This much is TRUE

Gustavo Simas
ReViu
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7 min readOct 3, 2019

Um artigo sobre Violência e análise de Bacurau

Parte 1: “So true funny how it seems…”

Quando vi o trailer de Bacurau passar durante um intervalo comercial de novela da Globo, pensei ser alguma paródia trash de filme do Tarantino. Uma versão abrasileirada de um thriller sanguinolento, ambientada no nordeste do pindorama. Um Django Livre apoquentado.

Percebe-se, claramente, o preconceito emergir nos poucos segundos de propaganda televisiva. Intuitivo Sistema 1 em ação.

Todavia, a curiosidade foi sobrepondo a impressão inicial após a leitura de algumas críticas positivas sobre o filme, a visualização de trailer estendido e a descoberta que Kleber Mendonça Filho, mesmo diretor de O Som ao Redor (2013) e Aquarius (2016), era co-autor desta nova película.

O pôster promocional padrão com rostos de personagens olhando para qualquer lado, menos para frente, o vilão no topo ao fundo e tons vibrantes já me pareceu uma referência a filmes de ação norte-americanos.

Pois bem, e é.

Não exatamente em formato de inspiração honorária. Mas sim de forma antropofágica…

“Nada contra torrent, mas a qualidade dos arquivos que me mostraram de O SOM AO REDOR é pavorosa 💩. Bom poder ter O SOM AO REDOR no Netflix com som e imagem 🔥🎧⚡️💥. Caro torrenteiro, se vai torrentar filme, não economize GBs. Obrigado!” — Kleber Mendonça Filho

Violeiro Carranca guia o funeral de Carmelita cantando Bichos da Noite, de Sérgio Ricardo

Parte 2: “I bought a ticket to the world…”

O filme inicia de forma kubrickiana. O infinito universo negro estrelado com um satélite em movimento na órbita de Clarke. Nos primeiros instantes pensei ter entrado na sala de cinema errada. Mas a voz de Gal Costa cantando Não Identificado (canção composta por Caetano e belamente arranjada por Rogério Duprat) não enganou.

Estamos não há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante; porém sim daqui a alguns anos, na mesma Via Láctea, no mesmo redondo planeta Terra. Aos poucos, lá do alto, como num zoom do Google Earth, nos aproximamos de uma região isolada no nordeste brasileiro. Bacurau, a cidade com nome de pássaro (não de passarinho) nos é apresentada.

A placa avisa de antemão: “Bacurau 17km. Se for, vá na paz”. (não sei se o número 17 em específico insinua alguma referência…)

Caminhão destrói caixões. Teresa (interpretada por Bárbara Colen) volta ao lar, de carona num caminhão-pipa de água potável, com seu jaleco branco e uma caixa com carregamento de vacinas contra poliomielite, tríplice e soro antiofídico (seria contra cobras ou pessoas venenosas?). É bem recebida por Damiano (Carlos Francisco) e por todos os demais habitantes do lugar, aparentemente, pacato. Estamos no velório de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), figura de grande relevância para o povoado.

Este evento extraordinário no cotidiano do vilarejo dura um dia e uma noite, e serve para nos ambientar neste intrigante interior brasileiro. O violeiro Carranca (Rodger Rogério) lidera o rito. Despedem-se da falecida.

Voltamos às normalidades.

E as normalidades são: o professor Plínio (Wilson Rabelo) lecionando para crianças da única escola de Bacurau, tentando encontrar a cidade no mapa digital; o bordel móvel com prostitutas asiáticas no banner, mas brasileiras na realidade; o postinho de saúde com a médica Domingas (Sônia Braga) fastidiosamente diagnosticando pacientes.

Outra normalidade, desta vez indesejável, é o prefeito Tony Júnior (Thardelly Lima) aparecendo esporadicamente (em época de eleição) para oferecer mantimentos ao povoado. Quando põe os pés na via principal, ninguém está. O povo fugidio dispensa a necessidade de olhar na cara do político. E o que o dito prefeito filantropo faz é assaz desastroso.

Acaba por sair ao som de vaias.

E retornará só no final, sob outras circunstâncias.

Outras anormalidades em Bacurau são os assassinatos nos arredores. O “OVNI” que persegue o naturalista Damiano. O caminhão-pipa furado em vários pontos após ter sido pipocado de balas. Dois motoqueiros com trajes de trilha que adentram a vila…

O ex-matador de aluguel Pacote, apelido de Acácio (Thomás Aquino), se evidencia como figura do front para identificar (e, por conseguinte, matar) os responsáveis por estas anormalidades. Pacote busca trazer novamente paz à sua terra natal, tão como alcançar redenção pelos atos de sua antiga profissão. Com o agravamento da situação, nada resta a não ser empunhar rifles e recorrer para o braço forte, o facão cortante e olhar vingativo de Lunga (Silvero Pereira).

