Entrevista com Allan Deberton

Allan Deberton é produtor, diretor e roteirista. Formado em Cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ), natural de Russas, município do interior do Ceará. Lançou neste ano Pacarrete, seu primeiro longa-metragem, gravado em sua cidade natal e que teve sua primeira exibição no 22º Festival Internacional de Cinema de Shanghai. O filme arrematou 8 Kikitos no 47º Festival de Cinema de Gramado, premiação inédita para o cinema cearense. A entrevista foi realizada durante o 29º Festival Iberoamericano de Cinema Cine Ceará, onde o filme filme foi exibido na sessão de encerramento.

Antonio Lima Júnior
rock.rec.br
7 min readSep 22, 2019

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Allan Deberton no Cine Ceará — Foto por Antônio Lima Júnior

Cinestésico: Como foi a experiência do Festival de Gramado, onde Pacarrete arrematou oito prêmios?

Allan: O filme foi super bem recebido lá. Fomos bem acolhidos pelo festival, por sua estrutura, por sua produção e curadoria. Estávamos felizes de estar no festival, foi muito impactante pra gente ter percebido a emoção das pessoas na estreia brasileira e já estávamos satisfeitos por essa recepção. Ter recebido essa premiação deixa a gente, a priori, meio sem entender o que tudo isso significa e depois vai tentando processar a repercussão, mas a gente fica muito feliz porque com isso há um reconhecimento para uma produção feita lá do outro lado, do lado oposto do Brasil e a gente nunca teve um filme cearense premiado lá. Isso faz com que o Ceará se orgulhe do feito e ter recebido oito prêmios dá um ânimo na nossa produção. É um incentivo para outros filmes, como A vida invisível, feito pelo cearense Karim Ainouz, que tá como candidato do Brasil ao Oscar [de melhor filme estrangeiro]; Armando Praça, que foi pra Berlim; o Glauber Filho que tá lançando seu filme; Halder Gomes que sempre lança filmes e conquista grande audiência. Então na verdade isso tudo dá um panorama do bom cinema que a gente tem feito e que tem conquistado público, que tem emocionado as pessoas. Isso incentiva tanto os egressos dos cursos, porque Fortaleza tem a sorte de ter excelentes cursos de formação, mas ao mesmo tempo é um momento de preocupação, porque essas produções elas aconteceram através de uma política de incentivo que é de anos atrás, de quando as coisas aconteciam, quando existiam editais de fomento. Hoje a gente não sabe mais se os filmes serão distribuídos, pois se necessita do FSA [Fundo Setorial do Audiovisual] pra poder exibir esses filmes, então tá todo mundo muito inseguro.

Cinestésico: Você citou a nomeação de A Vida Invisível pra concorrer ao Oscar, mas aqui no Cine Ceará temos visto muitas produções boas em que você mesmo participa da equipe de produção, a exemplo do longa Se arrependimento matasse. Como você vê esse momento da produção audiovisual cearense tanto nas premiações quanto na qualidade?

Allan: A gente faz milagre [risos], porque na verdade esses filmes são de baixíssimo orçamento. Tanto Pacarrete quanto Se arrependimento matasse, que é um filme de menos de 1 milhão [de reais] e ao mesmo tempo tem todo um valor de produção, elenco numeroso e muitas locações, é sempre um desafio, talvez a soma de energias de todas as partes envolvidas. Há muita vontade de fazer. Acho que hoje no cinema cearense também tem muito a questão da paixão pelo que se faz, sabe? E é por isso que as coisas tem acontecido. Por exemplo, há muito amor envolvido nas coisas que o Halder [Gomes] faz, sabe? A gente vê os filmes dele em tela, só que se percebe que ali tem muito desejo de realização, de que seja feito da melhor forma e há sempre um cuidado dessa valorização do cinema local, com equipe daqui. Tem também a questão econômica de empregar pessoas daqui e de formar, enfim uma série de coisas que na verdade colocam o cinema cearense, que hoje tá sendo repercutido, isso também é um trabalho de certa forma histórico, porque houve uma construção pra isso e o que a gente espera é que nos mantenhamos motivados.

Cinestésico: Na abertura do Cine Ceará, o governador Camilo Santana (PT) falou em aumentar o investimento estadual no setor, além da proposta da Ceará Filmes. Nesse momento, tanto estadual como nacional, como você vê essa relação do cinema com o financiamento público para a produção do audiovisual?

Allan: As pessoas comuns costumam criticar sem entender. Existe um nome doce, que é a Lei Rouanet, que as pessoas não sabem o que é. Com isso se critica a Ancine [Agência Nacional de Cinema], sendo que as pessoas não sabem que a Ancine é financiada pela Condecine [Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional], que é gerada pelo próprio setor e que é injetada nos próprios filmes e o rendimento dos filmes volta pro Fundo Setorial [do Audiovisual], que retroalimenta os investimentos. Na verdade o setor audiovisual é um setor dos mais bem resolvidos em termo de economia, ele tá nas categorias mais bem articuladas, que gera mais emprego, que traz mais retorno financeiro. Então é muito estranho quando as pessoas tentam contra a cultura, contra o cinema brasileiro. Isso na verdade deixa todo um setor que demorou bastante tempo pra chegar onde chegou, principalmente o conteúdo brasileiro sendo obrigatório em uma certa quantidade de horas na programação da televisão. Isso fez com que aumentasse a produção pra diversos veículos, como a televisão, NETFLIX, além do cinema. Existiu há anos atrás uma excelente perspectiva de que estávamos num caminho novo e seguro do cinema brasileiro e agora existe uma preocupação de como fazer daqui pra frente, visto tamanha crítica e tamanha desarticulação da Ancine, meio que querendo matar mesmo. Isso faz com que já se perca vários postos de trabalho, muitas pessoas saindo da área do cinema e tendo que sobreviver em outras funções, produtoras sendo fechadas, aqui no Ceará também há exemplos de várias que fecham. A minha produtora, que antes tinha um volume de pessoas que trabalhavam e agora praticamente se reduziu a mim mesmo em função dessa falta de perspectiva de não ter editais, de não ter incentivo, então a gente tá embaixo de uma nuvem obscura.

