Praga ou Um Milagre Ruim

Gustavo Simas
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9 min readAug 30, 2022

Um artigo sobre Olhar e análise de NOPE

Este texto contém spoilers de Não! Não Olhe!

Parte 1: Entretenimento

Minha mãe me pergunta:

Não! Não Olhe! é continuação de Não olhe para cima?

E eu respondo:

Nope

O título em português (tradução que, segundo Boscov, é candidata forte ao prêmio “Ai caramba”) pode confundir espectadores; inclusive pôsteres semelhantes fortalecem esse aspecto. Contudo, apesar das coincidências nominais e publicitárias, a obra de Jordan Peele não é sobre negacionismo ou os (des)valores da informação na era da pós-verdade. É sobre reparação, sobre os (des)valores da indústria de ficção e entretenimento na era da informação.

Em conteúdo para a Entertainment Weekly, Peele afirma que começa com o risco, com o desafio de um projeto talvez inexequível, que se torna aspiracional. Dando como preparação a seus atores uma lista de referências cinematográficas contendo Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Tubarão, Onde os Fracos Não Têm Vez, 2001: Uma Odisseia no Espaço e Alien, Jordan mistura gêneros e trafega entre o terror com doses de comédia, entre a ficção científica de invasão alienígena com doses de faroeste moderno. Embora não haja Shyamalan nessa lista, pulsa a influência na tela.

Há uma obsessão pela dualidade em Jordan Peele, já revelada no seu trabalho de estreia, Corra!, com a camada perturbadora dentro da aparente gentileza e receptividade da família branca norte-americana, e em Nós, com os duplos e suas motivações misteriosas. Agora em Não! Não Olhe! há a dualidade em relação à magia encantadora da indústria da criatividade e suas práticas insidiosas. Um terreno fértil que convidou o diretor-autor a explorar sua visão.

Eadweard J. Muybridge, quando realizava seus experimentos em proto-cinema já projetava o olhar e a imaginação populares como agentes na voyeurística humana. Ao inventar o zoopraxiscópio, permitiu que as imagens em movimento e a persistência da visão saciassem a curiosidade dos espectadores pelo peculiar. Na etimologia da palavra, Zoe = “vida” + Praxis = “exercício da vida humana” + Scópio = “Observar”, ou seja, Zoopraxiscópio = Dispositivo de Observar a Vida em seu Exercício. Porém, obviamente, Muybridge não saberia exatamente que a cinematografia tomaria proporções tais a resultar numa lucrativa mitologia hollywoodiana consolidada, edificante de construtos sociais. O caubói branco impávido, os sitcoms infantilizados, o apelacionismo da ficção irresponsável. Isto são alguns dos exemplos que NOPE trata e tenta resgatar para reparar. Sem vitimismo ou queda em clichês e obviedades.

E é justamente por conta disso que se comenta que NOPE é o filme menos político ou social de Peele. Engano. Ao assumir a lógica do dualismo e abraçar a sutileza, surge a oferta de um caminho bambo entre a crítica arguta e a lembrança respeitosa ao Cinema. Há desvio do maniqueísmo nos seus contextos e argumentos, desvio de uma acusação monolítica ou estrábica à indústria, permitindo a composição de um espetáculo fluido, engenhosamente tentacular.

O filme cebola possui camadas descascáveis a quem deseja explorar com profundidade, mas podemos separar, em essência, entre um nível básico de entretenimento aberto a todos os públicos, um nível sobre o aspecto da espetacularização e outro sobre a questão racial.

No fim, entendendo seu papel lúdico (e não ludita) Não Olhe! entrega diversão e crítica-ensaio nas suas camadas artísticas que atraem olhares de curiosos espectadores e diferentes pontos de vista.

“Quando largamos o medo, podemos aproximar-nos das pessoas, podemos aproximar-nos da terra, podemos aproximar-nos de todas as criaturas celestiais que nos rodeiam” — bell hooks

Parte 2: Espetacularização

Teorias iniciais de fãs indicavam que NOPE (que, como gíria em inglês, é irreverente jargão equivalente a “não”) significaria Not Of Planet Earth (Não Do Planeta Terra). Outros acrônimos foram sugeridos, contudo a explicação do diretor é muito mais simples: ele apenas deseja que as pessoas pensem ou pronunciem esta palavra ao assistirem às situações nas quais as personagens se encaminham na história.

Situações essas que são de uma irresponsabilidade serial, partindo de ocorrências estranhas e avistamento de um OVNI/UFO (que, na verdade, agora está sendo chamado de FANI — Fenômeno Aéreo Não Indentificado ou, em inglês, UAP — Unindentified Aerial Phenomena). Na busca pela “filmagem da Oprah”, os envolvidos naquele cenário se arriscam, mesmo conscientes do perigo e do absurdo da situação. No processo de procura por evidências e tendências de confirmação para a verdade latente, ignoram o desastre em potencial e miram o ilógico como aventura jubilosa quase como mecanismo de defesa do ego.

