Entrevista com Lourenço Mutarelli

Aproveitamos a passagem de Lourenço Mutarelli, para o lançamento da antologia Capa Preta na Itiban para conversar sobre o seu passado, presente e futuro. Com trânsito nos quadrinhos, literatura, cinema,teatro, publicou o primeiro Fanzine em 1988, Over 12, e em 2002 foi para a literatura. Além de Capa Preta, o autor deve lançar uma reedição de Caixa de Areia pela Companhia das Letras em 2020 e um novo romance em 2021. No forno, também a adaptação cinematográfica de Jesus Kid, produzida pela Grafo Audiovisual e direção de Aly Muritiba.

Frederico Moschen Neto
rock.rec.br
10 min readJan 11, 2020

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Lourenço Mutarelli no lançamento de Capa Preta na Itiba, mediação por Liber Paz. Vídeo: Frederico Moschen Neto

Durante o evento de lançamento de Capa Preta na Itiban, você falou que tem um problema com o passado. Como surgiu o convite para relançar os seus primeiros álbuns e por que revisitar essas obras agora?

Foi o Ferréz. Eu adoro o Ferréz e a gente é muito próximo. Já tinham me sondado, a Companhia das Letras tinha interesse. Mas quando ele [Ferréz] foi na minha casa pegar os originais e fez um vídeo, vi o quanto isso é importante na história dele. E quando vi o trabalho da Comix Zone, eu fiquei muito impressionado com a qualidade. Aí eu falei “pô é uma chance de fazer e eu não acho justo que paguem um preço caro como acontece no ‘mercado negro’”. Ele e o Thiago (outro editor da Comix Zone) foram muito cuidadosos comigo e com a edição. Fiquei feliz com o resultado.

Registro feito para o Canal do Ferrez no Youtube sobre a construção da Antologia Capa Preta — indicação de Lourenço Mutarelli

E foi um processo rápido?

Foi. Tanto é que eu achei que era para o ano que vem. Eles começaram a falar desse ano e eu falei: “Pô! Não corre. A gente não tem pressa.” Eu fiquei com medo deles quererem pegar a CCXP… mas foi muito rápido. E no fim eles cuidaram das provas e tudo. Então, foi bacana.

Por que os quatro primeiros livros?

Os quatros tinham capa preta. Eu sugeri o título “Capa Preta” pela predominância do preto na capa. É uma fase negra mesmo e os quatro estão esgotados. Transubstanciação teve uma reedição em 2000, dez anos depois. Os outros nunca foram reeditados. É curioso, eu fui fechando o ciclo sempre com uma reedição. Depois desses quatros, vem imediatamente o Sequelas que é essa coletânea dos trabalhos anteriores. Aí quando começa a vir o Diomedes, vem o Mundo Pet, que é uma outra fase. Desses quatros, que estão reunidos, para o Diomedes, é uma outra fase de vida, de trabalho e de pensamento. E do Diomedes para Caixa de Areia é outro momento, isso falando dos quadrinhos, da Caixa de Areia para o Quando Meu Pai Se Encontrou Com o ET Fazia Um Dia Quente é outro momento, até chegar no Grifo de Abdera que é um livro com um quadrinho encartado. Então faz sentido eles estarem em uma coletânea por fecharem um ciclo do Transubstanciação até a Confluência da Forquilha.

As "epígrafes" que abrem cada livro da antologia: Transubstanciação (1991); Desgraçados (1993); Eu te amo Lucimar (1994); A Confluência da Forquilha (1997)

Vamos falar do seu estilo nessa fase. O que te influenciava e qual era a forma de encarar os quadrinhos?

No começo eu tinha uma influência que não era tanto dos quadrinhos. Eu amo o (Paulo Cesar) Munhoz e tentava não imitar o estilo dele, embora eu trabalhe o preto e branco, massas de preto e tudo. Mas eu tinha uma influência muito grande da literatura, mais que dos quadrinhos. Amava Dostoiévski, Kafka, Augusto dos Anjos. E eu tinha uma influência do expressionismo alemão, das gravuras. É claro que eu lia muitas HQs e nessa época estava saindo umas coisas diferentes como Incal [Alejandro Jodorowsky e Moebius], e outras coisas muito legais e muito diferentes do meu trabalho.

Falando das suas fases, quando começou a dar a virada com o Diomedes?

