Como e por que sou romanista

Mateus Ribeirete
15 min readMar 15, 2016

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Para Antônio Carlos Zamarian

Meu amigo,

Conheci a Roma em 2000, talvez 2001. Ou ela me conheceu nessa época, se partirmos do princípio de que não escolhemos times, mas sim que eles nos escolhem. Uma premissa da qual não discordo por completo, aliás. Procedendo a teoria ou não, o fato é que tinha oito ou nove anos. Os jogos passavam na extinta PSN e eu gostava de imitar o narrador. “Batiiistuuutaaa!”, ele gritava, ao menos em minha vaga memória. O uniforme era lindo. Àquela época, a kappa e seu elastano estavam anos à frente de outras marcas esportivas que ainda faziam sacolas de poliéster como camisas de futebol. A combinação de cores só favorecia a Roma.

Essa Roma, pois, foi campeã nacional em 2001, como o Atlético seria campeão brasileiro no mesmo ano. Uma dessas coincidências cósmicas que só podiam significar algo para um garoto. Os videogames colaboravam. Championship Manager, Fifa, Winning Eleven, Football Manager… A Roma era boa, era divertida. Boa o suficiente para brigar com os maiores, se você fosse competente, mas não tão forte a ponto de representar uma escolha covarde. O que corresponde à vida real.

Em 2002, ganhei minha primeira camisa. Meu pai estava prestes a comprar uma azul de 2000/01, porém observamos, ainda na loja, que o patrocínio arrebentava diante da elasticidade da camisa. A kappa não era tão perfeita assim. Semanas depois, voltamos à loja e ele me deu a camisa metade giallo, metade rossa da Liga dos Campeões 2001/02. Usei-a até arrebentar, principalmente o patrocínio e a estampa de “Batistuta 20”, que não sobreviveram. Tamanho G, me cobria até os joelhos. Hoje me serve bem.

Em 2001/02, a Roma de Capello só perdeu dois jogos e ganhou de 5 a 1 da Lazio. Empatou 13 partidas, contudo, e acabou vice-campeã a um mísero ponto de distância da Juventus. A temporada seguinte, 2002/03, foi uma enorme decepção diante da queda de rendimento de alguns pilares. Batistuta já era um simulacro; Candela, menos mágico; Delvecchio, desprovido de gols salvadores. Nomes novos, jovens como Cassano ou veteranos como Lima, ganhavam espaço.

A temporada 2003/04 foi a primeira que acompanhei de fato, rodada a rodada. Cafu havia se mudado para Milão, Chivu se apresentava em Roma. O cascudo Panucci fardava titular e Cassano já era uma certeza. E aqui, com um atraso inexplicável, recito o nome dele — o que requer um parágrafo à parte.

Francesco Totti nasceu em Roma, cresceu em Roma e se tornou a Roma. Não falava italiano, mas romanesco. Disputou sua primeira Liga dos Campeões em 2001, pouco antes de completar 25 anos. A essa altura, seu amigo e nêmesis Del Piero já havia jogado três finais. Totti cresceu em meio a uma Roma medíocre, ao menos se comparada à Inter alemã, ao Milan holandês e à Juventus, que, bom, continua sendo a Juventus. Superou seu ídolo Giannini e conquistou o scudetto em 2001, apenas o terceiro da história do clube. Escolheu não deixar o time do coração para ganhar troféus – o que seria absolutamente aceitável, por sinal –, e carrega consigo uma geração de fãs que ressignificaram o futebol, cada qual à sua maneira, para louvá-lo.

Sem Totti e seus passes de primeira com olhos atrás da cabeça, finalizações estrondosas e lançamentos covardemente premonitórios, uma legião de garotos não teria sentido o futebol. Não teria passado pela catarse mais fervorosa, primal, infantil. Ele foi, e é, e será, por si só, a epítome do ídolo; um Sísifo romano que alcança o topo com sua pedra apenas para recomeçar do ponto mais baixo, derrotado por circunstâncias sobre as quais não exerce controle algum. A instituição deve a ele moralmente, financeiramente, existencialmente. Sem Totti, a Roma seria, hoje, no máximo uma Fiorentina. Carismática, perigosa e muito bem vestida, mas sem ser realmente levada a sério. Não que a Roma seja tão ameaçadora, mas trataremos disso mais adiante. Voltemos, afinal, ao relato.

