Obsessão, Poder e Deus: Uma análise de Kefka em Final Fantasy VI

Diogo Zimmermann
ReViu
Published in
10 min readFeb 7, 2022

Final Fantasy VI foi um dos jogos da série que joguei apenas depois de mais velho. Diferente da trilogia presente no Playstation 1, a qual joguei quando não passava de dez invernos, a sexta entrada da franquia me pegou de um jeito um pouco mais diferenciado.

À época, em meus dezesseis anos, como já descrevi em alguns outros textos meus, andava muito tempo de ônibus, tendo em vista a distância gigantesca entre minha residência e a escola. E foi graças a esses momentos “onibusísticos” que decidi jogar Final Fantasy VI.

A primeira similaridade que percebi ao ligar o jogo, foi a ambientação; medieval, estilo FFIX, fugindo dos conceitos mais modernos e futuristas de FFVII e VIII. Depois da pequena introdução em que usamos Terra (uma das protagonistas da história) montada em uma baita armadura robótica, vi que ali teria algo maneiro de se jogar, e obviamente não deu outra.

À medida que o jogo avança, e personagens vão surgindo e entrando para sua equipe, logo você tem primeiro menções, e mais tarde, encontros, com um palhaço que, à primeira vista, parece mais uma cópia barata do vilão de Batman, o tal Coringa.

No entanto, leitor(a) que está me acompanhando neste momento, sei que você pensou o mesmo que eu ao aconselhar outros amigos: “Não é só um palhacinho, não”.

E realmente não é. O palhaço quase riu por último.

A VIDA DE UM BOBO

Kefka, antes do início de Final Fantasy VI, foi o primeiro Cavaleiro Magitek experimental, um processo que deu a ele o poder de utilizar magia. No entanto, o processo foi imperfeito, ocasionando em danos na mente do nosso querido personagem. O futuro vilão de FFVI tornou-se infame por suas crueldades, consequência de ter se tornado um louco destrutivo.

Devido a todas estas ações, acabou se distanciando dos soldados imperiais, mas ganhou as boas graças do Imperador Gestahl.

A partir daqui tudo se desenrola de acordo com o game. Não gostaria de me alongar nesta parte. Kefka segue servindo o império, mas sempre buscando com uma obsessão compulsiva o poder dos Espers.

Toda esta busca desenfreada culmina, pela metade do game, na ascensão do ex-palhaço a grandiosidade: um Deus.

Após sua ascensão, Kefka construiu uma torre usando os destroços da cidade Imperial e dos restos do mundo. Com sua torre pronta, o homem desequilibrado que trouxe o seu próprio desequilíbrio para o mundo, subiu a sua torre e ficou lá, guardado pela Tríade, a qual teve seu poder drenado para que ele se tornasse o deus da magia. O mundo, ou o que sobrou dele, passa então a viver em constante medo de que Kefka use sua Luz do Julgamento em caso deles acabarem “pisando na bola” com o novo Senhor do Mundo.

O grupo de heróis se reúne mais uma vez após a terrível derrota por Kefka, e depois de muita luta, chegam no topo de sua torre. É no embate contra Kefka que temos a extensão absurda de loucura, possessividade e amor ao poder que ele tem.

PODER DE DEUS

Uma coisa é impossível de se negar: Final Fantasy VI é artístico num nível assombroso, afinal, quem imaginaria uma ópera em pleno jogo de SNES?

A batalha final do jogo não poderia ser diferente. O combate exala simbolismos e a trilha sonora deixa-nos de queixo caído. Para quem não se recorda (dificilmente), o embate final contra Kefka é divido em quatro etapas, e a trilha sonora segue a mesma coisa. Em cada etapa, ocorre uma mudança na melodia.

O paralelo que vou traçar a partir de agora é em relação a obra Divina Comédia. A batalha traz algumas referências interessantíssimas e que valem a pena serem exploradas.

Levando em consideração tudo isso, iniciamos a análise.

PRIMEIRO MOVIMENTO: O DIABO

Mas foi o meu assombro inda crescente
quando três caras vi na sua cabeça:
toda vermelha era a que tinha à frente,
e das duas outras, cada qual egressa
do meio do ombro, que em cima se ajeita
de cada lado e junta-se com essa,
branco-amarelo era a cor da direita
e, a da esquerda, a daquela gente estranha
que chega de onde o Nilo ao vale deita.

