são apenas algumas das muitas perguntas que começam a cair sobre a cabeça do jogador e da protagonista.

Todavia, meu objetivo não é comentar passo a passo do jogo, então iremos para a mensagem que Horizon pretende transmitir.

Cada nova descoberta que Aloy faz sobre sua antepassada (Elizabet Sobeck), ou sobre o projeto Zero Dawn (e consequentemente sobre o Povo Antigo), nos leva a certos temas que deveríamos refletir muito mais do que são atualmente: existe um excesso de conhecimento? Há limites para a tecnologia? O conhecimento é bom, ou é uma maldição para os seres humanos?

O jogo nos entrega uma mensagem bastante sombria sobre o rumo que a tecnologia pode tomar. O Povo Antigo somos nós, que não soubemos controlar nossas próprias criações, causando um apocalipse tecnológico com máquinas autorreplicantes e abastecidas por biomassa.

Ray Kurzweil, em seu livro “Singularity is Near: When humans transcend biology" comenta que a tecnologia avança de modo exponencial, sendo que logo as máquinas seriam infinitamente mais inteligentes e poderosas que os seres humanos, causando o que ele chama de Singularidade. Nesse acontecimento, a inteligência humana e máquina se tornariam uma só, se espalharia pelo universo, e o saturaria.

Horizon parece levar bastante coisa desses conceitos. Durante o desenrolar do enredo, fuçamos as ruínas do Povo Antigo com Aloy, descobrindo o que levou a nossa própria destruição, e ajudando a garota a finalmente entender seu propósito no mundo: O de não cometer o mesmo erro que nós. De poder evitar tudo de ruim que fizemos. Sua jornada de autoconhecimento se completa no momento em que finalmente entende quem é, para o que nasceu, e para onde seguir.

Os erros de nossa geração (povo antigo) são claramente destacados durante o desenvolvimento do enredo, chegando nos pontos que Kurzweil cita em seu livro.

A tecnologia realmente avança com cada vez mais ímpeto, alcançando patamares que se provam assustadores. Em Horizon, esses avanços são tratados de forma muito real, em que as tecnologias — principalmente robóticas — são usadas para o princípio mais comum do ser humano: a guerra.

Ora, grandes tecnologias foram inventadas na guerra, e mais virão para esse propósito. No jogo, elas serviam para ajudar a pacificar regiões, e obviamente para lucrar ainda mais — tendo em vista que robôs ecológicos não arrecadaram tão bem.

Mas como era de se imaginar, tudo foge de controle. Eu sintetizo essa situação a seguinte frase de Blaise Pascal:

Corremos sem preocupação para um precipício, após termos posto uma venda para o não poder ver.

Quantas foram as vezes que achamos que nunca há perigo em coisas explicitamente perigosas?

O dinheiro, a ganância, são algumas das vendas que colocamos para não vermos o precipício da nossa ruína. Entretanto, Horizon quer uma outra venda, e ela se chama conhecimento.

O conhecimento pode ser a venda mais perigosa de todas quando não o dosamos. É necessário não cair na armadilha de achar que possuímos a solução para todas as coisas, e que nenhuma de nossas ações trará algo negativo para alguém, porque posso dizer com toda a certeza, as consequências virão, mais cedo ou mais tarde.

Contudo, Horizon não condena o conhecimento, afinal é através dele — e do seu uso moderado — que conhecemos a solução que o Povo Antigo encontrou para que a humanidade fosse salva.

Não entrarei em detalhes sobre tal solução. Até porque não quero estragar o ápice do jogo para quem ainda não jogou. Porém, leve em mente que mesmo a solução não é perfeita, assim como nós, e nosso conhecimento.

Embora todo esse emaranhado bizarro de tecnologia caótica, e de conhecimento excessivo e arrogante seja extremamente assustador e muito triste, Horizon:Zero Dawn nos deixa uma mensagem de esperança.

Não devemos cessar o progresso tecnológico. Também não devemos voltar a idade das trevas. Temos que seguir em frente, embora não podemos nos jogar de cabeça nesse mar perigoso da extrema e exponencial inovação.

Precisamos ter cuidado, não cometer erros que a história procura jogar na nossa cara a todo momento — e que muitas pessoas não dão bola alguma — , afinal, “errar é humano, mas persistir no erro é burrice”.

O mundo existe para que possamos viver nele. Ele vai continuar existindo mesmo que subitamente sejamos burros demais e nós mesmos caiamos em desgraça e ruína.

Portanto, tratemos de viver, sempre com um pé atrás, sem as vendas, para que possamos encarar o precipício de frente, com medo, mas jamais com temeridade.

O maldito conhecimento nos cega, até que no fim, caímos sem perceber, na ignorância.

Horizon: Zero Dawn, desenvolvido pela Guerilla Games

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