Bom Dia (Ohayo)

Direção de Yasujiro Ozu | 1959 | 94' | Ficção | Japão

Antonio Lima Júnior
rock.rec.br
4 min readJun 4, 2020

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Fotograma de Bom Dia (Ohayo), direção de Yasujiro Ozu — Divulgação

Nesses difíceis tempos de quarentena, uma das saudades é de frequentar as sessões vazias do cinema do Dragão do Mar, em plena tarde de terça-feira, mostrando o grau de desocupado que sou. Na ausência dessa possibilidade, me contento com os filmes na tela do notebook ou do celular, quando o primeiro falha. Dentre as andanças virtuais, me deparo com o excelente catálogo do Medeia Filmes, que está disponibilizando alguns de seus filmes em ótima qualidade gratuitamente nesse período de pandemia, através da sala virtual Quarentena Cinéfila, onde podemos ver três filmes por semana.

Na última semana tivemos então três obras de Yasujiro Ozu, respectivamente, “A Flor do Equinócio” (1958), “Fim do Outono” (1960) e “Bom Dia” (1959), sendo o último um dos meus favoritos da obra de Ozu e o que iremos falar hoje. Diferente dos outros dois, que exploram uma temática social com mais afinco, onde ambos abordam o problema do casamento e do patriarcado no Japão, em Bom Dia as complexidades sociais são diluídas numa trama que envolve uma carga humorística. Assim como nos outros filmes de Ozu, em Bom Dia somos apresentados inicialmente à ausência de humanidade no concreto produzido pelo homem em placas, prédios, etc., para, em seguida, conhecermos a trama desenvolvida a partir de um fato comum, no caso uma fofoca acerca do pagamento de uma cota entre as mulheres do bairro.

Apresentando as personagens do quarteirão onde gira a história do filme em seu drama comunitário, chegamos ao ponto principal, os irmãos Minoru e Isamu, que frequentam a vizinhança para assistir televisão, já que não tem aparelho televisor na casa deles, um drama comum para muitos naquela época mundo afora, ainda no processo de expansão da televisão como um canal universal de comunicação. Ao mesmo tempo, a TV significava status social para quem possuía, além de um agente agregador. Quem nunca viu em Chaves a presença massiva das personagens na casa da Dona Florinda para assistir TV ou quem nunca ouviu dos parentes antigos as famosas televisões de praça?

Após tentarem convencer os pais de comprarem uma televisão e serem repreendidos, os filhos decidem parar de falar como protesto, argumentando que os adultos falam em rodeios, com palavras como “bom dia”. Num tom engraçado, em especial o pequeno Isamu, os irmãos tentam provar que são capazes de cumprir a promessa, criando problemas um atrás do outro. A mudez dos dois é interpretada de forma equivocada pelas vizinhas, que alimentam uma fofoca continuada pela primeira que inicia a trama, o que dá a entender que a crítica, apesar de infantil, das crianças, tem sua verdade na incomunicabilidade dos adultos, como o professor de inglês que não consegue expressar seus sentimentos, ou as fofocas que são verdadeiros sintomas dessa sociedade incomunicável.

Portanto, a promessa de não falar, através dos irmãos, é uma forma crítica de Ozu analisar a incomunicabilidade dos adultos nos tempos modernos, antecipando o tema da trilogia de Antonioni, mas focando na relação dos homens com os instrumentos de comunicação, representado no filme pelas formas, seja a TV ou a fofoca de bairro, mostrando que o problema da compreensão está para além dos instrumentos utilizados. A preocupação do pai dos garotos é com a idiotização provocada pela televisão, abordando assim a costumeira crença da progressão tecnológica como regressão humanitária, bem como o choque de gerações entre o pai e os filhos.

Diferente do drama italiano, Ozu utiliza a simplicidade do cotidiano, sua marca, para reforçar a tendência crítica do cinema japonês do pós-guerra. O discurso crítico é bem diluído no tom humorístico do filme, abordando outros problemas sociais japoneses daquele período, como o desemprego e a aposentadoria das personagens que acompanham o desenvolvimento da trama principal. Essa forma de introduzir temas através de arquétipos é muito semelhante ao filme Dodeskaden, do Akira Kurosawa, lançado em 1970. A semelhança aumenta com a cena do vizinho bêbado que troca de casa, como os dois amigos alcoólatras no filme do Kurosawa.

A posição intransigente do pai mostra também a rigidez das tradições familiares no Japão, tema comum nos filmes de Ozu, retomando o patriarcado presente em outras obras. As personagens femininas mostram o patriarcado quando em sua maioria são donas de casa, enquanto a vizinha descolada é vítima de fofoca. O diretor contrapõe a família e a sociedade através do constante ambiente da casa como espaço onde ocorrem as ações, em contraste ao silencio e à ausência de movimento dos espaços externos. Cenários perfeitos para os tempos de quarentena. A câmera de Ozu auxilia no convite ao envolvimento, sempre posicionada como se o espectador estivesse ali, sentado em cima dos joelhos, ouvindo e vendo tudo o que acontece.

Trailer de Bom Dia (Ohayo)

Convencidos pelas peripécias dos filhos, os pais acabam por comprar uma TV, mostrando a ineficácia de resistir às mudanças do tempo e à ocidentalização do Japão após a Segunda Guerra Mundial. O irredutível pai mostra, afinal, que sua expressão era mera formalidade no papel patriarcal, como Isamu aponta ao provar que o pai estava mentindo em ameaçar devolver a televisão. Assim, os irmãos restabelecem a normalidade, resolvendo as incomunicabilidades da vizinhança com um tradicional “bom dia”, matando as fofocas por enquanto.

Texto de Antonio Lima Júnior, revisão e diagramação por Frederico Moschen Neto. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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