Dante Alighieri — Divina Comédia. INFERNO — CANTO XXXIV

N’O Inferno presente em Divina Comédia, o diabo, Satã, está aprisionado no Cócito, o nono e último círculo do Inferno; círculo tal destinado aos malditos e traidores. Satã era antes o maior de todos os anjos até o momento em que ele se tornou inflado por seu ego e superioridade em relação a outros anjos e, portanto, foi banido para o Inferno por Deus.

Ele iria mais tarde, manipular humanos e outros anjos para se voltarem contra Deus; então, ele aprisionaria seus seguidores no Inferno onde os assassinos se afogam no sangue flamejante de suas próprias vítimas, enquanto outros são forçados a canibalizar suas próprias crianças.

Satã é apresentado como tendo três cabeças, como uma piada da Santíssima Trindade (Deus, Jesus e o Espírito Santo), e cada cabeça mastiga uma alma morta. Nas bocas esquerda e direita de Satã estão sendo mastigados pelas pernas Brutus e Cassius, os assassinos do imperador Romano Júlio César. Na boca do meio, tendo a cabeça mastigada, está Judas Iscariot, o traidor de Jesus Cristo. Ele sofre o pior dos tormentos, tendo sua cabeça mastigada e as costas rasgadas por Satã por toda a eternidade.

O próprio Satã fica preso da cintura para cima em uma superfície de gelo. Suas asas balançam em uma eterna luta para escapar de sua prisão frígida; todavia, tudo o que isso gera é o vento necessário para que o gelo permaneça firme, garantindo que ele permaneça para sempre preso no Cócito.

Com isso tudo em mente, podemos olhar a imagem acima, no início da seção. Veja bem, a representação de Kefka de Satã não é exatamente fiel ao da Divina Comédia. No entanto, há similaridades e adaptações que fazem sentido para o enredo do jogo.

A primeira similaridade é o fato de que Kefka está preso da cintura para baixo, como Satã no Cócito. Perceba que, diferente da monstruosidade apresentada na obra de Dante, nosso querido palhaço traz símbolos que aludem o tempo presente.

Observa-se que há diversos canos de descarga, todos eles exalando fumaça. Kefka é uma máquina, demonstrando a destruição que tais objetos causaram no mundo em que viveram (lembra-se que o imperador era líder de uma cidade super tecnológica e bem equipada em termos maquinários). Foi graças a estes itens de destruição baseados em fumaça que o Império foi capaz de caçar e completar o seu plano de coletar os Espers.

Aliado às máquinas, temos também uma vaga lembrança de uma das entidades da Tríade acoplada na aparência de Kefka. Como você poderá ver abaixo, o Demônio (Fiend) possui uma aparência similar a desta primeira forma.

Assim, podemos verificar que a absorção da Tríade por Kefka se deu num nível tal qual a sua própria aparência sofreu modificação. Nas próximas formas poderemos ver este mesmo padrão, embora um pouco mais escondido.

SEGUNDO MOVIMENTO: PURGATÓRIO

Para navegar por águas melhores, minha poesia agora deixa para trás aquele mar cruel e segue para o segundo reino, onde a alma humana se purifica, e se torna digna de elevar-se ao céu

Dante Alighieri — Divina Comédia. PURGATÓRIO — CANTO I

O Purgatório na obra de Dante é uma montanha envolta por um mar revolto que impede que qualquer tipo de embarcação consiga sequer se aproximar.

É nesta montanha que os pecadores têm a chance de pagar por seus pecados e, se tudo der certo, terão a oportunidade de chegar às portas do paraíso, a qual é guardada por um anjo armado com uma espada.

Como no próprio Inferno de Dante, o Purgatório é dividido em níveis, em que cada nível é alocado a um tipo de castigo por pecado. Temos o nível da gula, um nível da ira, um da luxúria… Deve-se salientar também que é no purgatório que Dante conhece Santos e descobre-se um pouco mais sobre como o Amor de Deus tem uma “mão pesada” sobre tudo.

A segunda fase de Kefka não possui relação talvez tão direta com o Purgatório, mas traz fatos interessantes. Vê-se que nesta segunda parte, temos diversos monstros misturados, os quais, olhando de perto, são basicamente outros Kefkas’.

Nesta fase da luta, temos quatro monstros a enfrentar. Como vimos anteriormente, o Purgatório é um lugar de bastante sofrimento, em que as pessoas procuram “pagar por seus pecados” para adentrar no Reino dos Céus.

