10 filmes para assistir de graça durante a quarentena — parte 2

Uma lista de 10 filmes interditados pela ditadura militar brasileira, que você pode assistir em casa na quarentena e de graça.

Adriano Del Duca
rock.rec.br
6 min readMar 29, 2020

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Fotografia de um protesto contra a censura durante o Regime Cívico-Militar de 1964–1985

Entre o final da década de 60 e início dos 80, a censura brasileira mutilou algumas centenas de filmes e interditou dezenas de obras. Por diferentes motivos, muitos desses filmes permanecem desconhecidos do grande público. Alguns deles estão disponíveis gratuitamente e você pode aproveitar o tempo livre da quarentena pra conhecê-los.

1. Desesperato — Sergio Bernardes Filho (1968)

O longa metragem de Sérgio Bernardes Filho foi um dos primeiros filmes interditados pela censura durante a ditadura militar, ainda antes da publicação do AI-5. Antônio (Raul Cortez), escritor burguês, vive a contradição entre o idealismo de seu livro pretensamente revolucionário e a opulência de sua família. O filme contém cenas documentais de protestos e repressão policial ocorridas em 1968. Apesar de exibido e premiado no Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, foi proibido de circular em festivais e comercialmente, permanecendo proibido até 1979.

2. Jardim de Guerra — Neville de Almeida (1970)

Primeiro longa metragem do diretor Neville de Almeida, Jardim de Guerra, que tem argumento de Jorge Mautner, conta com fotografia de Dib Lufti e Hugo Carvana, Glauce Rocha, Dina Stafi e Zózimo Bulbul no elenco. O jovem Edson (Joel Barcelos) apaixonado por uma cineasta (Maria do Rosário) vai em busca de seu desejo de fazer filmes. Ao tentar financiamento é enquadrado como terrorista e perseguido por uma organização de direita. Transitando entre a curtição da juventude classe média e a luta política, com cenas de tortura, e uma crítica ácida, tanto ao regime político quanto ao modo de vida dos artistas daquela geração, o filme é um emblema do ano de 1968. A censura determinou mais de 48 cortes e intervenções na banda sonora do filme, mas quando estava pronto para circular, veio o AI-5 e o filme ficou interditado por uma década.

3. Meteorango Kid, o herói intergalático — André Luiz Oliveira (1969)

Rodado na Bahia com poucos recursos, o longa de estréia de André Luiz Oliveira, Meteorango Kid é produto da produção vanguardista do final da década de 60, e articula elementos da cultura de massa, do HQ a Jesus Cristo, postura típica da tropicália e o cinema marginal. O filme segue o dia de Lula (Antonio Luiz Martins) um universitário de classe média, em conflito com a família, os grupos, a política. Assumindo a perspectiva do desbunde, o filme expõe críticas morais e políticas de uma sociedade em crise. Ganhou prêmios do público e da crítica no Festival de Brasília de 1969, mas interditado pela censura por conter cenas de sexo, de uso de drogas e questões políticas, só pôde circular comercialmente três anos depois, causando enorme prejuízo ao diretor.

4. Orgia ou o Homem Que Deu Cria — João Silvério Trevisan (1970)

O filme de João Silvério é uma obra experimental em diálogo com as vanguardas do final da década de 1960. Com fotografia do jovem Carlos Reichenbach, o filme faz alusões a uma ruptura estética com a postura sociológica do Cinema Novo ao mesmo tempo que arma sua crítica contra o regime político e a impossibilidade da liberdade de expressão. Com alusões metafóricas ao parricídio (a princípio o filme se chamaria “Foi assim que matei meu pai”) a jornada do sertão à cidade que Trevisan traça, é uma alegoria do drama brasileiro no início dos anos 1970. Foi interditado pela censura e só foi exibido comercialmente em 1995.

5. Prata Palomares — André Faria (1972)

Produzido entre 1969 e 1970 pela equipe do Teatro Oficina, o longa com direção de André Faria e roteiro de José Celso Martinez Correa. O elenco conta com Ítala Nandi, Renato Borgui, Carlos Gregório e outros membros do grupo teatral paulistano. Dois guerrilheiros (Borgui e Gregório) em fuga de uma revolução derrotada, escondem-se em uma igreja, onde um deles decide fingir ser um pároco para se relacionar com a comunidade local. Fortemente alegórico, o filme relaciona religião, luta armada e tortura, em uma estética radical que lhe custou anos de interdição pela censura. Estrearia em Cannes em 1971, mas só pode circular internacionalmente em 1977 e no Brasil a partir de 1979.

