Entrevista com Marcelo Aliche

Aproveitamos a passagem do curador e diretor artístico do In-Edit Brasil, Marcelo Aliche, por Curitiba para bater um papo descontraído sobre música e cinema brasileiro. Na sua passagem pela capital do Paraná, a convite da 37º Oficina de Música de Curitiba, Aliche organizou uma mostra itinerante entre os dias 16 e 22 de janeiro, no Cine Passeio e proferiu uma palestra. O In-Edit é um evento cinematográfico com o objetivo de fomentar a produção e a difusão de filmes documentários que tenham a música como elemento integrador.

Frederico Moschen Neto
rock.rec.br
11 min readFeb 17, 2020

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Marcelo Aliche em Barcelona — fotografia de Dani LC

Como surgiu o In-Edit e que tipo de festival ele pretende ser unindo música e cinema?

O In-Edit é um festival que nasceu em Barcelona, em 2003, sem nenhuma pretensão. A ideia aconteceu num evento publicitário, mas ganhou um perfil de festival de cinema mesmo, com equipe de curadoria, depois um júri, um prêmio, programação variada.

Hoje o In-Edit é uma rede de festivais, que durante um bom tempo teve uma sede em Barcelona e que atualmente tem de alguma maneira atua como seis sedes, do que uma sede, uma matriz e outras filiais.

Uma lógica de rede.

É, uma lógica de rede! É muito independente, cada país e cada cidade tem uma curadoria própria, porque é muito importante você falar para o público que você está se expressando. Não serviria de nada eu pegar os filmes tal qual eles passaram em Barcelona e trazer aqui. Porque os filmes tem o seu contexto. Então é muito bacana essa independência que a gente tem, não tem ninguém ditando regra: “Ó, você deve fazer isso, você deve fazer uma homenagem a fulaninho, ou você deve passar esse filme às 10:45 da noite”. A gente acaba sendo “células independentes” de certa forma.

E os festivais têm o mesmo porte, ou em algum país é maior?

Na Espanha é o maior, seguido pelo Chile. E quando eu falo maior, eu falo de público. Se você falar de estrutura de festival, o Brasil é o maior. De fato, vieram alguns profissionais lá de Barcelona pra ver o festival de São Paulo ano passado, a galera ficou de boca aberta, falou: “Cara, como você fez? São cinco salas, cada uma num canto da cidade, numa cidade desse tamanho, de 15 milhões?”

Eu descobri que o In-Edit, na cidade de São Paulo, ocupa 7,5Km², é quase o tamanho de Andorra [estado catalão]. O território é muito grande e também o número de filmes, a gente [o Brasil] é muito grande. Exibimos filmes internacionais, mas nossa faixa nacional é a maior de todos os países. Se somar todos os filmes nacionais das edições de In-Edit, não chega a metade de uma brasileira.

Tem a ver com o contexto do Brasil e da música brasileira?

Também. Acho eu, por essa paixão pelo audiovisual. O brasileiro é muito audiovisual, como o brasileiro não lê, ele se apoia no audiovisual.

É, o documentário “substitui” os livros.

Nesse caso, do documentário, do audiovisual, a telenovela substitui a novela escrita, o documentário substitui o livro didático e essas coisas. O Brasil tem uma relação muito grande com o audiovisual. Quando eu falo do caso do cara que comprou uma câmera, pelo barateamento da tecnologia e ele vai registrar a quebrada dele, naturalmente sabe a linguagem dessa reportagem ou desse documentário. É intuitivo, porque o cara vê isso desde pequenininho. Talvez seja porque o brasileiro não lê. Mas fato é que ele, sem dúvida, é movido pelo audiovisual. Então, eu acho que isso tem muito a ver também. Tem muita inquietação por fazer audiovisual no Brasil.

Vinheta do In-Edit Brasil de 2019

Como surgiu a edição brasileira do In-Edit e o seu envolvimento com o evento?