Em 2003/04, Montella sofria com problemas físicos, uma condição triste que acompanharia a carreira de um atacante extremamente talentoso, porém subaproveitado. Totti e Cassano, por outro lado, formavam uma dupla telepática. O dez era cabeludo, galã, comedor, estiloso, enquanto Cassano, estereótipo de bad boy, correspondia ao maloqueiro, feio e cínico: não devo, não temo. Em campo, dois atletas geniais dotados de raciocínio e leitura de jogo oceanicamente acima da média, além, claro, de capacidade técnica para executá-los, vide o homérico quatro a zero aplicado na Juventus. Não obstante, a Roma foi vice-campeã, e isso talvez nos leve ao cerne da questão toda.

Torcer para a Roma é frustrante. É triste, melancólico. Torcer para a Roma é um enorme exercício de “E se…?”, o artifício dos que não contam a história. O Milan ganhou 2004, quando eu reconhecia que a escolha pessoal não teria mais volta. Até 2006, a Juve dominou, agora com o traidor Fabio Capello, seus discípulos Zebina e Émerson e apostas irregulares. Depois disso, veio a Inter de orçamento infinito, e a Roma chegou tão, tão perto. Nessa época, no entanto, o sofrimento já se diluía. Não porque a Roma produzia dor menor, ou protagonizava menos momentos catastróficos, e sim pela união de sádicos, melancólicos e curiosos.

Em 2004, a internet possibilitou o contato entre diversos romanistas brasileiros, cada qual com uma trajetória particular em direção ao romanismo, ainda que muitas se assemelhassem. Pulemos a Roma de 2004/05 e seu desempenho tragicômico: conheci pessoas extraordinárias por meio do Portale Romanista, e com muitas delas mantenho contato até hoje. Já hospedei amigos em Curitiba; já fui recebido em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. No fim das contas, assusta a quantidade de seres humanos articulados, conscientes e relativamente desprovidos de problemas psiquiátricos a que fui apresentado por conta de um fórum de futebol. Talvez exista um elo universal entre aqueles escolhidos pela Roma, ao menos fora da Itália. Uma tendência a estar perto do topo e fracassar; uma devoção à melancolia.

Em meio a essa nova fase social, surgia a Roma mágica de Spalletti, que antecipava o 4–2–3–1 amplamente difundido até a Copa de 2010. Totti atuava como falso nove em 2005, num elenco extremamente limitado, que não só perdeu Cassano por uma mixaria como não podia contar com Montella, sempre lesionado. Ah, a Roma também estava proibida de contratar graças a uma punição decorrente do acerto com o zagueiro Mexès, um ano antes. Foi do capitano o gol que me fez me atirar ao chão como um lunático, o cucchiaio humilhante contra a Inter. Milagrosamente, esse time, cujo lateral-esquerdo era Cufré, um destro tão grosso quanto raçudo, cujo goleiro era Doni e cujo meia-direita era o habiligrosso Taddei, esse time atingiu onze vitórias consecutivas. Um recorde, à época, cuja cereja no bolo se deu ao derrubar justamente a Lazio. Di Canio, porco, velho e fascista (isto é, assumidamente), figurava naquele elenco, e no ano anterior havia provocado deus e o mundo quando os celestes venceram um dérbi por três a um. Vê-lo substituído em sua última temporada enquanto jogador, triste, abatido, lamentando-se no banco durante os minutos finais da derrota… aquilo não era prazer, não era schadenfreude; era justiça divina contra um porco velho. (Como alegria romanista dura pouco, o recorde de vitórias consecutivas acabou batido logo na outra temporada. Na nossa narrativa, todavia, isso são parênteses.)

