Um Sonho de LIBERDADE

Um artigo sobre Liberdade e análise de Uncharted 4: A Thief’s End

Gustavo Simas
ReViu
9 min readNov 17, 2018

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Este texto também está disponível em versão áudio/podcast:

Parte 1: Old pirates, yes, they rob I

Parkour é uma atividade muito massa. Giros, saltos e corridas por tudo que é material estático ou dinâmico que compõe a paisagem urbana. Um misto de movimentos elaborados, com tomada de decisão rápida em relação aos próximos passos a serem dados, juntamente da exploração do ambiente. Embora interessado sobre, nunca tive a habilidade necessária para praticá-lo. Portanto, acabava executando os movimentos de formas distintas.

De jogo em jogo fui experimentando aos poucos movimentos rolantes e pulos em grandes distâncias. Escalando montanhas e rolando de lobos com Lara Croft em Tomb Raider; se pendurando em cordas, andando em paredes e voltando no tempo com Dastan em Prince of Persia; subindo em telhados e se jogando de abismos com Altair, Ezio e outros assassinos de Assassin’s Creed. Realizando saltos laterais e disparos em câmera lenta com Max Payne. Foi apenas com Faith em Mirror’s Edge que encontrei um definitivo game de Parkour.

Nathan Drake levando um top socão na cara numa prisão no Panamá

Embora tenha efetuado acrobacias diversas com estes personagens, nenhum deles proporcionou momentos de ação tão insanos quanto os vividos por Nathan Drake, da série Uncharted. O aventureiro descobridor de El Dorado, Shambhala e Iram dos Pilares parece imortal. E, acima de tudo, aquilo que o torna peculiar é seu humor, sua auto-estima evidente, seu modo positivo e divertido de encarar o pior dos desastres…

No entanto, seria isso algo de todo bom?

Seja em paisagens rochosas, atlânticas florestas, gelos aos montes ou torrente deserto, Nathan Drake sobrevive. Supera os óbices, na saúde ou na doença, e se sente livre para se jogar, explodir, e sorrir no final da jornada. Mais do que isso, o explorador contamina seus companheiros com sua exaltação pétrea, construindo uma cúpula de animosidade.

O humor é seu maior escudo.

Nathan não é tão bom no Crash quanto Elena

Contudo, ao longo do tempo, com a idade e o casamento, emerge a necessidade de uma pausa para o descendente de Sir Francis Drake. Umas férias prolongadas, salpicadas de pequenas ações de vida normal do casal Nathan Drake e Elena Fisher, dentre estas uma competição infantil (e genial por parte da desenvolvedora Naughty Dog) de melhor pontuação no Crash Bandicoot.

Percebe-se que a pausa é temporária, obviamente, pois parada permanente nunca esteve nos planos do garotão. E o tempo de “desaposentadoria” surge por conta de um velho conhecido: seu irmão, Samuel Drake, supostamente morto, que reaparece para ̶i̶m̶p̶l̶o̶r̶a̶r̶ sugerir a Nate uma aventura em busca de um desejo antigo dos irmãos: encontrar o tesouro do pirata Henry Avery (o qual vem em conjunto com a descoberta da utópica cidade de Libertalia).

E essa turminha do barulho mal sabe que vai ter de segurar uma barra pesada, arranjar muitas confusões e viver as mais eletrizantes aventuras numa coisa de cinema (em IMAX 3D, e não como Sessão da Tarde). Mal sabem eles também que enfrentarão armadilhas fatais dos maiores piratas da História.

Mesmo assim, os dois também o são, de alguma forma. Piratas modernos, contemporâneos, mas ainda piratas.

Jovem Nate olhando para o infinito e além

E isto me lembra de algo que o vilão Robbie Rotten de Lazy Town (saudades) declarava, contagiando as crianças ao dançar e afirmar:

“Faça o que você quer porque um pirata é livre!

No entanto, Robbie — e Nathan — se esquecem que até mesmo a liberdade tem seus limites…

Nathan e Samuel Drake invadindo casas

Parte 2: Emancipate yourselves from mental slavery

Todos os dias nos noticiários aparecem novos casos de crimes violentos, premeditados, hediondos, passionais. Imagens de vítimas e seus lacaios. Filmagens dos incidentes, com autoridades comentando sobre os fatos e informando sobre futuras medidas a serem tomadas. Consequências existem, provenientes de ações humanas, do destino ou de aleatoriedades. Se justas ou não, depende do ponto de vista. De toda forma, muitas vezes o condenado é privado de sua liberdade, e passa meses, anos, ou o resto de sua vida entre concreto e barras.

