Entrevista — Mao (ex-Garotos Podres, Satânico Dr. Mao)

Norberto Liberator
Rise Above Zine
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11 min readOct 14, 2016

José Rodrigues Mao Júnior é um verdadeiro dinossauro do underground brasileiro. Passou a maior parte de sua vida cantando com os GAROTOS PODRES, sua primeira banda, baluarte do Punk Rock nacional. As músicas que misturavam Ska com Punk tradicional e Hardcore, além das letras irônicas e politizadas, fizeram da banda um ícone para o país, e inclusive fora dele. Apesar de mais de 25 anos juntos, problemas pessoais acabaram afastando os membros, e assim Mao formou seu projeto O SATÂNICO DR. MAO E OS ESPIÕES SECRETOS. Ele contou ao RISE ABOVE ZINE sobre o início do Punk Rock paulista, a trajetória e fim do GAROTOS PODRES e o que planeja para o futuro.*

Foto: Divulgação

Os últimos tempos têm sido conturbados para os ex-integrantes do que um dia foi o Garotos Podres. Brigas na justiça pelo nome da banda, alfinetadas etc. Conte-nos resumidamente sobre o que levou de fato ao fim da banda e explique se há alguma expectativa de voltar a usar, com outros músicos, o antigo nome.

As coisas que ocorreram e que ainda estão ocorrendo são de extrema gravidade. Os problemas internos na banda se arrastavam por muitos anos, e a “corda acabou arrebentando” em julho de 2012 após um show em Araraquara. Desde então a banda “rachou” em duas: eu e o Cacá Saffiotti fomos para um lado, e os outros dois para outro. Apesar de fundador da banda, autor e compositor da maioria das músicas, assumi publicamente o compromisso de não utilizar o nome “Garotos Podres” enquanto perdurar a pendência jurídica em relação à “propriedade” do nome da banda. Infelizmente, outros ex-integrantes não tiveram a hombridade de assumir este mesmo compromisso e estão tentando se apoderar indevidamente do nome “Garotos Podres”. Curiosamente, aqueles que menos contribuíram para a construção da banda, são os que hoje tentam se apoderar de seu legado com o intuito de amealhar alguns trocadinhos. Se observarmos o encarte do último álbum dos Garotos Podres (Garotozil de Podrezepan), podemos notar que ambos os cidadãos não compuseram uma música ou letra sequer, afinal, eles mal apareciam para ensaiar. Mas o mais grave são as questões de natureza político-ideológicas. Desde o rompimento da banda, os dois outros ex-membros da banda “aproximaram-se da direita”. Através das redes sociais passaram a apoiar publicamente a repressão policial, a ditadura militar, compartilhando as ideias de Olavo de Carvalho, Bolsonaro, Sheherazade etc. Em outras palavras, passaram a defender posturas e ideias opostas a tudo aquilo que representou os Garotos Podres. Se eu voltarei ou não a usar o nome “Garotos Podres”, isto depende de decisão judicial. Espero poder retomar este nome das imundas mãos ímpias do fascismo.

Quais eram as maiores dificuldades, no começo do movimento punk, de se manter uma banda ou mesmo a postura?

Creio que as dificuldades para uma banda se manter no início dos anos 80 eram muito maiores do que hoje. Instrumentos eram muito caros, conseguir gravar era dificílimo, não havia “redes sociais”, internet nem mesmo computador pessoal para divulgar o trabalho. A coisa era realmente precária e era necessário muita garra para se manter na ativa. Em relação à questão política as coisas também não eram fáceis. Vivíamos o período final da Ditadura Militar, e a repressão policial era muito mais intensa do que hoje. Mas de certa forma este “clima” de autoritarismo acabava servindo para reforçar nossas posturas ideológicas. Havia desde rixas entre punks e bangers a gangues punks entre si e capital x ABC.

Quais os momentos mais tensos que você chegou a presenciar dessa página triste na história do underground brasileiro?