A temporada seguinte começou com uma típica romada, isto é, termo que nós mesmos cunhamos — se há um indivíduo responsável, que atenda por Braitner Moreira — e que utilizamos muito mais do que gostaríamos. A romada, afinal, consiste em entregar algo garantido. Tomar viradas homéricas; entregar jogos ganhos; criar esperança para nela pisar com asco. Na supercoppa, a Roma abriu três a zero sobre a Internazionale em Milão. O jogo terminou quatro a três para os mandantes. A Inter seria campeã italiana com sobras, mas a Roma acabou levando a Coppa Italia, além de ter derrotado os nerazzurri fora de casa. Também ganhou do Milan em San Siro, o que era raríssimo. Foi a primeira vez em que uma menina me presenciou na tarefa vulnerável de torcer — Totti fez dois. Bipolar, a Roma eliminou o Olympique “agora vai” Lyon nas oitavas da Liga dos Campeões, ganhou do Manchester United em casa… e perdeu de 7 a 1 fora. Num jogo em que até Alan Smith comeu a bola; em que Evra marcou da ponta direita; em que a vida, enfim, nos lembrou da morte. Em sua primeira temporada completa como centro-avante, Totti conquistou a chuteira de ouro.

No ano seguinte, a Roma brigou ponto a ponto contra a Inter de Ibrahimovic, Crespo, Figo, Cambiasso e dos traidores Chivu e Samuel. Uma equipe que gastava horrores contra outra que dependia de refugos dos grandes, à Giuly e Cicinho, para complementar a base sólida de Spalletti. Surgiam Aquilani e Vucinic, consolidava-se De Rossi. O Real Madrid foi derrotado e eliminado na Espanha. Houve um confronto entre Roma e Napoli terminado em quatro a quatro, com oito jogadores diferentes marcando (para infelicidade do narrador da ESPN, que já entrou rouco na transmissão). Namorava pela primeira vez — não aquela de Milan x Roma, que me dispensou pouco depois, e sim uma garota inteligentíssima cujo pai chegou a ver a Roma de Di Bartolomei ao vivo, o que poderia ter nos aproximado se eu, aos quinze ou dezesseis, não tremesse de medo dele. Nessa época, os momentos mais divertidos do Portale Romanista envolviam xingamentos, por sua vez geralmente relacionados à maior regra do fórum: não conversarás sobre teu time brasileiro. As ofensas a alguns atletas também eram divertidíssimas. “Uma vassoura pendurada na trave, balançando com o vento, teria um aproveitamento melhor que o do [goleiro] Curci”; “Rosi não tem futuro algum no futebol: ele deveria vender medalhinhas do Papa”. Defensores espumavam de raiva.

Na Serie A, uma romada em jogo decisivo: Zanetti marcou pela Inter num fim de partida, e não foi possível derrotá-los em Milão. Antes disso, Mexès havia sido expulso por não fazer absolutamente nada em Crespo. Reclamar da arbitragem é outro de nossos hábitos mais corriqueiros, e o mantemos com carinho. Àquela altura, se nos fosse perguntado – e certamente nos perguntávamos –, achávamos que a Roma poderia ir muito mais longe. Não imaginávamos que aquele era o período do qual sentiríamos saudades. Das firulas de Mancini, da seriedade de Panucci, do compromisso de atletas medianos, porém eficazes, como Cassetti, Perrotta e Brighi. Como todo ciclo, Spalletti se desgastou, caiu fora, e em 2009–10 o desacreditado Claudio Ranieri quase fez milagre. Quase.