Todos os dias, grupos e movimentos discutem sobre, protestam por e trabalham pela liberdade. Liberais Econômicos com os ideais de von Mises, Friedman e outros; Liberais Sociais em termos antropológicos pelos escritos de Stork; Liberais Intelectuais fundamentados sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Organizados sobre o ideal de felicidade coletiva baseado nos direitos de agir livremente.

E Henry Avery, o pirata com estandarte de caveira, em conjunto com seus “parceiros” Thomas Tew, Adam Baldrige, entre outros, almejavam liberdade. Serem livres de ordens da Coroa ou quaisquer outras autoridades, serem livres para explorar o mundo sem empecilhos, serem livres para viver num mundo novo, um paraíso.

“Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” — Lucas 23:43

A Cruz de São Dimas

É o que disse Jesus ao seu companheiro de cruz, São Dimas. Promessas sinceras, mas que podem ser interpretadas de maneira inadequada. O Paraíso, tal qual espaço de harmonia e liberdade eterna, é etéreo e celeste, gracioso apenas em sua forma divina. Pobres são os que acreditam na possibilidade de construção de um Paraíso terreno, erigido por mãos de humanos, seres imperfeitos.

Assim se vê que, até mesmo Libertalia, a utopia pirata que fora concretizada por união de sonhos e forças colaborativas, teve seu fim. Até mesmo em Libertalia ocorreram traições, batalhas e mortes sangrentas. Até mesmo em Libertalia existiram prisões.

Talvez por instinto natural animalesco. Talvez pelos “libertalianos” entenderem errado o conceito de liberdade…

Segundo o Dicionário Significados, liberdade significa:

“O direito de agir segundo o seu livre arbítrio, de acordo com a própria vontade, desde que não prejudique outra pessoa, é a sensação de estar livre e não depender de ninguém

E a condição de não prejudicar outrem é mor no conceito, onde a liberdade de um termina quando começa a de outro; eis a necessidade de empatia.

O Drake caçula pensando se deixou o fogão ligado quando saiu de casa

De acordo com o psicólogo e pesquisador Daniel Goleman, sentimentos morais derivam da empatia e, por sorte, possuímos uma raiz de civilidade por conta de um reflexo involuntário na percepção da dor alheia, o que sugere que a empatia é natural, já a negligência é opção. Ele também afirma que:

“Quando há escassez de recursos, a necessidade de competir por eles eventualmente se sobrepõe à preocupação empática — e a competição se torna parte da vida em quase todo grupo social, seja por comida, parceiros ou poder”

Está aí uma explicação para a disputa interna na organização pirata de Avery, a qual resultou na destruição do “paraíso”: o Desejo de Poder.

Segundo Jean-Paul Sartre o homem “está condenado a ser livre e toda a sua existência decorre desta condição”. A partir daí, suas decisões são eivadas de angústia, por conta dos possíveis efeitos de suas escolhas. Sendo assim, o homem deve ser responsável pelos seus atos, não só caídos sobre si, mas também sobre toda a humanidade; o que prossegue a filosofia do existencialismo-humanismo.

Sobre esta base, vemos que com o advento de Samuel, ex-morto, tentado ser salvo por seu irmão durante a escapada duma prisão panamenha, um misto de surpresa, alívio e angústia aparece no semblante de Nate. Dominado por tais sensações, escuta as explanações e apelos de Sam e não hesita em pôr-se em movimento para salvá-lo. Incertezas mais adiante vêm em relação às mentiras contadas à Elena, no clássico: “você está enganando a si mesmo”.

Anos além, o medo e incerteza vêm sob forma de esconder o passado para sua filha Cassie Drake, pensando assim em protegê-la de quaisquer perigos, tão como evitar julgamentos férreos e acusações incisivas por atos errôneos, embora esta não seja a preocupação maior.

