Os Fins e os MEIOS

Gustavo Simas
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9 min readMay 26, 2019

Um Artigo sobre Poder e análise do fim de Game of Thrones

Este artigo contém spoilers de Game of Thrones

Parte 1: O fim

Bem, o fim. Algumas vezes chega cedo, noutras tarde. E noutras vezes no tempo certo. “Fim”, além de ser “final/término”, pode significar também “intenção/objetivo/meta”. Sendo assim, compondo uma noção harmoniosa com ambas as interpretações: apenas atingimos nossas metas na finalização de nossas ações? Ademais, afinal, em que ponto exatamente podemos considerar que o fim é realmente o fim?

O fato é que a premiada e popular grandiosa série Game of Thrones da HBO teve seu último episódio transmitido para olhos ávidos de ansiosos espectadores mundialmente, final tal que deixou um agridoce flavor, misto de insatisfação e alívio entre os acompanhantes. O amargor surge por conta de soluções indesejadas, e lacunas evidentes em alguns pontos relevantes para a coesão da história. David Benioff e Daniel Brett Weiss (produtores/showrunners), além de demais roteiristas de plantão envolvidos, optam por saídas de narrativa um tanto impopulares, causando aparente má-impressão durante o processo de encerramento.

“Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela” — Nicolau Maquiavel

Parte 2: Um trono duro

Acompanho As Crônicas de Gelo e Fogo desde 2010. Lembro-me de, ainda imberbe leitor, arregalar os olhos em várias partes durante a leitura do primeiro volume das Crônicas, A Guerra dos Tronos, um calhamaço de 694 páginas e quase 1 kg. Suas centenas de personagens são um desafio para os leitores: lordes, cavaleiros, reis, meistres, vassalos, escravos, taberneiros, vagabundos… derivados das mais diversas linhagens e com as mais complexas origens. Suas descrições de paisagens e figuras são memoráveis.

A série televisiva, iniciada em 17 de abril de 2011, honrou (por algumas boas temporadas, podemos dizer) a qualidade das obras literárias de George R. R. ̶T̶o̶l̶k̶i̶e̶n̶ Martin. As características de composição de mundo em si dos volumes publicados não apresentam inovação estupenda ou elementos nunca antes vistos na Literatura de Ficção: dragões, piromancia, anomalias climáticas, alquimia já foram lidos e assistidos em livros, filmes, games, dentre outras adaptações de obras como Senhor dos Anéis, Brumas de Avalon, Crônicas de Nárnia… O destaque principal que diferencia As Crônicas dos demais é seu largo espectro de personagens convincentes, a eterna e voraz disputa por poder, e sua capacidade de não delimitar exatamente uma linha entre Bem e Mal, entre Luz e Escuridão, entre Moças e Vilãs.

Cersei Lannister, a até então rainha, sempre almejou riquezas e poder, característica elementar dos Lannister. Porém, acima de tudo, desejava proteção para sua família: seus filhos eram um núcleo familiar inatingível, o ponto-mor em sua razão de lutar e rugir. Com a perda deste núcleo, cabe a ela persistir: por honra e por vingança.

Daenerys ̶S̶t̶a̶l̶i̶n̶ Targaryen, a Nascida da Tormenta, Khaleesi dos Dothraki, Mhysa dos Desgraçados, Mãe de Dragões, A Não-Queimada, sofre uma transformação gradual e intensa, embora não abrupta — vista ao longo das temporadas pela crucificação, queima, degola de diversos “inimigos comuns” de maneira generalizada. Não considera, portanto, a individualidade dos indivíduos. Aos poucos se evidencia como (ou se torna) má, escolhendo dominar pelo medo do que pelo amor, algo semelhante ao que vemos acontecer com Walter White em Breaking Bad e com Claire Underwood em House of Cards. A ideologia ariana de Targaryen é substituída por uma pirâmide social invertida, ainda assim totalitarista.

Jon Snow, por outro lado, não se corrompe pelo sangue, opera de acordo com sua criação “starkiana”, e não pela sua origem “targaryana”. Todavia se vê numa sinuca de bico em dúvida cruel entre o Amor e o Bem Maior. João das Neves se esforça para negar uma relação incestuosa, e se esforça mais ainda para perceber a não-misericórdia, falsamente súbita, de sua amada. Opta, então, por um ato utilitarista imediato ao matá-la (o que mata também uma parte de si).

