Entrevista com Marcelo Aliche
Aproveitamos a passagem do curador e diretor artístico do In-Edit Brasil, Marcelo Aliche, por Curitiba para bater um papo descontraído sobre música e cinema brasileiro. Na sua passagem pela capital do Paraná, a convite da 37º Oficina de Música de Curitiba, Aliche organizou uma mostra itinerante entre os dias 16 e 22 de janeiro, no Cine Passeio e proferiu uma palestra. O In-Edit é um evento cinematográfico com o objetivo de fomentar a produção e a difusão de filmes documentários que tenham a música como elemento integrador.
Como surgiu o In-Edit e que tipo de festival ele pretende ser unindo música e cinema?
O In-Edit é um festival que nasceu em Barcelona, em 2003, sem nenhuma pretensão. A ideia aconteceu num evento publicitário, mas ganhou um perfil de festival de cinema mesmo, com equipe de curadoria, depois um júri, um prêmio, programação variada.
Hoje o In-Edit é uma rede de festivais, que durante um bom tempo teve uma sede em Barcelona e que atualmente tem de alguma maneira atua como seis sedes, do que uma sede, uma matriz e outras filiais.
Uma lógica de rede.
É, uma lógica de rede! É muito independente, cada país e cada cidade tem uma curadoria própria, porque é muito importante você falar para o público que você está se expressando. Não serviria de nada eu pegar os filmes tal qual eles passaram em Barcelona e trazer aqui. Porque os filmes tem o seu contexto. Então é muito bacana essa independência que a gente tem, não tem ninguém ditando regra: “Ó, você deve fazer isso, você deve fazer uma homenagem a fulaninho, ou você deve passar esse filme às 10:45 da noite”. A gente acaba sendo “células independentes” de certa forma.
E os festivais têm o mesmo porte, ou em algum país é maior?
Na Espanha é o maior, seguido pelo Chile. E quando eu falo maior, eu falo de público. Se você falar de estrutura de festival, o Brasil é o maior. De fato, vieram alguns profissionais lá de Barcelona pra ver o festival de São Paulo ano passado, a galera ficou de boca aberta, falou: “Cara, como você fez? São cinco salas, cada uma num canto da cidade, numa cidade desse tamanho, de 15 milhões?”
Eu descobri que o In-Edit, na cidade de São Paulo, ocupa 7,5Km², é quase o tamanho de Andorra [estado catalão]. O território é muito grande e também o número de filmes, a gente [o Brasil] é muito grande. Exibimos filmes internacionais, mas nossa faixa nacional é a maior de todos os países. Se somar todos os filmes nacionais das edições de In-Edit, não chega a metade de uma brasileira.
Tem a ver com o contexto do Brasil e da música brasileira?
Também. Acho eu, por essa paixão pelo audiovisual. O brasileiro é muito audiovisual, como o brasileiro não lê, ele se apoia no audiovisual.
É, o documentário “substitui” os livros.
Nesse caso, do documentário, do audiovisual, a telenovela substitui a novela escrita, o documentário substitui o livro didático e essas coisas. O Brasil tem uma relação muito grande com o audiovisual. Quando eu falo do caso do cara que comprou uma câmera, pelo barateamento da tecnologia e ele vai registrar a quebrada dele, naturalmente sabe a linguagem dessa reportagem ou desse documentário. É intuitivo, porque o cara vê isso desde pequenininho. Talvez seja porque o brasileiro não lê. Mas fato é que ele, sem dúvida, é movido pelo audiovisual. Então, eu acho que isso tem muito a ver também. Tem muita inquietação por fazer audiovisual no Brasil.
Como surgiu a edição brasileira do In-Edit e o seu envolvimento com o evento?
Eu trabalhava com publicidade, era diretor de criação. Trabalhei por muito tempo com isso e não aguentava mais, aquilo era uma babaquice sem fim, de você perder horas, dias e dias para depois o cliente decidir que: “Ah, o vermelho não é legal” ou “eu quero o azul”. São debates completamente efêmeros, que não levam a lugar nenhum, é puramente pra mostrar quem manda mais, tem um jogo de egos que já não me interessava. Eu não queria mais publicidade e aí eu conheci a galera do In-Edit. Eu fazia rádio lá, eu fiz doze anos de rádio em Barcelona.