Nathan se vê incitado pelo instinto da aventura no reencontro com Victor Sullivan, antigo colega de exploração. E, fora a urgência do trabalho por motivos altruístas, tão como a visão de se tornar ainda mais rico e reconhecido mundialmente, seu maior prazer é pessoal: a possibilidade de realizar descobertas históricas, colecionar itens de civilizações perdidas, adquirir conhecimento, correr riscos e rechear-se de adrenalina e noradrenalina emanam quase como vício para Nathan Drake.

A bem da verdade, aparentemente para ele a luxúria e fama são dispensáveis: bônus que vêm no pacote, mas secundárias ou terciárias; fato tal que atiça inveja e enfurece Rafe Adler, ex-colega de exploração, agora vilão principal também em busca do tesouro milionário de Henry Avery.

Nathan, Samuel e Victor: Los Tres Mosqueteros

Admiração e decepção despontam no rosto de Sam e Nate, no encontro com Libertalia. No decorrer da exploração ambos vão percebendo os problemas na bela teoria de viver em liberdade, imaginado outrora, sonho de uma noite de verão…

Independente do infeliz insucesso na empreitada libertária utópica de Avery, os positivos piratas modernos seguem a realizas giros, saltos e corridas em busca de se preencherem de regojizo pessoal, histórias e ocupação mental pelos anos que seguem; aguardando a oportunidade para, eventualmente, de descoberta em descoberta encontrarem o seu próprio paraíso.

“Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça” — Pedro 3:13

Samuel e Nathan Drake encontram Libertalia

Parte 3: Redemption songs

No filme, Um Sonho de Liberdade (Shawshank Redemption) de Frank Darabont, adaptado de obra do produtivo Stephen King, o banqueiro Andy é condenado a duas prisões perpétuas (se é que isso é possível) pelo assassinato da esposa e do amante. O que sucede — com spoilers — são anos de labuta na cadeia e esperança de liberdade por uma condenação injusta. Ao fim, após a fuga, Andy se reencontra com seu amigo Red em Zihuantanejo, um paraíso.

Contrariando parcialmente algo dito na Parte 2: paraísos existem. São subjetivos e variantes de pessoa para pessoa. São combinações de local, tempo e companhias. A ilha em que habito, por exemplo, é considerada por muitos como um paraíso, apesar dos diversos problemas característicos de cidades brasileiras. E não discordo totalmente. Aliás, nossa ilha também já foi invadida por piratas malvados.

Avery não estava tão errado então…

Numa discussão acalorada com Rafe Adler

Um ponto relevante de Uncharted 4: A Thief’s End é que a traição e disputa entre Nathan Drake e Rafe Adler traçam um paralelo com a traição e batalha dos piratas Thomas Tew e Henry Avery. A história se repete, de um jeito bem encaixado.

Outro ponto é que Nathan lança piadas a torto e a direito e, de certa forma, tange a quarta parede ao falar retoricamente, quase consigo mesmo, comentando: “É mais difícil do que parece”. Não se assusta com facilidade, nem se arrepende ou sente grande remorso por ter feito ou deixado de fazer algo. Nathan segue o que já citei em uma análise: “Não choro por nada que a vida traga ou leve” — Fernando Pessoa era sagaz.

O que me intrigou no decorrer da narrativa é que, diferentemente de personagens que retornam ao labor após um significativo período de “aposentadoria” (como Kratos em God of War ou Logan), Nathan Drake mantém o pique; aliás, se mostra num ritmo mais intenso que em épocas anteriores. O garotão envelhece mas não amadurece, continua irônico, jovial, saltitante entre o que Gilberto Gil diria ser “rios de prata, pirata, voo sideral na mata e universo paralelo”.

E, respondendo à pergunta da Parte 1, seu modo positivo de encarar o pior dos desastre é algo bom, pois é o fator que o torna tão carismático.

Congratulo aqui, então, Neil Druckmann e Josh Scherr pelo bem estruturado roteiro. Além disso, vale destacar o belo trabalho de Greg Edmonson na composição do tema sonoro da obra.

Cassie Drake observando um Admirável Paraíso Novo para se explorar

Fora isso, é merecido o parabéns dado a todos os envolvidos na produção desse Indiana Jones dos games.

“Às vezes é preciso escolher o que manter e o que deixar para trás” — Nathan Drake

400 milhões pelos ares

Uncharted 4: A Thief’s End™ desenvolvido pela Naughty Dog
Screenshots tirados por mim

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Gustavo Simas
ReViu
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”