Para os irmãos Otis Jr. (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) a questão é pessoal, para uma justiça apaziguadora do espírito. Para o frustrado atendente de loja Angel Torres (Brandon Perea), o documentarista excêntrico Antlers Holst (Michael Wincott) e o empreendedor traumatizado Jupe Park (Steven Yeun) o espetáculo de visitantes extraterrestes é uma oportunidade inexorável.

Contemporâneos dos tempos em que as redes sociais e a televisão prometem fama instantânea, os bônus superam os ônus letais neste contato com o estranho. E isto se reflete no olhar da câmera curiosa que persegue o OVNI, com a direção nos ensinando que a câmera é quem deve estar interessada nos objetos de cena e não o contrário. A trilha tenebrosa de Michael Abels, colaborador recorrente de Peele, que foi reconhecido e incentivado por Steven Spielberg, traz cordas em dissonância e o coro de vozes vibes Lux Aeterna de Odisseia no Espaço (em especial na faixa de abertura The Muybridge Clip) com a percussão anunciando algo de estranho por vir. O design de som grita saturadamente e reforça o caráter lovecraftiano do horror. (Lovecraft, aliás, que, mesmo inspiração para Peele, era um baita “homem de seu tempo” xenófobo e racista)

Steven Yeun, comenta que muitas vezes é mais fácil adotar a persona popular desejada do que resistir à imagem midiática. E o cinismo do trauma comercial no parque de Jupe revela seu olhar vazio, sua supressão de sentimentos ou isolamento emocional (dissociando o fato do afeto) em relação ao evento bizarro ocorrido no sitcom Gordy’s Home. O burnout e frenesi do macaco Gordy, em especial contra Mary Jo Elliot, é inspirado no caso real de Travis contra Charla Nash, relatado em um episódio do The Oprah Winfrey Show em 2009 (sagaz ironia honesta de Peele). A cena de flashback com o sapato de pé, quase flutuante no centro do cenário, pode ser a rememoração exata de um “milagre ruim” ou uma recontagem distorcida com a ilusão do feito.

Encerrando com uma alusão ao famoso gesto do E.T. de Spielberg, o choque com a realidade brutal coroa o trauma.

O livro bíblico de Naum (“naum” que, em internetês, é irreverente jargão equivalente a “não”) denuncia e roga suas pragas e profecias contra Nínive, a “cidade excessivamente grande” e orgulhosa nas margens do rio Tigre, na antiga Assíria.

E lançarei sobre ti coisas abomináveis, e envergonhar-te-ei, e pôr-te-ei como espetáculo — Naum 3:6

Este versículo, que serve como epígrafe na abertura do filme, metaforiza Agua Dulce, Califórnia, a região do Rancho Haywood e Jupiter’s Claim (o parque de Jupe Park) como a Nínive daquele ambiente montanhoso. Ambiente que se apresenta aberto, mas cercado na fotografia de Hoyte van Hoytema; um cerco montanhoso que encerra ali dentro humanos com conflitos e cicatrizes como legado.

No fim, Peele entende que é impossível trabalhar por muito tempo na indústria do entretenimento em massa sem ter cicatrizes, sem ter sido explotado, infantilizado ou apagado. Logo, o próprio Jean Jacket (o OVNI que abduz, que suga para o desconhecido) é a Hollywood reificada, a praga sideral, é o produto do alegórico zoomorfismo da indústria do entretenimento.

“Quando me atrevo a ser poderosa, a usar minha força ao serviço da minha visão, o medo que sinto se torna cada vez menos importante” — Audre Lorde

Parte 3: Cor

bell hooks (sim, se escreve com letras minúsculas) cunhou o olhar opositivo em seu ensaio The Oppositional Gaze: Black Female Spectators. Ela inicia:

Ao pensar sobre as espectadoras negras, lembro de que fui punida na infância por ficar encarando, pela forma firme e direta com que as crianças olham para os adultos, olhares que eram vistos como confrontação, gestos de resistência, desafios à autoridade. O “olhar” sempre foi político na minha vida. Imagine o terror que a criança sente quando, após repetidas punições, vem a entender que o olhar pode ser perigoso. A criança que aprendeu tão bem a olhar para o outro lado quando preciso. No entanto, quando punida, os pais lhe dizem: “Olhe para mim quando falo com você!”. Só que a criança tem medo de olhar. Tem medo, mas é fascinada pelo olhar. Há poder em olhar.

Assim, o olhar é uma ação capaz de esboçar poder e opressão. E o contra-olhar uma forma política de recusa ou revide. Aqui, é refletida no capítulo final de NOPE com OJ abandonando seu usual olhar resignado, que desvia do contato direto, para um olhar inquisitivo e desafiador a Jean Jacket.