6. Nenê Bandalho — Emílio Fontana (1971)

Baseado em conto do ultra-censurado dramaturgo Plínio Marcos, o longa metragem de Fontana busca nos noticiários sensacionalistas elementos para rearticular a imagem popular do criminoso, do marginal, em um anti-herói humanizado. Nenê Bandalho (Rodrigo Santiago) após fugir de um assalto, entra em uma sequência de memórias em flashback, mostrando sua relação amorosa frustrada, a figura da mãe, fugas, assassinatos e ações policiais. Rodado com pouquíssimos recursos e muito trabalho não-pago, conta com Jô Soares e Myriam Muniz no elenco, e a fotografia de Carlos Ebert. Foi selecionado para o Festival de Brasília de 1971, mas interditado pela censura foi substituído por Brasil bom de bola, de Carlos Niemeyer.

7. O País de São Saurê — Wladimir Carvalho (1971)

Primeiro longa-metragem documental de Wladimir Carvalho, foi rodado em Sousa, na Paraíba. Com abordagem poética, arejando o tom sociológico presente no documentário cinemanovista, o filme registra a realidade sertaneja atravessada pela visão utópica de São Saruê, um lugar utópico. Com narração do dramaturgo Paulo Pontes, sua narrativa vasculha o nordeste com depoimentos de poetas, lavradores, garimpeiros, comerciantes, proprietários rurais, mostrando os sintomas da industrialização num sertão semi-feudal. A direção do Festival de Brasília ignorou a recomendação da censura de não exibí-lo e o selecionou para o Festival de 1971, mas acabou interditado e sem circulação até 1979, quando finalmente foi exibido no Festival de Brasília e pôde circular em outras mostras.

8. Os homens Que Eu Tive — Teresa Trautman (1973)

O primeiro longa-metragem de Teresa Trautman é uma ousada crítica aos costumes da sociedade machista, e apesar de seu estilo leve e narrativa fluida, foi recebido como uma pedrada pelo moralismo da censura brasileira. Pity (Darlene Glória) é uma jovem artista carioca da zona sul, que tem liberdade sexual em seu casamento para experimentar outras relações. Suas curtições e namoros se desdobram em triângulos amorosos e conflitos pessoais. O filme foi interditado pela DCDP com o argumento de que o comportamento liberal do marido (Paulo Gracindo) com Pity, poderia influenciar negativamente os jovens, contribuindo para o esfacelamento da família tradicional. A proibição por oito anos e o machismo da historiografia do cinema, que invisibiliza cineastas mulheres, eclipsaram o potente filme de Trautman.

9. Crônica de um Industrial — Luiz Rosemberg Filho (1978)

O filme retrata San Vicente, um país ironicamente fictício, a partir de brasileiríssimo retrato de um proletariado industrial super-explorado no auge da crise do modelo de desenvolvimento conservador da ditadura brasileira. Partindo de depoimentos de operários e imagens das obras do metrô, contrapõe-se a uma burguesia industrial, ilustrada e liberal, representada em Gimenez (Renato Coutinnho) e suas mulheres Teresa (Katia Grumberg) e Ana (Ana Maria Miranda) num sórdido e surreal retrato da sociedade brasileira. Interditado pela censura, jamais foi lançado comercialmente, permanecendo desconhecido e profundamente atual.

10. Das Tripas Coração — Ana Carolina Teixeira (1982)

O segundo longa-metragem de Ana Carolina Teixeira faz parte de sua trilogia feminista, iniciada por Mar de Rosas (1977). Na fronteira entre o desafio comercial — já que foi produzido por Anibal Massaini Neto, grande produtor de filmes eróticos — e o gesto experimental, o filme narra o processo de intervenção em um internato feminino. O interventor (Antônio Fagundes) que tem a missão de fechar a falida instituição, adormece e sonha com as estudantes, professores, madres, e funcionários, alegorizando representações femininas de subversão, desejo e liberdade. No elenco, Othon Bastos, Nair Belo, Ney Latorraca, Dina Staff, Mirian Muniz, Cristiane Torlone, Maria Padilha. O conteúdo erótico e libertário, assim como seu estilo surreal, incomodaram a censura que o impediu durante quatro meses, sugerindo 15 pontos de cortes. Acabou liberado no final de 1982 e teve ampla circulação nacional e internacional.

Seleção de Adriano Del Duca, revisão e diagramação por Frederico Moschen Neto. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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Adriano Del Duca
rock.rec.br

Professor de Sociologia e pesquisador de cinema brasileiro. Movido por poesia, filmes, música e revoluções.