Eu trabalhava com publicidade, era diretor de criação. Trabalhei por muito tempo com isso e não aguentava mais, aquilo era uma babaquice sem fim, de você perder horas, dias e dias para depois o cliente decidir que: “Ah, o vermelho não é legal” ou “eu quero o azul”. São debates completamente efêmeros, que não levam a lugar nenhum, é puramente pra mostrar quem manda mais, tem um jogo de egos que já não me interessava. Eu não queria mais publicidade e aí eu conheci a galera do In-Edit. Eu fazia rádio lá, eu fiz doze anos de rádio em Barcelona.

Você morou em Barcelona?

Morei dezesseis anos, depois mais dois, enfim… Eu cheguei em Barcelona em 1994 e tô meio que lá até hoje. Então, faz 25 anos entre vais e voltas.

Você tem alguma relação familiar com Barcelona?

Não, eu estudei numa escola espanhola e fui pra Barcelona. Tinha amigos em Barcelona, me interessava muito o aspecto da Guerra Civil [Espanhola]. O fato dos anarquistas terem governado Barcelona durante um ano e meio, foi o que me levou. No fundo era essa ânsia de conhecer essa Barcelona libertária. E isso me interessava muito mais. O lance do bairro [anarquista] de Gràcia, ter feito o programa na Rádio Pica durante tantos anos, que era uma rádio independente, não comercial, no bairro de Gràcia e depois acabei trabalhando numa rádio do governo.

Mas enfim, me contataram para fazer um magazine cultural sobre o Fórum das Culturas e acabei indo pra lá. E nessa época eu acabei conhecendo a galera do In-Edit, a galera não só era o festival, mas eles têm também uma assessoria de imprensa dedicada à música e ao cinema — En Silencio. Um grande amigo Miguelón me levou: “Você tem que ir, não é possível, com um cara como você não vá no In-Edit”.

No último dia do festival, rolou uma cervejinha, sei lá, no telhado do Cine Verdi, e apareceu esse tal de Alberto, e ele começou a falar tudo o que ele fazia: “Não, porque eu escolho os filmes, eu contrato, mas tem também a parte de marketing, de publicidade, de não sei o que”. Eu juro que eu falei pra ele: “Mano, você inventou o trabalho da minha vida, véio, que de fuder”. E ele na brincadeira falou: “Porra, leva pro Brasil, a gente já tá no Chile”. Eu falei: “Velho, eu sou um mero redator de publicidade. Eu não consigo fazer isso”. E passou.

Passou um tempo, passou um ano e ele faleceu, passou outro tempo, a minha namorada na época foi fazer o negócio de cinema brasileiro lá em Gràcia e aí eu conheci a galera, assim, eu oficializei que a galera do In-Edit era a mesma galera do En Silencio, falei: “Porra vocês são os mesmos, como é que faço isso para levar pro Brasil?” Foi assim.

Você voltou pro Brasil por causa do In-Edit?

Eu voltei a morar mesmo no Brasil, quando meu pai ficou doente. Porque os dois primeiros festivais eu fiz quando eu tava lá, eu vinha pra cá fazer o festival e voltava. E aí meu pai ficou doente e eu também, aí perdi meu trabalho, o programa de rádio, me separei da minha mulher, sabe quando não tinha nada mais que me vinculava, fortemente, à Barcelona, eu pensei: “Velho, meu pai tá doente, hora de atar o outro laço do lado de lá, cuidar do meu velho, que é na hora que ele tá indo embora mesmo e depois eu vejo”.

E aí eu tinha uma fantasia, que isso não se realizou e nem vai se realizar, que era conseguir uma maneira de arrumar um patrocínio, que fosse algum contrato de pelo menos alguns anos, pra eu poder me ausentar e poder ficar lá só cuidando da parte artística. Pelo menos a parte de financiamento aqui estivesse mais ou menos resolvida, coisa que não estava. E depois de ter visto, de ter lido o livro da Mostra Internacional de Cinema eu fui lá procurar algumas entrevistas do Leon já depois de morto, ele falando que na Mostra tudo se começa desde o zero. E todo ano é assim.

Quando e como foi a primeira edição brasileira do In-Edit?

No Brasil, foi 2009. Já são 11 edições. A gente vai pra 12ª. Fizemos seis anos na Bahia, em Salvador. Fizemos uma edição em Belém, no Pará, e uma em Belo Horizonte, Minas Gerais.