Levando em consideração esta linha de pensamento, podemos supor que estes seres demonstrados na segunda fase são Espers e humanos drenados por Kefka.

Lembra-se que, na primeira fase havia canos de descarga e muita fumaça. Subindo para o segundo movimento, ainda existem estes canos, que aparentemente se conectam com os quatro seres. Veremos na próxima fase que estes canos seguem ainda mais acima e passam a pegar fogo.

Seria essa uma espécie de tecnologia magitek? Como se fosse uma base de drenagem de espers, mas uma base viva, a qual garante um poder ainda maior ao se torturar e arrancar a magia presente nos seres presos a ela? Observando a arte conceitual da segunda fase, vemos que ela aparenta de fato ser uma máquina.

Concept Art da Statue of Gods

Se pensarmos desta forma, fica claro a relação com o Purgatório, embora seja uma versão em que nunca se chegará ao paraíso: Kefka considerando-se um Deus, utiliza-se dos espers e humanos escravizados para adquirir mais poder. Estes são torturados, despojados de toda sua magia (e vida) para “pagar por seus pecados” (quem sabe tais pecados sejam não adorar Kefka acima de todas as coisas?).

Sofrimento eterno, num purgatório sem fim.

TERCEIRO MOVIMENTO: PARAÍSO

Chegamos enfim ao tão esperado Paraíso, pelo menos se pensarmos na obra de Dante. Este é o último nível n’A Divina Comédia.

No livro, temos sentado no topo do Paraíso, Jesus e ao seu lado, Maria. Na terceira fase da batalha contra Kefka, temos então, como era de se esperar Jesus (Rest) e Maria (Lady, que na versão japonesa do jogo tem o nome de Mary).

Rest (direita) e Lady (esquerda)

Observando como ambos são apresentados, fica claro a semelhança com a escultura famosíssima de Michelangelo, a Pietà:

Pietà, por Michelangelo

Para trazer ainda mais semelhanças em relação à inspiração deste nível com as obras de Dante e Michelangelo, durante o embate, as lágrimas de Maria (Lady) recuperam a vida de Jesus (Rest), o qual é sempre revivido enquanto o jogador não derrotar a Mãe primeiro.

Podemos avançar um pouquinho mais e tratar que Jesus (Rest) é na verdade Kefka, sentado sobre sua torre de aberrações. E caso o jogador o mate durante o combate, temos a Ressureição de Jesus como Deus (claro, aqui levamos em consideração que Deus e o Filho são os mesmos).

ÚLTIMO MOVIMENTO: DEUS

Cá estamos, o embate final entre Kefka e os heróis. Além da obviedade de que Kefka se considera como Deus daquele universo inteiro, temos ainda um outro paralelo a ser traçado em relação a Divina Comédia.

No livro, Deus permanece flutuando sobre Jesus, que está no Paraíso, da mesma forma que Kefka permanece flutuando sobre o seu pandemônio de morte, dor, autoproclamação e narcisismo.

Inclusive, a aparência de Kefka nesta luta se assemelha muito com as várias descrições na literatura de como seria Lúcifer. Sendo assim, podemos ainda ir além e dizer que tanto a sua torre que antecede a entrada de Deus-Kefka, quanto ele próprio, seriam uma releitura de como seriam não só a Divina Comédia (ou seja, os níveis postmortem), mas também o mundo inteiro caso Lúcifer, o anjo renegado tivesse vencido o Bem, o Todo: Deus.

É possível também que a Statue of Gods, dessa vez no contexto do jogo, seja uma Ultimate Weapon criada por Kefka, seguindo a mesma ideia da Ultimate Weapon tratada anteriormente no jogo e que não conseguiu derrotar Celes no Continente Flutuante.

CONCLUSÃO

Final Fantasy VI é, sem sombra de dúvidas um clássico. Kefka, o vilão de toda a história, hoje é considerado como um dos melhores vilões pelo simples fato de ter conseguido alcançar o seu objetivo, tornando-se um deus.

A obsessão do mesmo o levou a agir de forma cruel e impiedosa em busca de poder, e quando finalmente o alcançou, buscou de todas as formas possíveis impedir que seu reinado de terror acabasse. Para isso, tornou-se um Deus, poderoso, impiedoso e obsessivo.

Kefka no fim das contas é derrotado pelos heróis. E bem, neste caso em específico, podemos dizer:

Deus está morto!
Deus continua morto!
E nós o matamos!

— NIETZSCHE, A Gaia ciência

--

--