Você morou em Barcelona?
Morei dezesseis anos, depois mais dois, enfim… Eu cheguei em Barcelona em 1994 e tô meio que lá até hoje. Então, faz 25 anos entre vais e voltas.
Você tem alguma relação familiar com Barcelona?
Não, eu estudei numa escola espanhola e fui pra Barcelona. Tinha amigos em Barcelona, me interessava muito o aspecto da Guerra Civil [Espanhola]. O fato dos anarquistas terem governado Barcelona durante um ano e meio, foi o que me levou. No fundo era essa ânsia de conhecer essa Barcelona libertária. E isso me interessava muito mais. O lance do bairro [anarquista] de Gràcia, ter feito o programa na Rádio Pica durante tantos anos, que era uma rádio independente, não comercial, no bairro de Gràcia e depois acabei trabalhando numa rádio do governo.
Mas enfim, me contataram para fazer um magazine cultural sobre o Fórum das Culturas e acabei indo pra lá. E nessa época eu acabei conhecendo a galera do In-Edit, a galera não só era o festival, mas eles têm também uma assessoria de imprensa dedicada à música e ao cinema — En Silencio. Um grande amigo Miguelón me levou: “Você tem que ir, não é possível, com um cara como você não vá no In-Edit”.
No último dia do festival, rolou uma cervejinha, sei lá, no telhado do Cine Verdi, e apareceu esse tal de Alberto, e ele começou a falar tudo o que ele fazia: “Não, porque eu escolho os filmes, eu contrato, mas tem também a parte de marketing, de publicidade, de não sei o que”. Eu juro que eu falei pra ele: “Mano, você inventou o trabalho da minha vida, véio, que de fuder”. E ele na brincadeira falou: “Porra, leva pro Brasil, a gente já tá no Chile”. Eu falei: “Velho, eu sou um mero redator de publicidade. Eu não consigo fazer isso”. E passou.
Passou um tempo, passou um ano e ele faleceu, passou outro tempo, a minha namorada na época foi fazer o negócio de cinema brasileiro lá em Gràcia e aí eu conheci a galera, assim, eu oficializei que a galera do In-Edit era a mesma galera do En Silencio, falei: “Porra vocês são os mesmos, como é que faço isso para levar pro Brasil?” Foi assim.
Você voltou pro Brasil por causa do In-Edit?
Eu voltei a morar mesmo no Brasil, quando meu pai ficou doente. Porque os dois primeiros festivais eu fiz quando eu tava lá, eu vinha pra cá fazer o festival e voltava. E aí meu pai ficou doente e eu também, aí perdi meu trabalho, o programa de rádio, me separei da minha mulher, sabe quando não tinha nada mais que me vinculava, fortemente, à Barcelona, eu pensei: “Velho, meu pai tá doente, hora de atar o outro laço do lado de lá, cuidar do meu velho, que é na hora que ele tá indo embora mesmo e depois eu vejo”.
E aí eu tinha uma fantasia, que isso não se realizou e nem vai se realizar, que era conseguir uma maneira de arrumar um patrocínio, que fosse algum contrato de pelo menos alguns anos, pra eu poder me ausentar e poder ficar lá só cuidando da parte artística. Pelo menos a parte de financiamento aqui estivesse mais ou menos resolvida, coisa que não estava. E depois de ter visto, de ter lido o livro da Mostra Internacional de Cinema eu fui lá procurar algumas entrevistas do Leon já depois de morto, ele falando que na Mostra tudo se começa desde o zero. E todo ano é assim.
Quando e como foi a primeira edição brasileira do In-Edit?
No Brasil, foi 2009. Já são 11 edições. A gente vai pra 12ª. Fizemos seis anos na Bahia, em Salvador. Fizemos uma edição em Belém, no Pará, e uma em Belo Horizonte, Minas Gerais.
