Viver é melhor que sonhAR

Gustavo Simas
ReViu
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7 min readDec 17, 2019

Um artigo sobre Realidade Aumentada e análise de Pharos AR

Parte 1: “Eu não sou cachorro não”

Em finais de 2015 uma rede social criada em 2011 sofreria um boost de popularidade em todo o globo por conta de uma nova atualização. O Snapchat, com sua proposta de mensagens instantâneas e evanescentes (nesta modernidade líquida de Bauman), apresentava aos usuários novas ferramentas/filtros para compartilhamento de imagens. Estes efeitos permitiam aos usuários fazer vídeos com câmera acelerada, em câmera lenta, de trás para frente... Porém o efeito digital que mais levantaria sorrisos e promoveria interações entre amigos seria o “puppy filter”. Antes que se tornasse obsoleto (como qualquer tecnologia), milhões de pessoas o usariam para compartilhar suas carinhas com orelha e focinho de cachorro, alterando suas fotos de perfil em diversas mídias sociais.

Não sabia eu que, ali, a mão invisível da Realidade Aumentada (Augmented Reality — AR) já mexia seus dedos. Uma tecnologia que eu usava e mal entendia o significado; em realidade ouvir este nome me evocava um futuro sci-fi remoto cyberpunk. No entanto ela já estava entre nós.

Mais tarde Instagram (e Facebook também, porque afinal é tudo do Zuck) surfariam na mesma onda e estenderiam as possibilidades. A bem dizer, grande parte da popularidade do Instagram deve-se ao boom de filtros; empregos novos criados, impulsionamento de influenciadores digitais, trabalhos que na atualidade se sustentam no desenvolvimento e uso destas ferramentas.

Empresas de entretenimento digital, como a Niantic Inc., viriam a ser uma das mais rentáveis e conhecidas em relação a jogos com AR ao produzir games como Ingress e Pokémon GO. Com estes novos aplicativos à disposição novas formas de interação foram criadas, amizades e relações de afeto, sedentários passaram a se movimentar, encontros coletivos se realizaram; riscos e problemas emergiram, discretamente de rompante, em paralelo, causando obsessão, vício e, inclusive, mortes. Porém isto é assunto para outras discussões.

Adentrando as Portas da Percepção

A discussão aqui é se, por exemplo, o público tem consciência do impacto e consequências deste tipo de tecnologia. Se podemos buscar na realidade aumentada outras alucinações além das do dia-a-dia. E se, no futuro, será possível viver sem AR.

“Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação” — Charles Chaplin

Parte 2: “O meu delírio é a experiência com coisas reais”

Donald Glover é conhecido pela sua flexibilidade. Não apenas em termos específicos de flexibilidade física, mas também em relação à personalidade multitalentosa. Ator, humorista, músico; o artista norte-americano é conhecido principalmente por This is America (um marco na indústria de videoclipes) e também por protagonizar a série Atlanta. Para ampliar ainda mais seu portfólio, decidiu trazer seu espetáculo Pharos para as plataformas móveis e facilitar acesso a um produto ungido de arte e tecnologia.

Avatar virtual luminoso de um Childish Gambino dançante

Pharos AR é não um game, mas uma experiência de imersão num universo criativo de Gambino. Explosão de luz e raios, com partículas que, unidas, tomam forma e movimento; o objetivo não se dá unicamente (ou majoritariamente) como passatempo ou entretenimento rápido, a meta é a viagem, a navegação que é precisa. E Gambino parece querer que nos movimentemos e, até quem sabe, dancemos enquanto seguimos escuridão adentro. Saímos do espaço que vemos fora da tela para o alto; entramos numa porta escura de bordas neon a uma odisseia parsecs além. Adentro das portas da percepção que separam o desconhecido do conhecido, conforme comentadas por Blake e Huxley:

“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.” — William Blake

Constelações do que se parece o zodíaco, animais e pessoas sem rosto, sem identidade, dançantes como pó de estrelas num único ritmo; naquele espaço simulado temos de nos mover ao redor para sorver e entregar energia para trazer luz ao ambiente e prosseguir. Acompanhar o espetáculo ao flutuar sobre uma ponte (estilo Bifrost) rumo ao buraco negro crescente.

Pharos AR é uma densa experiência curta, a qual, se fosse preciso encaixar num gênero, poderia ser classificada como um walking simulator em realidade aumentada. Ou um simulador de surrealismo intergalático. Ou, como Arthur C. Clarke propunha: uma ciência indistinguível de magia.

A História conta que a Realidade Aumentada, tão como a Virtual, tiveram seus primeiros experimentos práticos em meados do século XX. O Sensorama de 1962 desenvolvido pelo cinematógrafo Morton Heilig é um dos exemplos de pioneirismo em Realidade Virtual.

Ivan Sutherland, o “pai da computação gráfica” cria em 1968 o Head-Mounted Display (HMD, agora denominados de Head Mounted Devices), dispositivos estilo Neuromancer que são um símbolo para o VR (Virtual Reality e não “Vale Refeição”). Isto embora Hugo Gernsback, escritor de ficção científica, tenha apresentado uma invenção semelhante com seu Óculos TV, em 1963. 50 anos depois, Google Glass, com aparente inspiração no produto de Hugo, também seria um fracasso.