A Roma chegou a ganhar da Juventus fora de casa, o que ainda é raríssimo. Lembro de ter assistido na casa da segunda namorada, talvez o primeiro grande amor — suponho que associações entre futebol e vivência como essa resistam ao Alzheimer. Não acreditava no gol de Riise nos acréscimos. Aquela era uma Juve horrorosa. Os giallorossi, enfim, assumiram a liderança ao bater a Inter de José Mourinho. Depois ganharam da Lazio de virada, isso após Júlio Sérgio pegar um pênalti com o placar favorável aos celestes. A festa estava pronta. Faltavam poucas rodadas, e em alguma das últimas — cujo número não vou conferir, simplesmente porque machuca — a Roma recebeu a Sampdoria. Abriu o placar e dominou o primeiro tempo com personalidade. Tomou a virada, orquestrada por ninguém menos que Antonio Cassano, o menino de Bari que tanto havia projetado sonhos no torcedor romanista. Doeu, e doeu bastante. A Inter foi campeã, como seria da Liga dos Campeões e da Coppa Italia, nessa última batendo, claro, a Roma. Anos depois, Luca Toni confessou que não ter vencido aquele scudetto foi a maior dor de sua carreira. Não tenho dúvidas de que muitos ainda perdem o sono ao lembrar de Pazzini desferindo golpes mortais nas redes no Olimpico.

Em 2011, a Roma foi finalmente vendida. Já não havia mais Portale Romanista, embora os laços fortes tenham se mantido. Todos os torcedores se sentiram no direito de sonhar mais alto. Chegava a Roma americana, que traria dinheiro, “projeto”, uma brand e outros termos que rondam mesas de publicitários. As meias então pretas voltaram a ser vermelhas; o escudo trocou o ASR por um “ROMA” de camelódromo, mas que “internacionalizaria” a marca. Até o momento, no entanto, a Roma americana é um fracasso de zero título, quatro treinadores, alguns lampejos de confiança e outros rebosteios inacreditáveis. O orçamento cresceu, é verdade, como algumas negociações foram muito bem executadas pelo clube. Que a Roma é incapaz de se impor e que ainda protagoniza vexames continentais, isso não mudou.

***

Na primeira temporada da nova Roma, sob o comando de Luis Enrique, consegui vê-la jogar. Isto é, no Stadio Olimpico. Contra a Inter. O elenco era fraco, um misto de sobras da feira com apostas fracassadas e outros jovens sem confiança. Na noite anterior ao jogo, estava no Reino Unido. Nevava na Itália com uma intensidade única em décadas. Nove pessoas já haviam morrido por isso, enquanto alguns jogos haviam sido adiados. Da residência onde dormia em Londres até o Olimpico, muita coisa aconteceu. Assisti a três shows no centro de Londres. Peguei o metrô para o aeroporto, pois não haveria tempo para fazê-lo pela manhã. Antes de dormir desconfortável no aeroporto, contudo, o metrô parou por conta da neve. Passageiros restavam à deriva na região metropolitana da cidade.

Em meus registros, constei que “por culpa do futebol, de repente me encontrei com os pés atolados em neve sem saber onde, junto a uma centena de pessoas de dezenas de países diferentes, tentando entender dois irmãos alemães que pararam de falar inglês comigo logo que encontraram um austríaco. Sem drama: ruim mesmo era vivenciá-lo acompanhado por zero convicção de que o voo aconteceria, e/ou se o jogo aconteceria”.

Encontrei outros brasileiros desamparados. Parei num táxi com um mexicano, um inglês, um americano e uma tcheca, todos rumando ao aeroporto de Heathrow. É preciso detalhar a tcheca. “Ela era tudo que um roteirista pouco criativo faria de uma protagonista apaixonante do leste europeu: morena, linda, pouco mais de vinte anos, magra, nariz docemente pontudo, sotaque forte – vatéver –, covardemente encantadora. Baita ilusão de quem acha que o tempo age sempre da mesma forma, afinal os diálogos com ela me travavam no espaço, torcendo para que uma avalanche destruísse Londres e nos restasse naquele táxi por séculos, ainda mais frente à noção de que já mantínhamos mais conversas entre nós dois do que com os outros passageiros (e se a avalanche os atingisse, nhé, paciência)”. Essa foi minha descrição.

Ela me olhava profundamente, e eu já confabulava nosso futuro, quem sabe tomando sorvete em Roma. Dando-se conta de que me encarava talvez demais, contudo, ela fez nosso contato romar. Aos oitenta minutos de nossa curta relação, a tcheca pediu desculpas, referindo-se à atenção visual que dirigia a mim. “Você é igual… ao irmão… do meu namorado”. Conversávamos bastante, mas aquilo me derrubou. Voltei a me concentrar no futuro, afinal havia um voo para Roma com grandes chances de cancelamento. Isso para assistir a uma partida com enormes chances de adiamento. No aeroporto, conheci um caminhoneiro polonês em volta ao mundo. Emprestei seu laptop e conferi na Gazzetta e no Corriere que a partida estava confirmada, ao menos na véspera — eis o primeiro alívio. Dormi meia hora.