O Pará tem uma cena musical muito forte e muito variada. Algo único. Como o festival parou lá?
Chamaram e a gente foi lá. E tem o Vladimir Cunha, que dirigiu o documentário da Dona Onete. E tem arrastado uma galera para lá. Assim, a gente recebe muita coisa do Pará, mas realmente na hora de consumir, o festival, a gente também ficou um pouco deslocado, porque acabou sendo num shopping center, muito longe, muito longe de tudo.
Tinha que fazer perto do Mercado.
Perto do Mercado, assim, no centro, mas enfim. A gente foi, fez, mas a gente continua sonhando em voltar. Mas isso a gente fez em 2018, cara. Também não faz tanto tempo.
Como é que chega esse diálogo com cinema e música brasileira no Festival?
Na verdade é uma benção isso, viu? Porque se a gente começa a contar agora, porque até outro dia o Brasil era o segundo no ranking,
agora já somos o primeiro país no mundo que mais consome música autóctona.
Só perdia para os Estados Unidos. E agora nem os Estados Unidos, que já consome música do mundo inteiro e também americana, obviamente.
Mas o Brasil ganhou esse number one, de ser o país que mais consome música própria no mundo. E isso abre um nicho inexplorado no cinema e é uma fonte de inspiração gigantesca para cineastas no Brasil e, se o cara trabalha bem, é também fácil de vender isso lá fora. Dependendo do que você faz, você faz um “Fevereiros”, com uma artista com reconhecimento internacional e com um filme muito bom e que ainda por cima você consiga explicar, que é difícil, o sincretismo [ter duas religiões], a coisa mais difícil que você pode explicar pra uma pessoa não-brasileira.
Isso só no Brasil.
Só no Brasil. Isso só acontece aqui! Eu tive esse papo com Fernando Trueba [diretor espanhol] e ele terminou bravo comigo: “Isso é impossível!” Então, um cara que consegue pegar um objeto a ser documentado e consegue transcender pra fora do Brasil, consegue levar esse filme pra fora! Então, a música brasileira é entendida fora do Brasil. Ela é admirada. Claro, a coisa do sertanejo a galera não entenda direito. Mas tem coisa, como o Baiana System tocou em Barcelona, velho, os caras quase morreram, sabe?
Você comentou na palestra durante a Oficina de Música que o In-Edit leva o público de show para a sala de cinema. Comente.
Eu tenho certeza que, de certa forma, a nossa grande contribuição para a indústria do cinema é trazer a galera da música e apresentar os festivais de cinema. Eu tenho certeza que a gente já levou um monte de gente que nunca tinha pisado num festival de cinema, pro É Tudo Verdade. Ou pra Mostra, ou pro MIX ou pro Anima Mundi.
Dentro da ideia de diálogo entre música e cinema, como ficam os critérios para escolher os filmes?
Tem uma coisa que eu repito sempre, primeiro que o filme seja legal, ou seja, que o filme seja bom. Acho que é a primeira coisa de todas. Depois disso, a relevância do filme, que pode ser histórica, artística, musical, cinematográfica… Mas o primeiro de tudo é o filme: é legal ou não é legal? Depois ele tem suas relevâncias, depois tem essa questão de linguagem, tudo isso.
De certa forma, depois que eu comecei a trabalhar com In-Edit eu comecei a ler sobre curadoria. Acho que foi uma péssima ideia, porque certas coisas eu fazia muito de alma, alguém já tinha escrito, boto palavras naquilo e aí, durante um ano ou dois, fiquei meio incomodado com aquilo. Eu demorei um pouco em me desfazer daquilo e acho que agora eu consegui recuperar aquela coisa mais espontânea. Isso é legal. Acreditar mais no feeling do que nos critérios técnicos, intelectuais e artísticos e não sei o quê.
Qual é a diferença entre a função dos festivais internacionais, de “primeiro mundo”, e os festivais no Brasil? E o festival de rede contra um festival de cinema centralizado?