Creio que o que havia de mais negativo no período eram justamente as constantes brigas que havia entre os diversos grupos de jovens. O pessoal que curtia Heavy Metal brigava com o pessoal Punk, o pessoal Punk do ABC brigava com o pessoal de SP, os carecas brigavam com os punks, etc. Ou seja… todo mundo brigava com todo mundo. Acho que esta era a maior debilidade de todos os movimentos juvenis de contestação social do período. Esta desunião, no fundo, prejudicava a todos.

Foto: Divulgação

Apesar de sempre deixar clara sua postura política totalmente contrária à extrema-direita, você já foi muito mal interpretado pela letra da música “Führer”. Li uma entrevista tua em que diz que ela trata da política externa de Israel, comparando-a ironicamente à dos nazistas. Porém, não acha compreensível que a forma como está escrita dê espaço para outros tipos de interpretação? Te incomoda que uma minoria de pessoas relacione tua mensagem ao antissemitismo e neofascismo?

A música Führer foi feita na época dos massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila no sul do Líbano. É um protesto da política de Israel em relação aos palestinos que se aproxima da politica dos nazistas. Ainda sobre tuas convicções políticas, você sempre teve uma guinada forte à esquerda, fazendo letras em homenagem a lutas de trabalhadores e até mesmo fazendo uma versão da “Internacional Socialista”.

Atualmente, vemos que outros ex-membros da banda têm mostrado uma postura que não condiz com essas letras, inclusive elogiando o militarismo e a política do “bandido bom é bandido morto” (que só se aplica aos mais pobres). Sempre foi dessa forma? Se sim, como eles resistiram tanto tempo tocando músicas com as letras que você fazia?

A política ideológica sempre foi um dos problemas que se arrastaram por muitos anos nos Garotos Podres. Sofria uma constante “censura interna” que sempre considerei mais covarde do que a do extinto “Departamento de Censura da Polícia Federal”. Quando eu aparecia com alguma ideia de alguma música nova, era quase que automaticamente “avacalhado”. Os demais integrantes diziam que as minhas letras eram “muito comunistas” ou simplesmente “uma bosta”. Para conseguir convencê-los a tocar aquilo que havia feito, tinha sempre que passar por verdadeiras “sessões” de impróprios e humilhações. O que eu acho mais grave disto tudo é que, depois da música gravada, eles paravam de me encher o saco. Principalmente se o público gostasse das músicas, e fossem nos shows para que eles ganhassem alguns trocadinhos. A hipocrisia era total. Criticavam as “bostas de músicas muito comunistas que eu fazia”, mas adoravam viajar para fazer shows e ganhar seus trocadinhos. Depois do rompimento em 2012, a outra metade da banda acabou assumindo aquilo que realmente sempre foram. Nisto não vejo problema algum. O problema consiste é que eles fazem isto ao mesmo tempo em que intentam se apoderar do nome “Garotos Podres”. Ou seja, estão levando a cabo um “golpe de direita” e transformar totalmente o sentido e espírito da banda. O que eles estão fazendo é absolutamente vergonhoso. Primeiro acabaram com a banda, agora estão tentando destruir o legado histórico dos “Garotos Podres”.

Quando e como surgiu a ideia de ter uma banda punk? O que você ouvia na época que te influenciou a querer ser parte disso?

Tinha 14 anos quando ouvi falar pela primeira vez em “Punk Rock”. Era 1977 e aqui vivíamos em plena Ditadura Militar. Me identifiquei imediatamente com a proposta contestadora do movimento. Naquela época era apenas um garoto que gostava de matar aula para me meter no meio das manifestações. Foi assim nas greves estudantis de 1977 e na dos metalúrgicos de 1979 e 1980. Como muitos de minha geração, o Punk Rock era visto com um grito de rebeldia que rejuvenescia o tradicional Rock’n’roll domesticado pelas grandes gravadoras multinacionais.

A música “Fernandinho Veadinho”, do álbum “Canções para Ninar”, faz referência mais do que clara ao expresidente Fernando Collor de Mello. Vocês tiveram algum problema por causa da letra dela? Saberia dizer se ela chegou aos ouvidos do “Fernandinho”?

