Os traumas de um ̶v̶a̶m̶p̶i̶r̶o̶ morcego doidão

Gustavo Simas
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10 min readMar 14, 2022

Uma análise de Batman e artigo sobre Trauma

Este texto contém spoilers de The Batman (2022)

Parte 1: Noturna noite em torno em treva

“Duas horinhas de terapia por mês e nada disso teria acontecido”, diz meu amigo ao sair da sessão de cinema. De fato, muitos dos problemas de Gotham seriam resolvidos, caso o jovem Bruce Wayne deitasse no divã ao longo de sua adolescência. Algo curioso, pois o próprio Arthur Fleck tem acompanhamento psicológico público (em Coringa de 2019). Nesse ponto o “pai de criação”, Alfred Pennyworth, pode ter sido relapso com o mimado órfão bilionário.

A escalação de Robert Pattinson como o homem-morcego ativou as expectativas de fãs de Crepúsculo, ainda com o revival do emocore nos últimos anos. Gótico trevoso, dark e emo são alguns dos adjetivos evocados na identidade deste filme de Matt Reeves. Mas o Batman é trevoso por natureza; até mesmo nas versões lúdicas de Tim Burton e Joel Schumacher, as trevas estígias do trauma da repentina orfandade brutal são intrínsecas ao vigilante mascarado. Embora aqui (e em tendência sucessiva nos filmes da DC) parece haver a necessidade e vício de escuridão em um hiper-noir para o drama e medo opressivos.

Em seu segundo ano de atuação, o vigilante detetivesco apresenta seus dotes autodidatas em tanatologia forense ao identificar equimoses em cadáveres; em raciocínio lógico ao desvendar adivinhas cifradas; e em espanhol… ao traduzir, com não tanta eficiência, enigmáticas frases de seu nêmesis, o Charada (Paul Dano). Bruce entende a complexidade e frequência dos crimes em Gotham City, com isso, por meio de uma boa narração em off no início, evoca Travis Bickle de Taxi Driver e nos apresenta sua cidade natal com uma melancolia dura e complacente, o que lembra também Rorschach com seus relatos diários (em Watchmen). De forma consciente, comenta sua onipresença semiótica no símbolo estampado no céu: o bat-sinal é um panóptico de Bentham, um modelo sagaz de repressão que imprime vigilância constante e poder remoto sobre os criminosos. Bruce explica que o temor flui nos meliantes após o comissário Jim Gordon (Jeffrey Wright) acionar o sinal de ajuda (aliás há um easter egg disso no Google ao pesquisar “Jim Gordon”).

A construção da aparência distópica de Gotham, alimentada pela fotografia densa de Greig Fraser (que também trabalhou no Duna de 2021), é assertiva e rima visualmente com a desenvolvida no Coringa de 2019, embora os filmes se passem em épocas distintas e não tenham relação direta entre si (pelo menos não revelado até agora). E o jovem Batman constrói sua personalidade por meio de frases de efeito: o “eu não estou nas sombras, eu sou as sombras” soa didático e muito menos eficaz do que o “eu não estou em perigo, eu sou o perigo” de Heisenberg. Assim como o:

“Eu sou Vingança

Felizmente, o filme capta o teor cheesy desta autodenominação ao caçoar, ao longo da história noturna em torno em treva, do sr. Vingança. E acerta ao não apresentar aquela velha história do assassinato de Thomas e Martha Wayne, optando por rememorar este fato por canais sutis. Aliás, como já discuti em análise de Vingadores: Ultimato, a vingança nunca é plena; lição a ser martelada continuamente pelo Cavaleiro das Trevas, de modo a não deixar matar e envenenar as almas de suas pessoas queridas.

“Quem vive nas trevas não consegue ser visto, nem vê nada”

— Khalil Gibran

Parte 2: O risco de pessoas trauma-driven

Quando eu era pequeno (não que eu seja muito alto atualmente), fiz uma visita escolar a um zoológico. O rugido de um leão (que mais tarde descobri ser produzido por um alto-falante) me fez correr desesperado na chuva em buscar de salvar minha própria vida daquele animal selvagem, o qual estava enjaulado e indiferente a mim. Hoje em dia não sei se tenho tanto medo de leões, não possuo diagnóstico nesse sentido, no entanto ainda conservo a memória daquele momento assustador. Meus medos de leão atualmente são, no máximo, o do Imposto de Renda.

Traumas psicológicos podem resultar em pesadelos, flashbacks negativos, tristeza, culpa, sensação de entorpecimento… Em alguns casos, a autodestruição se torna meio para amenizar a angústia. Ações nocivas e tendências suicidas são combustíveis de escape da realidade distorcida autoimposta. Em um estudo sobre Trauma e Pulsão em Psicanálise, Bruno Daemon Barbosa descreve:

O trauma é visto com uma comoção psíquica, uma reação às excitações que modificam o eu e permitirão o surgimento de novas formações egóicas. O trauma é um choque que carrega um fator surpresa responsável pelo desencadeamento do sentimento de angústia, originado pela incapacidade do sujeito em adaptar-se à situação penosa.