Mesmo com uma composição cenográfica esplêndida, trilha sonora exemplar por Ramin Djawadi e filosofia política aguda, a série não se esquiva de problemas no seu fim. Vemos grande subaproveitamento de personagens e pontos mal-trabalhados:

  • Arya Stark, a garota que virou ninguém, não utiliza suas habilidades (seja com a espada Agulha ou com a troca de rostos) para ação relevante alguma no encerramento.
  • Jon Snow tem um arco sensabor de retorna à Patrulha da Noite, selvagem aparentemente sem destino, tolo e eternamente arrependido pelo que cometeu.
  • Tyrion Lannister, o anão mais inteligente de Westeros, consegue encontrar seus irmãos mortos em meio aos infindos escombros da cidade. Somado a isso, alguns dias depois, supostamente deve ser julgado em vida ou morte por ser prisioneiro cativo, contudo acaba audaciosamente influenciando lordes com sua loquacidade admirável e escolhe o novo Rei das Terras do Oeste…
  • Milhares de dothrakis e Imaculados aparecem em Porto Real (King’s Landing). Mas boa parte não havia sido morta anteriormente na batalha contra o Rei da Noite?
  • Aliás quem é realmente (e qual o propósito) do Rei da Noite? Na 6ª temporada, Bran havia apresentado sua visão, revelando que foram os Filhos da Floresta os verdadeiros criadores do Rei da Noite (ao enfiar uma lâmina de obsidiana no coração de um homem pra transformá-lo naquela criatura). Tal ato fora realizado como solução de proteção contra a invasão dos Primeiros Homens. De toda forma, isto não é resgatado para maior detalhamento na última temporada.
  • Drogon anti-monarquicamente derrete o Trono de Ferro como forma de protesto político. Porém tudo isto de maneira inútil, pois Westeros continua com um Rei, embora agora seja escolhido por um Concelho de Lordes.

Outros pontos falhos pipocam por aí e poderiam ser elencados. Pois como bem diria o próprio George R. R. Martin num posfácio de seus livros: “o diabo está nos detalhes

“Nunca se deve deixar que aconteça uma desordem para evitar uma guerra, pois ela é inevitável, mas, sendo protelada, resulta em tua desvantagem” — Maquiavel

Parte 3: Uma alternativa

Este é um esboço de alternativa ao último episódio

De olhos caídos e respiração pesada, Tyrion caminha por King’s Landing, atônito ao observar a desgraça da cidade. Edifícios no chão e corpos queimados; chove cinzas de um céu soturno. A ideia que flameja em sua mente é pesarosa, mas necessária. Ao encontrar Jon, o anão conversa seriamente sobre o estado de (in)sanidade da nova Rainha, busca despertá-lo para a realidade e recomenda a Snow que tome uma decisão peremptória e que aja rapidamente.

No topo da enorme escadaria de King’s Landing, Jon caminha e visualiza a figura de cabelos prateados. Com um misto de estranhamento e apelo tenta chamar Daenerys enquanto ela caminha rumo a um discurso para seu batalhão. A mulher olha de soslaio para seu interlocutor e o ignora. A Rainha, então, admira a todos e a cada um, e pronuncia as palavras em dothraki. Seus soldados urram de excitação.

Tyrion se aproxima e demanda um pouco de lucidez à Mãe de Dragões. A conversa é inútil e o Lannister retira, sem hesitação, o broche de Mão do Rei e o arremessa para os degraus da escadaria. A Rainha entende a mensagem; entende que seu conselheiro a traiu; entende que não deve mostrar misericórdia nem mesmo às pessoas mais próximas. Com um gesto de mão Drogon se aproxima. Tyrion fica boquiaberto por alguns breves milésimos de segundo. Mas ele já havia previsto essa possibilidade. Uma palavra e, então, seu fim: dracarys.

Jon Snow assiste à queima incrédulo. E ele entende o que Tyrion o havia dito. A Rainha Daenerys marcha para encontrar o Trono, relanceia Snow novamente e sai sem uma palavra. Silenciosamente, Arya aparece ao lado de Jon demandando ações. Seu irmão explica o que deve ser feito, relutante.

Momentos adiante Daenerys se encontra na sala de seu precioso Trono de Ferro, menor do que imaginava em seus sonhos, ainda assim imponente. Aegon Targaryen/Jon Stark/Snow adentra o recinto destruído e inicia uma conversa com perguntas. Ele busca resgatar uma essência boa e racional na pessoa que mais ama. As respostas, infelizmente, o desagradam. Mesmo assim a Rainha sorri, esperançosa, e o consola com um beijo. Snow, rangendo e trêmulo, saca sua espada e, com ambas as mãos, a golpeia por trás. Força ainda mais a arma para que atravesse o corpo de ambos, num abraço suicida. O homem de origem de Gelo e Fogo acaba com o sofrimento que o mundo teria, caso sua Rainha prevalecesse sobre o mundo, assim como com seu próprio sofrimento de perene arrependimento, caso se mantivesse vivo.