Fernandinho Veadinho foi uma homenagem a ‘elle’. Parece que elle não gostou muito, tanto que chegou a entrar em contato com o Ministério da Justiça para proibir esta música, além da “Estou Feliz, Matei o Presidente”, do Gabriel, o Pensador.

Foto: Divulgação

Há alguma história curiosa sobre as passagens por outros países? Como é a repercussão de teu trabalho (desde o Garotos até hoje) fora do Brasil? Eles costumam saber do que se tratam as temáticas?

As histórias curiosas sobre as mini tour que fizemos em outros países são muitas, e a maioria relacionadas a estas coisas mais prosaicas como as homéricas bebedeiras (risos). Nas vezes em que tocamos na Europa, tocamos principalmente em Portugal e no Estado Espanhol, onde as barreiras linguísticas são pequenas. Tocamos também na Colômbia, onde todos nos entendem perfeitamente. Em 1995 fizemos vários shows na Alemanha. Mas apesar do distanciamento da língua, a maioria do público sabia do que se tratavam as temáticas das músicas. O público alemão de punk/oi é muito curioso e sempre procura entender o que as bandas das mais diversas partes do mundo estão dizendo.

Quando vocês começaram, havia em você uma consciência política ao menos próxima à de hoje? Muitos que viveram a época dizem que era difícil conseguir qualquer material e que, por isso, os punks costumavam ir mais para o lado da “baderna” sem uma postura ideológica definida. Como você avalia isso e, numa análise mais pessoal, qual era tua ideia diante dessa realidade?

Naquela época não havia internet ou coisa assim. A principal fonte de informação era a grande imprensa, e os primeiros fanzines eram muito limitados. Existia uma grande falta de informação, o que acabou gerando uma série incompreensões. O conceito que se tinha de “anarquia”, por exemplo, para maioria, era o do entendimento preconceituoso de “baderna”. Naquela época apenas alguns poucos se interessavam em ler e se informar melhor a respeito. No meu caso, tive mais influências ideológicas, a partir das correntes políticas que atuavam no movimento estudantil secundarista. De certa forma, os militantes do “Alicerce da Juventude Socialista” ou da “Libelu” (Liberdade e Luta) eram meus companheiros de “fundão” de sala de aula. Desta forma, tive as minhas “primeiras letras” político-ideológicas através da leitura do material destas organizações. Digamos que foi a minha “introdução ao marxismo-leninismo”.

Você acompanhou o início do movimento conhecido como “os carecas”? Levando em conta a postura que eles costumam possuir e o fato de defenderem radicalmente o nacionalismo, qual tua opinião geral sobre esse pessoal?

No Brasil, os primeiros Skinheads surgiram a partir do movimento punk. Intitulavam-se Carecas e se caracterizavam pelas suas preferências musicais (Oi Music). Inicialmente não havia grandes diferenças de caráter ideológico em relação ao restante do movimento punk. Entretanto a “desinformação” geral fez com que as coisas mudassem em poucos anos. Estes primeiros Skinheads acabaram se afastando do movimento punk em geral, se aproximaram da política e deram origem a diversas correntes políticas contraditórias. Alguns se tornaram “nacionalistas de direita” (que se aproximam do Integralismo), outros “suprematistas brancos” (White Power). Simplesmente muitas “cabeças ocas” copiavam a visão deturpada que a grande mídia fazia do movimento Skinhead. Muito lixo surgiu por aqui no Brasil. Só mais recentemente (a partir da década de 1990) começou a surgir no Brasil algumas correntes mais coerentes com o verdadeiro espírito Skinhead: o SHARP (Skinhead Against the Racial Prejudice) e os RASH (Red and Anarchist Skinhead).

Com tantos anos de USP, universidade com histórico de lutas do movimento estudantil, qual a avaliação sobre os protestos que até hoje têm ocorrido e que tiveram, como estopim, o “Movimento Passe Livre” em 2013, levando em conta que há tanto pessoas com argumentos legítimos quanto ideias um tanto vazias, que dão brecha ao conservadorismo?