Na época eu estava trabalhando com ilustração de cartão para RPG que pagava muito pouco. Eu tinha que ilustrar 10 ou 15 para ter uma grana. E eu falei para o meu editor que estava com saudades de fazer quadrinhos e ele falou: “Faz como hobbie.” E eu perguntei: “O que é fazer quadrinhos como hobbie?” E ele disse: “Faz nas horas vagas.” E eu tinha que cuidar do meu filho que era pequeninho, tinha um aninho e ficava comigo, porque a minha mulher trabalhava fora. E todo o dia eu fazia um pouquinho e teve um dia que eu estava tão cansado que fiz um botão e a manga da camisa e fui dormir. Aí em dois anos eu fiz o Dobro de Cinco e a minha ideia era experimentar o gênero policial. E eu vivia os bastidores da polícia que não tem glamour nenhum. Queria uma coisa meio de humor e aventura. Foi um desafio, uma encrenca que eu arrumei pra enfrentar.

Você já comentou a dificuldade com os quadrinhos e o público de quadrinhos. Pode desenvolver isso melhor?

Às vezes até parece um ataque, mas não é. Eu fico muito impressionado como esse público é fechado nesse universo. E você vai em todos os lugares e é a mesma coisa, o que é insuportável. Até desses eventos eu fujo, porque você vai almoçar e tomar um café e só falam disso. Ninguém fala de uma outra coisa qualquer. E, como estava falando, a minha influência, por mais que eu leia quadrinhos, não é só dos quadrinhos. O meu espectro é muito maior. Tem a música e tantas outras coisas. E quadrinhos, na minha época, tinha uma coisa que até parecia com torcida de futebol que era: “Eu gosto disso e não posso gostar daquilo”.

Lourenço Mutarelli durante a entrevista na Itiban — Foto: Frederico Moschen Neto.

Mas isso não era só dos quadrinhos, era nas décadas de 1980 e 1990, quando as pessoas não tinham muito acesso às coisas. E tinham que fazer escolhas.

Mas tinha uma época muito boa que começou a vir Frank Miller nas bancas por um preço muito barato, edições muito boas e acessíveis. Porque essa coisa dos quadrinhos virarem uma coisa luxuoso é uma coisa de mercado. Você não publica mais uma tiragem de 30 mil para distribuir em banca.

Você foi um dos primeiros que fez isso?

Eu fiz porque não dava para sobreviver nas revistas. Claro que Chiclete Com Banana vendia 100 mil exemplares, mas as revistas que eu participei vendiam mil exemplares ou dois mil no máximo. Tirando Transubstanciação que foi um fenômeno, que vendeu muito sei lá porquê. Então, eu não pensava no que as pessoas chamavam de “grafic novel”, eu pensava no modelo europeu. Em álbum. Quando eu, o Marcatti e o Glauco Mattoso editamos “A Tralha”, que durou só 2 números, a gente fechava 7 páginas cada um e mais uma de três e tal. E muita gente [os colaboraores] não dava conta e tinha que cobrir essas pessoas. E não dava tempo, comprometia a qualidade. Era inviável. Eu pensei em fazer álbum e o meu trabalho por mim mesmo, eu também nunca fiz parte de grupo.

E no Brasil tem essa questão das pessoas estarem muito preocupadas com prestígio. E não dá pra viver disso, ou de prêmio de literatura ou de cinema, por exemplo.

No Brasil, assim como tem gente regido pela Veja e o que a Veja fala o que é o mais vendido e o que é bom e tal, eles vão seguindo, que são os best sellers. Tem uma outra minoria que é regida pela Serrote, Piauí e eles não percebem que são um gado também. Que não tem muito poder de escolha e que vão no que dizem pra eles.

O Daniel Lameira, da Editora Antofágica, trabalhava na Livraria da Vila, nos Jardins, um bairro de elite e tal. O pessoal compra os mais vendidos e uma vez para brincar, ele botou nos mais vendidos O Deserto dos Tártaros e vendeu pra caramba.

É só botar na pilha! Então, esse pessoal é regido por isso. Eles não querem procurar algo para eles… eles tem é que estar enturmados. Isso é o mais vendido, é bom.

Como surgiu esse diálogo com o cinema?

O meu trabalho tem muita influência do cinema. Nos meus primeiros roteiros eu escrevia: a câmera enquadra o personagem. Esse meu olhar ao desenhar era pensado como uma câmera. Mas cinema é difícil! O cinema tem uma coisa que me chocou quando entrei, e eu entrei acidentalmente mesmo.

Como foi isso?