O dragão negro emerge no plano, atraído por sangue Targaryen, investiga o cenário e ruge. A irmã Stark caçula observa a tudo, num canto. Pouco tempo depois surge Greyworm, atraído pelo lamento da criatura. O Verme Cinzento fica atordoado ao ver a cena e Arya o interpela. A garota sabe que o fiel soldado pulsará por vingança e desejará continuar o legado de sua Rainha. Arya desembainha Agulha e inicia sua dança.

Enquanto isso, Drogon fareja os brancos corpos que se avermelham e os remexe. Num ato de indignação e protesto, expele um rubro fogo de sua laringe e derrete o Trono de Ferro. Pega, então, os dois Targaryens falecidos e voa para terras distantes.

Arya e Verme Cinzento continuam a batalhar. E a luta parece estar se saindo melhor para o Imaculado…

Dias depois, é organizado um Concelho de Lordes de Westeros. Sãos discutidas questões sobre os ocorridos e o debate se direciona para a eleição de um novo rei. Por ideia de Samwell Tarly, os Senhores concordam que o mais interessante é prevalecer um Concelho de Lordes como Governo ao invés de um Rei/Rainha único. De toda forma, Sansa Stark intervém e sugere que o Norte se mantenha como reino separado, assim como fora por tantos séculos. Doravante, portanto, se tem um Concelho de Lordes dos 6 Reinos, e Sansa Stark como Rainha do Norte.

Na mesma escadaria em que a Mãe de Dragões proferira seu discurso, Verme Cinzento discursa para suas tropas. Afirma que os tempos mudaram, que a Era agora é de homens e mulheres livres, que pessoa alguma deve se submeter a ordens de soberanos, e que cada um pode decidir seu caminho: se manter em Westeros e proteger a Paz pelo novo Reino descentralizado que se ergue, ou retornar pra Essos ou quaisquer demais locais que desejarem, de maneira a seguirem suas vidas de forma independente. As tropas dos Imaculados e dos Dothraki reagem positivamente.

Verme Cinzento esboça um sorriso e se retira. Retira, também, seu rosto: Arya interpretara bem. Ela ruma agora para uma embarcação que parte de King’s Landing em direção às terras mais a oeste que Westeros…

Samwell Tarly e Brandon Stark conversam. Sam mostra a Bran um livro intitulado As Crônicas de Gelo e Fogo e pergunta se O Quebrado tem boas histórias para contar. Bran afirma que sim e começa um conto sobre um Piromancer (bruxo do fogo) que há muito viajara para terras do Norte, em busca de conhecimento acerca destas terras inóspitas. Em sua jornada o bruxo encontra seres de gelo, bastante peculiares. Por um bom tempo, o Piromancer manteve uma relação de troca de conhecimento com esses seres, ensinando-os sobre resistência ao fogo, alguns truques úteis e também aprendendo algumas habilidades em retorno. Por contato próximo durante este tempo, o Piromancer teve a experiência de se relacionar com um desses Caminhantes Brancos. Desta relação com uma White Walker, vêm à luz duas crianças: um menino e uma menina de cabelos brancos como a neve. Para evitar que a gênese morresse naquele lugar de frio intenso e nevasca, leva-os até Valíria. Os gêmeos de Gelo e Fogo são criados com atenção. Quando adultos, aprendem a domar dragões, e constroem uma relação incestuosa para expandir a linhagem de sangue puro…

Com essa história da origem dos Targaryen, Sam fica perplexo e comenta que ele e Bran precisam registrar tais eventos. Comenta que juntos podem escrever as melhores histórias já contadas, tendo uma pequena ajuda do Olho de Corvo do rapaz.

Com isso, Bran esboça um leve sorriso e guia vagarosamente sua visão para adiante, de olhos semicerrados, como se soubesse que milhões de pessoas o estivesse assistindo...

Game of Thrones atinge a façanha de iludir os espectadores de maneira brilhante e fazer com que se simpatizem por indivíduos reprováveis devido aos seus rostos bonitos, devido a seus direitos de herança de linhagem ou por conta de um Destino totalmente justo e inalterável. Indivíduos tais que movem a roda do mundo ao serem guiados por ódio, amor e loucura; indivíduos que utilizam de uma falha argumentação de promoção da “paz” por meio de mortes, as quais são rasamente justificadas por uma justiça estrábica, por amores bizarros.

O importante é que a obra reflete muito o que observamos por aí: governantes que discutem entre si e decidem por todos; governantes que agem por crenças infundadas, que planejam apenas a obtenção do poder e não o seu consequente exercício.

“Tornamo-nos odiados tanto fazendo o bem como fazendo o mal” — Maquiavel

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”