Como a gente tem aqui essa cultura da lei de incentivo que eu defendo muito, apesar de ter muitas coisas criticáveis, é um país que ainda está em formação, de plateia, de público, de educação, de cultura, de uma série de coisas.
Nesse sentido o Brasil é muito legal de se fazer festivais para trazer gente, aproximar gente ao mundo do cinema, levar as pessoas a ver filmes em primeiras datas, antes dele sair no cinema e de você bater um papo com o diretor depois, e de você participar de um debate, de você perguntar pro diretor: “Por que você fez aquilo?” O cara tem direito de perguntar, você ter o diretor é super legal isso.
Isso não importa se é no Brasil, na China, na Patagônia, em Marte. É sempre legal. Então acho muito bacana isso. Por outro lado, as coisas dos outros festivais no mundo afora, a maioria são feiras de negócio. Claro que têm prêmios e tudo isso, dá prestígio para o evento em si e dá prestígio para esses filmes.
Mas o que acontece nesses festivais lá de fora é que tem uma parte de negócios. São estandes. Lá também estão vendendo localização, estão vendendo pós-produção, estão vendendo modelos, artistas, atores, perdão, diretores. Tem toda uma indústria pra vender. E aí você tem de vários países. Você cola lá na Ucrânia, “Ó tem aí um documentário da música da Ucrânia?” E de repente você sai de lá com um documentário que pode interessar ou não. Mas tem essa coisa do negócio, de gerar negócio e gerar contatos.
E por aqui, por que não rola isso?
Por exemplo, o Rio Content Marketing, que agora migrou pro Rio2C é uma primeira tentativa disso. É um primeiro passo. A gente tem muito o que caminhar ainda nisso. A nossa indústria de audiovisual é nova, a gente é o país eternamente em crise, foram pouquíssimos tempos que a gente passou semi-estável.
Vamos dizer assim, estável para nossos parâmetros. Para os de fora, não. Então, a gente tá ainda muito engatinhando nisso, pra você abrir realmente uma rodada de negócios, você fazer o speed meeting, como faz essa galera do DOCS-SP, que é a mesma galera do DOCS Montevidéu. Pô, maluco traz o cara da BBC, o cara da RTF, o cara de não sei da onde, tal, e aí tem um monte de gente com projetos: “Porra, vamos bancar. Vou entrar como correalizador, coprodução, o caralho”. Acho que a gente ainda está engatinhando.
Como você vê a música e o cinema como resistência a esse mundo louco e conservador de hoje?
Eu acho muito importante, a arte sempre foi a trincheira dos pensadores, sempre foi. E não importa se esse pensador pensar de uma maneira, não importa se o pensador é de esquerda, direita, libertário, libertino, liberal, sacou? Não é muito isso. É o lugar de fala, é o público, eu acho muito importante que os artistas estejam conscientes, alertas e atentos.
A onda de conservadorismo é enorme, isso é uma epidemia. Mas é uma maneira de resistência mesmo, isso que vai fazer a diferença, vão vir as eleições, não sei o quê, você vê que tipo de artista que apoia o Bolsonaro, o Alexandre Frota…
É óbvio que toda a esquerda, todo o progressismo é o lugar de muitas ideias, é um lugar de debate, não tem uma voz única, nunca terá uma voz de união, mas é importantíssimo que a gente se mantenha, pelo menos se respeitem as diferenças.
Enquanto a gente estiver mantendo as diferenças e não cair, por exemplo, como agora, a Guerra Civil Espanhola, em que anarquistas, comunistas e republicanos começaram a se matar, aí eles foram correr e já era tarde demais. Por isso que eu gosto de dizer “Podemos discordar? Sempre, mas não podemos romper”. Sacou?!
Entrevista por Frederico Moschen Neto, revisão e edição por Vinicius “vino” Carvalho, transcrição por Milena Woitovicz Cardoso. Agradecimentos à organização da Oficina de Música de Curitiba, em especial a equipe do Cine Passeio. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.