Um menino me procurou quando eu estava escrevendo a minha primeira peça de teatro, tinha alguns diálogos que os atores falavam que ficou um pouco duro de falar. Eu achava estranho porque venho do quadrinho. E o quadrinho são duas coisas: o desenho é literatura e o balão é oralidade. Eu falo em voz alta os diálogos para exercitar a oralidade. Então achava estranho, um menino da USP queria que eu fosse protagonista de um curta dele e ele falou “não tem cachê”. É tão absurdo esse convite. Ele me ligou na minha casa e eu não tive como recusar. Eu ia ser um policial infiltrado! Eu estaria do outro lado e eu vivo de vivência também. Porque é isso, a minha literatura, o meu trabalho e os meus quadrinhos, embora tenham muita influência, eu tenho muita vivência. Eu vivo muita coisa e isso vira fruto. Então foi assim que eu entrei. E aconteceu uma coisa que é muito importante, mas eu não sei se já falei disso. Mas em um determinado momento a Revista Trip quis fazer uma matéria comigo. E eu estava completamente fodido de grana e foi uma coisa incrível! Porque tinha uma foto que eles levaram umas três horas pra fazer recriando essa cena do Transubstanciação (aponta no livro). Recriando isso aqui, ele no sofá com os ruídos da TV e do rádio.

Passagem de Transubstanciação (1991) que inspirou a foto na Revista Trip.

E quando acabou a foto e tal, veio falar comigo o editor, que eu acho até que era um dos donos da Trip, e ele perguntou como que eu estava. Eu falei que era tudo muito difícil e ele falou: “-Vai mudar! Depois que sair essa matéria, vai mudar.” E ele mostrou o meu trabalho para um nicho da elite, que era o Heitor Dhalia. Entende? Eu não estou criticando, mas se eu saí na revista é porque eu sou bacana e eles precisam prestar atenção. O Heitor me levou para o cinema e as pessoas que eu conheci no começo me tratavam igual a um corcunda. Sabe? Uma aberração! Tipo: “- Olha, eu conheci essa coisa! Esse negócio que faz essas coisas.”

E eles me apresentavam como uma aberração, mas uma aberração cult.

Porque uma revista falou que aquilo era bacana. Que é um pouco o Daniel Johnston, sabe? É alguém que tem uma coisa muito autêntica e faz de qualquer jeito no fundo de quintal, e aí chega um bacana e fala: “Pô, isso aí é legal!” Foi assim que eu entrei no cinema. Porque quando eu entrei, todo mundo do cinema era da mesma elite, estudou nas mesmas escolas e faziam as mesmas viagens, era um pessoal de muito poder aquisitivo. Hoje isso mudou, mudou muito. Eu vejo hoje a molecada entrando na área e não tem nada a ver com isso. Antigamente era um perfil de Fórmula 1.

A cultura brasileira no geral tem esse ranço aristocrático. Não é à toa que por mais que você seja uma pessoa que deu certo, seja na música, literatura e etc, você não consegue se sustentar da profissão. Não é gratuito essa lógica de realeza.

Isso tem fonte em várias áreas. Tem os cânones e acabou. E qualquer merda que fizer é bom. E tem gente que começou a fazer merda gigantesca e a pessoa é deslumbrada, ela acredita naquilo e que qualquer merda que ela faz é uma grande coisa. Eu venho de um lugar muito pequeno e quando eu fui para a Companhia das Letras, uma parte do meu público começou a falar: “O cara se vendeu, agora vai ter dinheiro e vai se prostituir”. E você vai ver, eu sou radical da mesma forma que eu era. O meu trabalho até suaviza e refina na sua forma, porque isso vem acontecendo comigo. Mas eu não pego leve, eu continuo muito radical no meu trabalho e não fiz nenhuma concessão. E eu virei grife devido ao Cheiro do Ralo, devido ao filme, mas uma grife pequena. Não estou nos grandes. E se eu quisesse ganhar um dinheirinho agora, era só eu fazer um Diomedes inédito. É o meu trabalho que mais vende e eu iria ganhar um troquinho. Mas não é isso que eu quero.

Pra encerrar, como é essa sua relação com a Itiban?

Tudo que eu lancei, eu lanço aqui e isso faz uns 20 anos. Eu adoro eles. Adoro o espaço. E eles sempre foram muito cuidadosos comigo. Eu mudei muito, eu era muito fechado e eles sempre muito cuidadosos comigo. Eu fico muito deprimido em hotel, eu fico sozinho e muito mal. Eu sempre fico na casa deles e já cheguei a ficar na casa do Horácio para não ficar em hotel e é uma relação de muito carinho mesmo. E no lançamento a relação é muito próxima com o público, entre ir fazer algo no SESC com muita gente eu prefiro fazer aqui. Eu adoro isso aqui e adoro estar aqui. Eu não curto viajar e aqui eu venho animado.

Entrevista por Frederico Moschen Neto, revisão e edição por Vinícius "vino" Carvalho. Agradecimentos à Itiban, em especial ao Chico Utrabo e Mitie Taketani. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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Frederico Moschen Neto
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Documentarista e produtor executivo especialista em licenciamentos musicais e audiovisuais. frederico@sangue.tv | +55 (41) 99132–5995 | www.sangue.tv