O Pará tem uma cena musical muito forte e muito variada. Algo único. Como o festival parou lá?

Chamaram e a gente foi lá. E tem o Vladimir Cunha, que dirigiu o documentário da Dona Onete. E tem arrastado uma galera para lá. Assim, a gente recebe muita coisa do Pará, mas realmente na hora de consumir, o festival, a gente também ficou um pouco deslocado, porque acabou sendo num shopping center, muito longe, muito longe de tudo.

web banner — In-Edit Brasil

Tinha que fazer perto do Mercado.

Perto do Mercado, assim, no centro, mas enfim. A gente foi, fez, mas a gente continua sonhando em voltar. Mas isso a gente fez em 2018, cara. Também não faz tanto tempo.

Como é que chega esse diálogo com cinema e música brasileira no Festival?

Na verdade é uma benção isso, viu? Porque se a gente começa a contar agora, porque até outro dia o Brasil era o segundo no ranking,

agora já somos o primeiro país no mundo que mais consome música autóctona.

Só perdia para os Estados Unidos. E agora nem os Estados Unidos, que já consome música do mundo inteiro e também americana, obviamente.

Mas o Brasil ganhou esse number one, de ser o país que mais consome música própria no mundo. E isso abre um nicho inexplorado no cinema e é uma fonte de inspiração gigantesca para cineastas no Brasil e, se o cara trabalha bem, é também fácil de vender isso lá fora. Dependendo do que você faz, você faz um “Fevereiros”, com uma artista com reconhecimento internacional e com um filme muito bom e que ainda por cima você consiga explicar, que é difícil, o sincretismo [ter duas religiões], a coisa mais difícil que você pode explicar pra uma pessoa não-brasileira.

Isso só no Brasil.

Só no Brasil. Isso só acontece aqui! Eu tive esse papo com Fernando Trueba [diretor espanhol] e ele terminou bravo comigo: “Isso é impossível!” Então, um cara que consegue pegar um objeto a ser documentado e consegue transcender pra fora do Brasil, consegue levar esse filme pra fora! Então, a música brasileira é entendida fora do Brasil. Ela é admirada. Claro, a coisa do sertanejo a galera não entenda direito. Mas tem coisa, como o Baiana System tocou em Barcelona, velho, os caras quase morreram, sabe?

Você comentou na palestra durante a Oficina de Música que o In-Edit leva o público de show para a sala de cinema. Comente.

Eu tenho certeza que, de certa forma, a nossa grande contribuição para a indústria do cinema é trazer a galera da música e apresentar os festivais de cinema. Eu tenho certeza que a gente já levou um monte de gente que nunca tinha pisado num festival de cinema, pro É Tudo Verdade. Ou pra Mostra, ou pro MIX ou pro Anima Mundi.

Dentro da ideia de diálogo entre música e cinema, como ficam os critérios para escolher os filmes?

Tem uma coisa que eu repito sempre, primeiro que o filme seja legal, ou seja, que o filme seja bom. Acho que é a primeira coisa de todas. Depois disso, a relevância do filme, que pode ser histórica, artística, musical, cinematográfica… Mas o primeiro de tudo é o filme: é legal ou não é legal? Depois ele tem suas relevâncias, depois tem essa questão de linguagem, tudo isso.

De certa forma, depois que eu comecei a trabalhar com In-Edit eu comecei a ler sobre curadoria. Acho que foi uma péssima ideia, porque certas coisas eu fazia muito de alma, alguém já tinha escrito, boto palavras naquilo e aí, durante um ano ou dois, fiquei meio incomodado com aquilo. Eu demorei um pouco em me desfazer daquilo e acho que agora eu consegui recuperar aquela coisa mais espontânea. Isso é legal. Acreditar mais no feeling do que nos critérios técnicos, intelectuais e artísticos e não sei o quê.

Marcelo Aliche proferindo palestra durante a 37ª Oficina de Música de Curitiba

Qual é a diferença entre a função dos festivais internacionais, de “primeiro mundo”, e os festivais no Brasil? E o festival de rede contra um festival de cinema centralizado?