Em especial, o olhar opositivo é estudado também para reinterpretar aspectos do feminino nas artes e culturas, como é no caso do texto de Lorraine O’Grady que, a partir da pintura Olympia, de Édouard Manet feita em 1863, analisa a visão artística Ocidental sexista para os corpos não-brancos.

bell continua:

Quando a maioria dos negros nos Estados Unidos tiveram pela primeira vez a oportunidade de ver filmes e programas de TV, eles o fizeram perfeitamente conscientes de que a mídia de massa era um sistema de conhecimento e poder que reproduzia e mantinha a supremacia branca. Ver televisão, ou filmes comerciais, envolver-se com suas imagens, era envolver-se com a negação da representação negra. Foi o olhar opositivo que respondeu a essas relações do olhar ao desenvolver o cinema negro independente. Os espectadores negros do cinema e da televisão convencionais puderam traçar o progresso dos movimentos políticos pela igualdade racial via a construção de imagens, e assim o fizeram.

E a subrepresentatividade vem desde tempos do zoopraxiscópio. O teatro e o cinema preto e branco também invisibilizavam o negro; apenas com a democratização de tecnologias de comunicação e popularização de movimentos antirracistas que a produção independente trouxe fôlego e energia para evidenciação e ensejo aos grupos minorizados.

No Brasil, Jeferson De publicou, em 2000, quando ainda estudante de Cinema na USP, o Dogma Feijoada, sua Gênese do Cinema Negro Brasileiro, trazendo dogmas aos filmes negros nacionais:

  1. o filme tem que ser dirigido por um realizador negro;
  2. o protagonista deve ser negro;
  3. a temática do filme tem que estar relacionada com a cultura negra brasileira;
  4. o filme tem que ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes;
  5. personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos;
  6. o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro;
  7. super heróis ou bandidos deverão ser evitados.

São dogmas que materializam a vontade de artistas negros e que, segundo pesquisadores Michelle Sales e Bruno Muniz no artigo Black women’s oppositional gaze making images, quebram estereótipos visuais e normas cinematográficas, sendo um sopro na tentativa de abrir a porta da produção em Cinema para artistas pretos. Embora ainda haja muita porta a ser aberta para mulheres.

Em especial no feminismo negro, a professora de psicologia Carolyn M. West, no artigo “Mammy, Jezebel, Sapphire and their homegirls: Developing an ‘oppositional gaze’ toward the images of Black women” reitera o conceito de olhar opositivo de hooks e elabora que nas produções cinematográficas globais predominam as imagens das mulheres negras em, basicamente, 3 personas:

  • Mammy: a representação da mulher negra empregada doméstica, que cuida dos filhos da família branca em detrimento dos laços com a própria família e que, comumente, é rejeitada afetivamente pelo parceiro;
  • Jezebel: a representação da mulher negra sexualmente disponível, animalesca;
  • Sapphire: a representação da mulher dominante e agressiva, ameaçando os homens em seus sentidos de masculinidade.

Essas imagens históricas perpetuam os paradigmas estéticos colonialistas eurocêntricos. Há, inclusive, pesquisas que mapeiam a reprodução desses estereótipos em novas tecnologias, resultando numa colonialidade algorítimica.

Mesmo que NOPE não passe no Teste de Bechdel (e deixe irrelevantes algumas personagens femininas como a de Barbie Ferreira), há a preocupação em desenvolver Emerald fora desses estereótipos. Do pai, Otis Haywood (Keith David), Emerald não herdou a responsabilidade e a maturidade, assim como OJ não herdou o charme e a eloquência, porém ambos se complementam e conseguem gerenciar os riscos em conjunto, sem que OJ seja uma figura paternalista ou hierarquizada para Em.

Retornando ao cenário nacional, espera-se, portanto, que mais Sabrina Fidalgo, Yasmin Thayná, Grace Passô e tantas outras e outros artistas negros ganhem e ocupem espaço para, como os Haywood, domar o Cinema com seus olhares empoderados.

Plate 626 é o nome das películas da série de estudos fotográficos Animal Locomotion de Eadweard Muybridge, as quais continham o cavalgador negro, reunidas para fazer a primeira imagem em movimento. Peele reconhece a história e utiliza NOPE como uma ferramenta de contramemória, usando-a como uma forma de conhecer o presente e inventar o futuro. Reconhece a explotação e apagamento daquele jóquei negro capturado por Muybridge e, numa aventura moderna com vozes e olhares negros, faz de NOPE um bravo reboot-sequência daquele clipe de 2 segundos.

“Neste país, ‘americano’ significa ‘branco’. Todos os demais precisam de hífen” — Toni Morrison

★★★★☆

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”