E aqui Lunga é o anti-herói que simboliza a filosofia da Lei de Talião do Código de Hamurábi. O homem livre auto exilado e sua gangue; objetivam independência e vida; procuram manter sua autonomia e proteger os mais fracos dos mais fortes, aqui, em duros golpes anti-imperialistas. E Lunga convoca todos os habitantes para a guerra contra os invasores estranhos, soberbos e dominadores. Todos os habitantes surpreendidos com as afrontas de outras terras. Todos os habitantes encharcados com a essência da paz armada.

Pois: si vis pacem, para bellum

As músicas de Bacurau são um show em paralelo.

A trilha sonora de Tomaz e Mateus Alves destacam o enigmático, o estranho. Os sintetizadores (com um pouco de algo que, recentemente, lembra Stranger Things, principalemente com o tema Night de John Carpenter) produzem os sons idílicos; experimentos musicais de suspense orquestral. Ruídos e distorções em harmonia com a viola, trazendo a ideia de localidade e universalidade, regionalismo amplo sci-fi. Como esclarece Mateus Alves:

“Eu penso muito cosmicamente. Alinhar a música contemporânea e a experimental, inserindo esses elementos alienígenas (talvez) em sonoridades locais.”

O cortejo fúnebre rima com a grande música de Sérgio Ricardo, Bichos da Noite, e anuncia: “São horas do bacurau […] Festa do medo e do espanto”. Réquiem para Matraga de Geraldo Vandré (também, atualmente, quase um auto exilado da sociedade) resgata os tempos de censura e exílio, fortificando o espírito de resistência das cenas.

E, enfim, a única faixa cantada em língua inglesa é a romântica TRUE do grupo Spandau Ballet; com o suspiro/arfar dos cantores revela o “som da alma” em uma cena peculiar. E tem uma importância significativa no ato final de Bacurau. Ainda mais com a ironia afiada de Domingas e seu suco de caju.

Os moradores, sob efeito de um forte psicotrópico, têm baixas. Mas resistem. Nordestinos, brasileiros, neo-cangaceiros. Descobrimos que, acima de tudo, quem nasce em Bacurau é gente.

“Nos sentimos bem representando o Brasil internacionalmente. E fica aqui o meu amor e a minha admiração por Fernanda Montenegro e Chico Buarque, em especial nessa semana. Estamos todos muito juntos. ❤️” — Kleber Mendonça Filho

O olhar de Lunga

Parte 3: “I want the truth to be known”

Os ambiciosos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles dirigem e roteirizam uma obra que ficará nos destaques cinematográficos nacionais da década. Moldam um gênero western brasileiro (com possíveis inspirações de Glauber Rocha), numa terra de gente simples e rica em características, de resistência recíproca, de anti-heróis por necessidade. Vale saudar a visão contrastante de luz e trevas que Pedro Sotero, diretor de fotografia, aplica às cenas. A edição com suas técnicas de transições de cortina (wipe), nos lembra de filmes como Star Wars. Curtas cenas de relampejos (flashs) e outros recursos de fusão e sobreposição salpicam a montagem. Estes e outros elementos, como a mistura de instrumentos arcaicos e contemporâneos, retratos e revólveres, tablets e enxadas, drones e cavalos, rememoram a Antropofagia da Semana de 22 e o Tropicalismo.

Além disso, há mais traços paralelos com Tarantino, mais especificamente com Era Uma Vez Em… Hollywood, do que imaginava: a exaltação de um local e história; a face da tola revolta sádica nos inimigos sedentos; o discurso expositivo da violência no ato final.

Diz-se que o conteúdo e forma desta película nacional trata dos atos como uma espécie de ode à violência, um incentivo à revolução guilhotinar à francesa. Em momentos atuais, tais opiniões contraditórias (também válidas) merecem atenção, para uma tentativa de esboçar conclusões razoáveis, entre um plano de ficção e do fato, como expressado neste artigo.

Certos pontos de Bacurau são expostos, contudo pouco explorados ao longo da narrativa: como é o caso das intenções reais e trabalhos da gangue de Lunga, da organização dos inimigos estrangeiros e da personagem Dona Carmelita. Talvez intencionalmente, por visão propositada de provocar mistério e deixar (ainda mais) enigmáticos os ares do vilarejo.

E assim Bacurau segue o curso de suas sessões, com seu drama conciso e humor galhofeiro, somando conquistas: Prêmio do Júri no Festival de Cannes, Melhor Filme no Festival de Munique e no Festival de Lima e mais adiante…

Bacurau, a cidade com nome de ave noturna dos sertões, apresenta violência, nudez e sexo com naturalidade. E o filme mostra isto de maneira justificada, não gratuita. A obra é, mais do que elemento de arte e entretenimento pop, um pedaço real-metafórico amplamente representativo de um contexto do Brasil; um tiro que evidencia a barbárie humana; uma estocada contra o colonialismo.

Um relance de um futuro indesejável.

“Abri minha gaveta de meia e cueca e saiu um gnomo gritando “JÁ FOI VER BACURAU?!! HAHAHAHA” (pesadelo). Gostei.” — Kleber Mendonça Filho

Teresa e demais moradores de Bacurau acenam um lenço branco no funeral de Dona Carmelita

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”