O voo atrasou cerca de duas horas, mas aconteceu. Cheguei em Roma na hora do almoço e fui direto para o Olimpico. Apenas quando pisei na capital italiana me dei conta de que não sabia, afinal, chegar no estádio. Pedi informações e entrei em contato com uma parcela da romanità: nunca fui tão bem tratado e ao mesmo tempo desprezado na minha vida. Senti o calor das pessoas. Elas sentiam frio. Peguei um trem para o centro, o metrô para uma estação, um ônibus para o estádio. Posso estar exagerando, mas os italianos fumavam em todos eles. Atingi meu objetivo após muito tempo de pessimismo. Essa é uma das vantagens de se acostumar com a Roma — ela te deixa calejado para o pessimismo.

Num verdadeiro miracolo, a Roma ganhou de quatro a zero. Da Inter. O rosto amortecia por lágrimas que queriam descer. Estava logo ao lado da Curva Sud, onde a festa acontece. (Eventuais pancadarias também). Ao fim do jogo — o melhor da equipe na temporada inteira –, torcedores atiravam bolas de neve entre si, mas também em carros e ônibus. Ainda custo a acreditar que vivenciei tudo em tão pouco tempo.

Luis Enrique se mandou, pois trabalhar em Roma requer paciência para lidar com rádios polemicistas, ex-jogadores hiperpolemicistas, emissoras de TV ultrapolemicistas, torcedores imprevisíveis e um dinheiro que não compensa. O saudoso Zeman foi resgatado e também fracassou. Posteriormente, um derby foi perdido na final da Coppa Italia, mas a terra já estava arrasada antes daquilo. Rudi Garcia trouxe esperança novamente. O ciclo eterno, porém, se repetia. Chegara a vez — outra vez — de a Juventus comandar. Alea jacta est o cacete. Ganhamos. Perdemos. Reclamamos da arbitragem. Não conquistamos nada. E aqui retornamos à máxima: a Roma não intimida, não está no patamar mais alto da Europa, não levanta taças e tampouco se livra de entulhos como Bojan, Destro e Iturbe. Totti já foi vice-campeão oito vezes.

Por quê, afinal, a Roma? Coincidências cósmicas.

***

Em 2006, minha função no Orkut era publicar os gols da rodada, atualizá-los semanalmente. Um usuário reclamou de atraso. “Onde estão os gols, porra? Eu quero ver os gols”. Exclui-o da comunidade. Braitner, também moderador, para que eu reconsiderasse, dado que o infrator havia pedido desculpas. Reintegrado, passamos a conversar. O nome deste infrator era Eduardo, e ele não só morava em Curitiba, como sua residência era muitíssimo próxima à de Zamarian, o grande reitor dos romanistas. O meliante também participava do Portale Romanista. Nos tornamos amigos e mantivemos contato, ocasionalmente lembrando (e rindo) das ofensas decorridas no Orkut.

Anos depois, em um show que nada tinha a ver com futebol, conheci um Matheus. Estávamos na mesma roda por conta de conhecidos em comum — meu amigo havia encontrado um colega, que por sua vez acompanhava Matheus. Esse último usava uma blusa da Roma, sobre a qual logo perguntei. “Pois é, eu torço”, ele disse. Não mantivemos contato. Dias depois, Eduardo disse que este Matheus era seu amigo de infância. Combinamos de nos encontrar para assistir a um jogo. Apresentei-os a Gabriel, outro amigo de década que sempre compartilhou do romanismo. Eles vieram em minha casa, assim como Zamarian, além de Alexandre — que, pasmem, é primo de outro amigo de infância de Matheus e de Eduardo. Mais um sujeito extraordinário (Alexandre e o primo). E Curitiba tem quase dois milhões de habitantes, supostamente. Assistimos, aliás, justamente à virada sobre a Lazio mencionada anteriormente.