Cinestésico: E aqui no Ceará, com relação ao edital de audiovisual da SECULT — Secretaria da Cultura do Estado do Ceará?

Allan: Eu só espero que o governador, que prometeu duplicar o valor do orçamento e lançar o edital em setembro, além de nomear os concursados da SECULT, que isso seja feito o quanto antes e da melhor forma, porque o setor está bastante ansioso por isso. Estamos bastante cansados de esperar.

Cinestésico: Voltando pro seu filme, Pacarrete foi gravado no interior do Ceará, em Russas. Qual é a importância de colocar nas telas do cinema essa história do interior do Ceará?

Allan: Pro filme é importante em termos de energia, de linguagem, de afetação da equipe, porque uma vez que a personagem no qual se inspira o filme viveu em Russas e eu também sendo de Russas, também já tendo feito filmes em Russas, a própria cidade que não tem cinema e também não tem meios culturais de diversão, com teor artístico de fato (não existe teatro, não existe cinema). Existe uma falta de encontro das pessoas com a arte, no sentido de espectadores. É o segundo filme feito em Russas, coloca as pessoas da cidade num espaço mais próximo e íntimo porque elas começam a ver o filme sendo feito ali, bem próximo a elas, ocupando as ruas, ocupando as locações do filme, se percebendo tanto o movimento físico das pessoas que ficam transitando entre os espaços, mas também o movimento econômico, porque as pessoas estão lá, dormindo nos hotéis, estão se alimentando nos restaurantes da cidade. Existe um retorno cultural, um retorno econômico e também um retorno afetivo, porque as pessoas que estiveram nesses bastidores elas vão querer se ver em tela, então já se começa a perceber, pelo menos eu percebo, um desejo de ser visto em tela pelas pessoas da cidade e isso viraliza pelos comentários, por uma pessoa que se envolveu, aí viraliza com a família inteira, então existe um desejo de consumo daquela obra artística. Agora no Cine Ceará eu sei de pessoas que se organizaram, que estão vindo de ônibus, lotaram transporte fazendo caravana pra poder ir à sessão. As pessoas saírem em três horas de viagem, ver o filme e depois retornarem para as suas casas às 4 da manhã, isso mostra um movimento, um desejo muito forte de ver o filme, visto que na cidade não tem cinema, um desejo de realmente querer se ver na tela, de querer ser espectador daquela obra. Então fica aí a mensagem de que isso possa se replicar de várias formas, que exista mais incentivo para mais filmes serem feitos principalmente no interior e de que as pessoas tendo acesso ao cinema brasileiro, porque boa parte dessas pessoas talvez sejam um dos poucos filmes brasileiros que elas vejam e de repente eu arrisco até dizer que pra algumas delas é o primeiro filme brasileiro que elas estão vendo no cinema. Então é a primeira coisa pra muitas pessoas, pra mim também é o primeiro filme, pra Marcélia Cartaxo é como se fosse a primeira grande coisa depois de A Hora da Estrela, ela não tem sido reconhecida pela sua profissão de atriz.

Cinestésico: À exemplo de filmes como Cine Holliúdy e Bacurau, que têm criado movimentos interessantes de público, qual a sua expectativa para o lançamento de Pacarrete em março?

Allan: A expectativa é de que, através dos festivais, onde o filme participou neste semestre, a gente consiga criar uma expectativa maior ainda pro lançamento comercial e fazer com que esse público realmente vá ao cinema, porque é muito importante pro filme que ele seja visto no cinema, até pra justificar outros trabalhos, outras histórias também importantes que a gente pretende fazer. É muito necessário que o público consuma o cinema brasileiro, que o público divulgue e que o público replique essa positividade que o nosso cinema, que é feito com bastante esforço, pois é difícil também ver esses filmes projetados. Quando a gente tem essa valorização, a gente tem mais facilidade na produção das obras seguintes e ninguém quer fazer um filme só na vida. O desejo de quem escreve, dirige ou quem trabalha atrás das câmeras é de continuar fazendo isso pro resto da vida. Então é o desejo de que haja uma conquista do público nas salas e que o público comum, brasileiro, consiga ter acesso aos filmes, porque são muito bem recebidos internacionalmente, em festivais, e estamos numa fase de maturidade bem impressionante. Então fica a expectativa com Pacarrete desse encontro com o cinema quando lançado comercialmente.

Entrevista feita por Antonio Lima Júnior, revisada e editada por Frederico Moschen Neto. O Cinestésico é uma publicação independente e colaborativa sobre audiovisual brasileiro e adjacências, mantida pela Sangue TV.

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