E Bruce Wayne sempre foi uma figura movida pelo trauma; sua essência como herói é o trauma, dano qual, em estudos de Freud, é capaz de desencadear reações narcísicas. Bruce, com seu caráter narcisista filantrópico e com sua empatia ainda em exercício, recorre à insanidade de se travestir de morcego e criar um sombrio personagem trauma-driven que, por sua vez, imprime escotofobia nos que merecem ser punidos. Mas Batman não é um super-herói, pelo menos não no sentido ideal de indivíduo com superpoderes. O homem-morcego maduro e cansado de Ben Affleck indicava, com precisão, que seus poderes vinham do dinheiro. E, de fato, a figura de um maluco fantasiado com apetrechos tecnológicos é mais eficiente quando tratada a partir da ótica de um vigilante anti-heroico do que como símbolo paternalista máximo de esperança e segurança.

Isto porque o Batman combate vilões, mas, na maior parte das vezes, o Batman é a origem dos vilões. E os malvadões compreendem isso, mas o próprio morcegão não (ao menos não totalmente). Com isso, a luta egotista de Bruce deve ser em equilibrar estas forças caóticas e em calcular as consequências de suas ações para que não escalem a um nível catastrófico. Algo que o Battinson se mostra incapaz, ou melhor: que o roteiro de Matt Reeves e Peter Craig impõem. A escalada de desastres elimina o fator realístico e “pé no chão” construído nos primeiros atos do filme.

A grandiosidade em explosões por perseguição de carros com o Penguim (Colin Farrell), o terror do assassinatos em série do Charada e, por fim, cidade inundada, nos lembram que o noir, na verdade, é um blockbuster a serviço de um universo cinematográfico maior, há tanto tempo em tentativa de ser consolidado pela DC. O movimento é acompanhado pela trilha de Michael Giacchino, a qual utiliza aliterações secas e se distancia das bela prosódia musical de Hans Zimmer na trilogia de Christopher Nolan ou do valor heroico conduzido por Danny Elfman nas adaptações de Burton. O tema do Batman, inspirado no riff nirvanesco de Something in the Way, é uma repetição de duas notas base que conduzem do minimalismo reflexivo ao maximalismo piromaníaco e que, de épico, se torna incômodo. Lembra um tanto o início da Imperial March ou o crescendo de Jaws, ambos de John Williams, contudo aqui se torna memorável mais pela recorrente simplicidade forçada do que pela evocação de sensações. A distorção feita nas versões de Ave Maria se encaixam bem, mesmo sendo patético, embora engraçado, o canto lírico de Charada na prisão-asilo de Arkham.

A obra, segundo Reeves, é inspirada principalmente por Ano Um, O Longo Dia das Bruxas e Ego e outras Histórias. Pode-se ver a influência de Ano Um, na inexperiência do “Maior Detetive do Mundo”, de Ego e outras Histórias, na luta interna de seu egosistema e no Longo Dia das Bruxas… pelos longos 176 minutos de tela. Quando parece que estamos no último momento, mais um epílogo para frustrar a expectativa de finale, de modo tal a deixarem abertos os finais para continuações e spinoffs (como a já confirmada série do Pinguim). Inclusive, é altamente desnecessário o fan service na cena de conversa entre Charada e o suposto Coringa (Barry Keoghan) no asilo Arkham.

Aliás, tratando de figuras patológicas, Edward Nashton (ou Patrick Parker, você decide) deve sua composição a Zodíaco e Se7en de David Fincher. Infelizmente, a idolatria cega ao arqui-inimigo, o complexo de Napoleão e a ânsia do imediatismo o impede de ser um John Doe. Também, como um tributo ou referência, podíamos ter uma contra-charada vinda do Batman, tal qual em Batman Forever. Ou segredos e dúvidas ainda presentes no fim (ou pelo menos mais tempo para seguirmos o raciocínio e desvendarmos em conjunto as charadas), como Fincher ensina em suas obras. A verdade é que The Batman é envolto em escuridão, mas nada misterioso.

“A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia”

— Michel Foucault

Parte 3: Vigiar e punir

Foucault, referenciando o panóptico de Bentham, discute diversas ideias acerca de política social em seu livro Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Sobre como o delinquente é definido, em oposição ao cidadão normal de bem, como louco, anormal, perturbado de verdade. Sobre como a prisão se tornou forma generalizada de punição para qualquer tipo de crime. Sobre como o sistema carcerário incorpora o título de instituição soberana na sociedade moderna. O Batman do Porta dos Fundos evidencia brevemente isso, junto com obra de Noam Chomsky, reiterando o que comentei na parte anterior desse texto.

Na lógica binária de resolver os crimes ao matar ou prender, Bruce escolhe o último, enquanto o legado plutocrata dos Wayne parece seguir indiferente à superlotação de celas, algo levemente cutucado pela candidata à prefeitura, Bella Reál (Jayme Lawson).