Há mais bifurcações grotescas nessa rede, mas me atentarei à maior entre as coincidências cósmicas. Na semana seguinte a essa reunião, Matheus foi pego de surpresa, na saída da faculdade, por um sujeito que pedia trocados para pagar a passagem de ônibus. A surpresa, no caso, deve-se ao fato de que a faculdade é particular, e o pedinte, não alguém desprovido de dinheiro, mas um incauto que havia esquecido a carteira em casa. O sujeito era Guilherme, meu melhor amigo desde os seis anos de idade, que não fazia ideia da existência de Matheus. Os pontos só se ligaram porque Matheus usava novamente o moletom da Roma — aparentemente a única peça que vestiu por semanas. Guilherme, desconfortável com a situação, puxou assunto de forma amigável. Em uma pergunta de probabilidades estúpidas, questionou se Matheus me conhecia — o que havia acabado de acontecer. Desde então, e aqui exponho uma simplificação grosseira, dois círculos sociais compostos por amigos de longa data, sem relação alguma no que tange ao interesse pela Roma, conectaram-se. Dividimos grandes momentos em contextos radicalmente variados. Não há maneira de calcular as ramificações diretas e indiretas que podemos atribuir à Roma. Que o diga Babalin, paulista com mais amizades em Curitiba do que eu mesmo.

Direta ou indiretamente, por conta da Roma conheci seres humanos singulares ao redor do país. Criei um blog de futebol italiano aos quatorze anos, ao lado de outros romanistas. Graças ao blog, entrei em contato com profissionais enquanto sequer tinha espinhas. Fiz amigos de novas esferas, ampliei horizontes, mantive contatos. Viajei, inclusive para ouvir uma palestra de Antonello Venditti — o motivo mais imbecil a alguma vez me tirar da cidade. Aprendi italiano. Visitei Roma, oras. Vi dois romanistas próximos se tornarem pais. Trafeguei por atributos que trazem humanização: empatia, respeito, amor. Expandi meu círculo de confiança, e, mais do que isso, ajudei outros indivíduos a expandirem os deles. Mudei minha vida irreversivelmente. E se é verdade que esse parágrafo soa como as palavras de qualquer palestrante de auto-ajuda, também é verídica a constatação de que somos todos vítimas desse esquema de pirâmide chamado Roma: traga mais dois insuspeitos para o charlatanismo.

Um elemento comum entre os romanistas que conheço é a autodepreciação: sabemos rir antes, durante e após o sofrimento. Não há de ser coincidência. Antecipamos as romadas, contamos quanto dinheiro poderíamos ter acumulado se tivéssemos apostado contra. Reconhecemos — às vezes com vergonha — que a Roma nos é importante e que nos faz falta. Mantemos, entretanto, a premissa de que morreremos, e que, independente do número de programas televisivos capazes de debater o futebol à exaustão, ele não é o elemento mais importante de nossas vidas. Criar laços, protagonizar histórias e recontá-las: eis razões muito mais interessantes para constarmos na miríade de seres humanos. Sic transit gloria mundi: Totti passará, nós passaremos. A Roma foi um dos maiores empurrões da minha vida, um gatilho sem precedentes. Devo, enfim, no mínimo alguma gratidão. Tudo que ela pede em troca é um pouco de angústia ou alguns jogos sonolentos no domingo de manhã. “Transformar a desgraça em motivo perpétuo de beleza, fazer do coração a própria taça e beber a sicuta da tristeza”, em poema de Hermes Fontes. “A vida passa, a mocidade passa. A glória, o ideal, o frêmito, o esplendor… Mas emborcada até o fim da taça, uma coisa nem sempre passa: o amor”. Poderia ter sido muito pior.

Poderia ter sido a Lazio.

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Fatece largo. Excedi-me além do que devia; o prazer da conversa…

Março de 2016.

Mateus Ribeirete

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Mateus Ribeirete

edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.