Como a gente tem aqui essa cultura da lei de incentivo que eu defendo muito, apesar de ter muitas coisas criticáveis, é um país que ainda está em formação, de plateia, de público, de educação, de cultura, de uma série de coisas.

Nesse sentido o Brasil é muito legal de se fazer festivais para trazer gente, aproximar gente ao mundo do cinema, levar as pessoas a ver filmes em primeiras datas, antes dele sair no cinema e de você bater um papo com o diretor depois, e de você participar de um debate, de você perguntar pro diretor: “Por que você fez aquilo?” O cara tem direito de perguntar, você ter o diretor é super legal isso.

Isso não importa se é no Brasil, na China, na Patagônia, em Marte. É sempre legal. Então acho muito bacana isso. Por outro lado, as coisas dos outros festivais no mundo afora, a maioria são feiras de negócio. Claro que têm prêmios e tudo isso, dá prestígio para o evento em si e dá prestígio para esses filmes.

Mas o que acontece nesses festivais lá de fora é que tem uma parte de negócios. São estandes. Lá também estão vendendo localização, estão vendendo pós-produção, estão vendendo modelos, artistas, atores, perdão, diretores. Tem toda uma indústria pra vender. E aí você tem de vários países. Você cola lá na Ucrânia, “Ó tem aí um documentário da música da Ucrânia?” E de repente você sai de lá com um documentário que pode interessar ou não. Mas tem essa coisa do negócio, de gerar negócio e gerar contatos.

E por aqui, por que não rola isso?

Por exemplo, o Rio Content Marketing, que agora migrou pro Rio2C é uma primeira tentativa disso. É um primeiro passo. A gente tem muito o que caminhar ainda nisso. A nossa indústria de audiovisual é nova, a gente é o país eternamente em crise, foram pouquíssimos tempos que a gente passou semi-estável.

Vamos dizer assim, estável para nossos parâmetros. Para os de fora, não. Então, a gente tá ainda muito engatinhando nisso, pra você abrir realmente uma rodada de negócios, você fazer o speed meeting, como faz essa galera do DOCS-SP, que é a mesma galera do DOCS Montevidéu. Pô, maluco traz o cara da BBC, o cara da RTF, o cara de não sei da onde, tal, e aí tem um monte de gente com projetos: “Porra, vamos bancar. Vou entrar como correalizador, coprodução, o caralho”. Acho que a gente ainda está engatinhando.

Como você vê a música e o cinema como resistência a esse mundo louco e conservador de hoje?

Eu acho muito importante, a arte sempre foi a trincheira dos pensadores, sempre foi. E não importa se esse pensador pensar de uma maneira, não importa se o pensador é de esquerda, direita, libertário, libertino, liberal, sacou? Não é muito isso. É o lugar de fala, é o público, eu acho muito importante que os artistas estejam conscientes, alertas e atentos.

A onda de conservadorismo é enorme, isso é uma epidemia. Mas é uma maneira de resistência mesmo, isso que vai fazer a diferença, vão vir as eleições, não sei o quê, você vê que tipo de artista que apoia o Bolsonaro, o Alexandre Frota…

É óbvio que toda a esquerda, todo o progressismo é o lugar de muitas ideias, é um lugar de debate, não tem uma voz única, nunca terá uma voz de união, mas é importantíssimo que a gente se mantenha, pelo menos se respeitem as diferenças.

Enquanto a gente estiver mantendo as diferenças e não cair, por exemplo, como agora, a Guerra Civil Espanhola, em que anarquistas, comunistas e republicanos começaram a se matar, aí eles foram correr e já era tarde demais. Por isso que eu gosto de dizer “Podemos discordar? Sempre, mas não podemos romper”. Sacou?!

Entrevista por Frederico Moschen Neto, revisão e edição por Vinicius “vino” Carvalho, transcrição por Milena Woitovicz Cardoso. Agradecimentos à organização da Oficina de Música de Curitiba, em especial a equipe do Cine Passeio. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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a cultura em perspectiva tricontinental: África, Ásia e América Latina

Frederico Moschen Neto
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Written by Frederico Moschen Neto

Documentarista e produtor executivo especialista em licenciamentos musicais e audiovisuais. frederico@sangue.tv | +55 (41) 99132–5995 | www.sangue.tv

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