Tenho bastante simpatia em relação ao pessoal do MPL. Entretanto o movimento deles tem uma série de problemas. Um deles é esta coisa de rejeitar lideranças, carros de com que conduzam as manifestações, etc. Por mais que pareça “democrático” a organização “horizontal” que eles propõem, isto se constitui uma debilidade. As manifestações deles foram facilmente infiltradas por agentes provocadores da polícia e militantes de direita que assumiram o controle de algumas manifestações. Em relação ao Black Blocs digo o mesmo. A máscara que protege a identidade do manifestante também acabou servindo para proteger a identidade do policial a paisana que se infiltrou. Infelizmente não tem jeito. As diversas formas de organização partidária (disciplinadas e hierarquizadas) é a única forma de organização para fazer frente ao poder burguês. Tenho certeza que, por mais que demore, o MPL ira aprender isto. Em suma: o “coxinhismo” que surgiu nas manifestações que ocorreram a partir das manifestações de junho de 2013 não foi fruto do MPL ou de qualquer outra organização popular de esquerda. O caráter “coxinha” de muitas manifestações foi estimulado pela imprensa burguesa e pela infiltração fascista.

Quais as maiores diferenças do Mao frontman punk para o Dr. José Mao Jr. professor? Você tem/já teve alunos que conhecem e curtem teu trabalho musical?

Sou músico há 33 anos e Professor há 26. Em todos esses anos sempre soube separar bem as duas atividades. Obviamente a maioria dos meus alunos me conhece tanto como professor quanto músico, mas em sala de aula eu sou o Prof. Mao, que fora da sala de aula assume a sua temível identidade secreta: “O Satânico Dr. Mao”. Como já citado anteriormente, houve uma época de rixa entre bangers e punks, algo que considero bastante sem sentido, dada a influência que o Metal teve do Punk Rock e Hardcore a partir de bandas como Motorhead e Venom, e mais tarde formando estilos como o Thrash Metal e Crossover Thrash. Quem contribuiu para o fim dessa briga idiota foram em grande parte Sepultura e Ratos de Porão, com a amizade que possuíam e referências claras a ambos os estilos.

Você pessoalmente já teve problemas com a galera do Heavy Metal? Gosta do som, tem alguma banda como influência?

Estas brigas entre “tribos” (não gosto do termo) em geral nunca foi estimulada pelo pessoal que é músico e que toca nas bandas de diversos estilos. Nós nunca tivemos problemas com o pessoal que curte Heavy Metal, Rap, etc. Também nunca estimulamos a desavença entre os diferentes estilos musicais e o seu respectivo público. Como a maioria do pessoal que curte punk rock, gosto bastante do Motorhead.

Qual tua opinião sobre a internet, Youtube, mp3 etc.? Quais os prós e contras em relação à época em que você começou na música?

Em minha opinião as novas tecnologias relacionadas à informática revolucionaram a cena musical. Poderia dar um exemplo simples: Antigamente era muito difícil uma banda pequena fazer shows, simplesmente porque não havia como o contratante entrar em contato facilmente com a banda (dependia-se de correio, caixa postal, telefone fixo, etc.). Com o advento da internet, basta uma banda ter “site” ou mesmo “página” em alguma “rede social” para que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo entre em contato com a banda. Isto faz com que as bandas fiquem menos dependentes de empresários inescrupulosos. Por outro lado, para uma banda divulgar o seu trabalho tudo ficou mais fácil. Basta a banda ter vontade de liberar o seu material na internet.

Mais uma vez, obrigado pela entrevista. Alguma consideração final?

Um grande abraço a todos os leitores do fanzine, e obrigado pela oportunidade de expor minhas ideias.

Facebook.com/SatanicoDrMao

soundcloud.com/jos-rodrigues-mao-junior

*Entrevista realizada em fevereiro de 2015

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Norberto Liberator
Rise Above Zine

Estudante de jornalismo, cartunista, às vezes tento ser músico. Sim, ‘Liberator’ é meu sobrenome de verdade.