Em relação aos personagens, podemos listar:

  • Merece palmas a maquiagem que torna irreconhecível Colin Farrell no papel de Oz (Oswald Cobblepot, o Pinguim). Segundo Colin, sua atuação foi inspirada em Fredo Corleone, mas contém muito de Robert de Niro, sendo eficiente como figura de alívio cômico.
  • John Turturro é uma bela surpresa como Carmine Falcone. A composição séria colabora com o universo no qual está inserido. Quem o conhece de outras películas pode tender a esperar, a todo momento, por seu humor corriqueiro, algo que não se concretiza, fortuitamente.
  • Zoë Kravitz é, talvez, a que apresenta melhor atuação; percebe-se isso, por exemplo, apenas ao ver sua reação logo após o Batman dizer seu nome: Selina. Seu gesto de surpresa silenciosa expressa um “como você sabe meu nome?” e, logo em seguida, um “tanto faz, você tem seus meios de descobrir isso e não me importa”. Tudo isso em 3 segundos e sem emitir um som. Sua mulher-gato é uma convincente femme fatale, versátil fisicamente e sensual no couro rangendo, com a sábia decisão da produção em não ter seu corpo muito exposto de maneira desnecessária. No entanto, mesmo com seu empoderamento, sagacidade e independência (repetida para reafirmar “que ela sabe se cuidar sozinha”), Selina Kyle é apenas um peão no grande tabuleiro dos homens poderosos, um instrumento para Batman atingir seus alvos. O sumiço de sua amiga Annika é incapaz de causar impacto suficiente, pois não entendemos de todo sua relação com Selina, ocorrendo como um pretexto para a história acontecer; a impulsividade da anti-heroína felina serve mais como oportunidade ao Batman dar suas lições do que evolução dela como personagem. Fora o fato de que o filme provavelmente não passa no Teste de Bechdel. Por falar em representatividade, é de estranhar o único personagem asiático ser um papel terciário de cidadão sendo agredido em estação de trem.
  • Jim Gordon é bem interpretado por Jeffrey Wright, com seu peso e responsabilidade diante de um mundo de corrupção. Contudo é o clássico policial bom, sem grandes novidades.
  • Nos breves momentos de Andy Serkis como Alfred Pennyworth, se delineia a relação de “parentesco" e conexão com Bruce. Bons momentos poucos, o que faz pensar que poderia haver mais de Alfred nas quase 3h de filme.
  • Charada carrega muito do filme. São traçados paralelos entre o nêmesis e o homem-morcego, ambos como stalkers das sombras, órfãos traumatizados, idealizadores de uma Gotham melhor em teoria, mas terríveis na execução prática. Mesmo divertido, revestido de humor sombrio e com seu traje BDSM, Paul Dano exagera em muitas partes, com seu tom histriônico catártico, risada descontrolada e salpicada de cabotinismo insano caricatural. Isto além do caráter Jigsaw de plano maléfico mesmo após sua suposta derrota. Contudo, seu terror online neofascista e influência remota sobre seguidores em redes sociais da deep web (e, às vezes, nem tão profundamente assim na internet) é tema bastante atual e acertado.
  • Por fim, Battinson é o Batman dos millenials, com seu tom soturno trágico inexpressivo, suas falas breves e sussurradas, um incel que evolui o mínimo suficiente na jornada de herói. Tem medo de altura, não sabe usar ainda seu bat-rangue, não sabe cortar cabo elétrico de cima pra baixo ao invés de debaixo pra cima, esquece de fazer manutenção no seu bat-móvel. Seu voyeurismo é uma adição interessante e perspicaz. Mas falta coragem, ousadia e alegria do roteiro em trazer um Batman que chora, não apenas por seu trauma de infância, mas pelo sofrimento do mundo; um Batman que ri do ridículo das situações e da absurda, mas necessária, esperança de encarar um mundo decadente, de erro em erro tentando salvá-lo; um Batman que faz, ao menos, 2 horinhas de terapia no mês e explora sua anima junguiana e deixa de ser o impávido monólito da resistência e reticência masculina. E até, embora tema sensível, poderia ser explorado (ou comentado brevemente) sobre tendências suicidas desse Bruce. Quem sabe tendo sido salvo por Alfred, algo que fortaleceria ainda mais a importância da relação entre ambos.

No fim, os gothamitas seguem o Cruzado Encapuzado e passam, cada vez mais, a depender e confiar nas suas intenções. Gotham, afinal, é um playground para criminosos megalomaníacos, policiais corruptos, cafetões mafiosos, políticos pretensiosos, bilionários narcisistas. Para um morcego fantasiado que deve se renovar constantemente e para mentes de roteiristas, atores e diretores que, por meio da fantasia, têm a falar sobre vingança, trauma, política e o que quer que o tempos escuros nos tragam.

★★★☆☆

“Pessoas que usam máscaras são dirigidas pelo trauma. São obcecadas por justiça por conta de alguma injustiça que sofreram, geralmente quando eram crianças. Logo, a máscara. Ela esconde a dor”

— Angela Abar (Watchmen)

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Robert Pattinson como bruce wayne, com sombra nos olhos e olhar aterrador

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”