Em 1975, o artista computacional Myron Krueger apresenta o Videoplace, plataforma interface humano-máquina que possibilita aos usuários a interação em tempo real com objetos virtuais. Uma espécie de Kinect retrô criado no ano de fundação da Microsoft.

Atualmente Oculus Rift, Playstation VR, Microsoft Hololens são alguns exemplos de HMD’s comercializados, no entanto ainda distantes de um valor acessível. Vale citar que o advento de um rol maior de utilidades tende a medrar a popularização e a reduzir os custos de aquisição destas tecnologias.

Apesar das disparidades evidentes, a estrutura de dispositivos de realidade aumentada ou virtual, em suma, deve conter elementos sensíveis a variáveis do ambiente (câmeras ou outros transdutores) e algum mecanismo de exibição (display ou projetor, como exemplo) para ter uma funcionalidade satisfatória. É quase evidente que com o progresso da automação e da biotecnologia novas formas de interação surgirão, com auxílio de sistemas inteligentes e conexão com uma rede maior de sensores (no que é atualmente chamado de Internet das Coisas — IoT). Evoluções na computação gráfica, aprimoramento do hardware das unidades de processamento gráfico (Graphics Processing Unit — GPU) de aparelhos mobile, novas técnicas de detecção de planos, identificação de rostos, movimentos, objetos, seja com Deep Learning ou qualquer outra forma ainda impensada são mais exemplos de utilitários que servirão de suporte tecnológico para a Realidade Aumentada. Há, inclusive, a potencial integração humano-máquina com a embarcação de sensores intra-auriculares, intracutâneos e demais itens com o prefixo “intra” existentes.

Com estas bugigangas inventivas vamos, aos poucos, moldando uma realidade anteriormente (e talvez ainda para vários) pensada como surreal.

“Um dia terá que ser admitido oficialmente que o que batizamos de realidade é uma ilusão até maior do que o mundo dos sonhos” — Salvador Dalí

Parte 3: “Rage, rage against the dying of the light”

Pharos AR é uma experiência ousada de um artista criativo e uma equipe habilidosa da Wolf + Rothstein e MediaMonks. A opção de jornada multiplayer é disponível, contudo, devido a escassez de usuários online se torna difícil o compartilhamento à distância em tempo real da experiência. Além disso, por conta da quantidade partículas, elementos, iluminação, movimentos, dentre outros fatores, o processamento exigido pela aplicação é um aquecedor de smartphones.

De todo modo, Pharos AR é um dos exemplos que mostra que as Realidades Aumentada/Virtual/Mista nos permitem explorar e interagir com elementos inexistentes no “mundo real”, experimentar um sonho mais tangível, alcançar as bordas da imaginação; porém, mais do que isso, nos permitem pensar sobre que realidade queremos viver. E, além disso, com as benesses e óbices que cada opção apresenta, se preferimos viver (como verbo ativo) ou experimentar (como verbo passivo). Ou inventar uma superposição de ambas.

Em termos mais práticos, o fato é que softwares, engines e plugins como AR Core Google, Unity Vuforia e Spark Ar estão permitindo que usuários sejam também criadores (meu primeiro experimento, e até hoje o mais popular, foi o filtro de Instagram Joker, inspirado no Coringa de Joaquin Phoenix). Novos tutoriais em texto e vídeo surgem diariamente e impulsionam o aprendizado e a criação. E estes conhecimentos certamente serão incluídos em programas curriculares de cursos de ciências exatas e artes, embora “flexibilidade” ainda seja a habilidade fundamental para este século, como nos esclarece o historiador Yuval Harari.

Dançarinos e palmeiras virtuais num gramado ensolarado

Assim vemos que a Realidade Aumentada, tão como a Virtual, embora já tenham descido a montanha das Tecnolgias Tendências da Gartner, estão cada vez mais tendo seu acesso facilitado, sendo utilizadas não apenas para entretenimento, mas também para Indústria, Educação, Saúde e demais setores de relevância. Dessa forma os passos rumam para integração com dispositivos integralmente portáteis, aprimorando a praticidade de uso e reduzindo a necessidade de HMD’s ou aparatos extras.

Por fim, percebe-se que assim como Asimov já determinava no século passado, e como está sendo proposto para Inteligências Artificiais, é preciso regular e fornecer “modos de usar” para tecnologias AR. Nota-se, também, que quanto mais a realidade sensível não se expressa como desejamos, mais temos tendência a profundamente mergulhar em águas de uma realidade distinta. E, quem sabe, nos depararemos em décadas próximas com avanços que nos impossibilitarão de distinguir o real do ilusório, sem ter pílula azul ou vermelha que nos desperte em definitivo; cabem maiores discussões sobre isto, claro, todavia martela a questão da Máquina de Experiências de Robert Nozick: “se não sabemos distinguir o real do ilusório, isso importa?”

“É precisamente na fronteira do conhecimento que a imaginação tem seu papel mais importante; o que ontem foi apenas um sonho, amanhã poderá se tornar realidade” — Marcelo Gleiser

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”