Entrevista com Petter Baiestorf
Aproveitamos a campanha de financiamento coletivo do livro Canibal Filmes — os bastidores da Gorechanchada para falar com Petter Baiestorf sobre a sua trajetória de 30 anos, o que é o movimento S.O.V. e a sua recepção no território brasileiro. Baiestorf é uma lenda do cinema underground brasileiro, com mais de 100 filmes feitos na marra e por conta própria. Esse realizador alucinado e oriundo de Palmitos, interior de Santa Catarina, conseguiu criar uma sólida carreira no meio cinematográfico autoral, influenciado inúmeros realizadores. Agora, ele coloca em panorama três décadas de atividades ininterruptas, numa autobiografia sua e da sua produtora, a famigerada Canibal Filmes. A campanha, feita às próprias custas e coordenada pela Sangue TV, transborda o humor gore, com cartelas escatológicas e ataques ao conservadorismo brasileiro.
Como surgiu a ideia do livro sobre a Canibal Filmes? Tem a ver com os 30 anos de trajetória?
Tem haver sim! São três décadas de intensa produção dentro de um estilo selvagem e transgressor (que praticamente nenhum cineasta explora no Brasil). E também tem haver porque a gente continua na ativa tendo mudado um pouco o direcionamento dos filmes. Então, nos últimos anos, eu sentia muita falta de filmes loucos como os que fazíamos no passado. Comecei a recolher material para o livro em 2017, entrevistei mais de 50 integrantes e ex-integrantes da Canibal Filmes para compor a narrativa, que é centrada nas histórias de bastidores. A gente passou por muitas experiências radicais envolvendo produção de guerrilha, arranjos bizarros para conseguir dinheiro para filmar, experiências boas e ruins com distribuição — incluindo aí arranjos com a máfia da pirataria em VHS que assolou o país na década de 1990 -, problemas com pessoal, problemas com censuras. Estivemos em quase todas as primeiras edições de festivais e mostras que surgiram pós 1995, fomos incentivadores e influência pra muito cineasta de horror que surgiu nos últimos 20 anos e realizamos mais de 100 filmes que, na maioria das vezes, realmente deram lucro. É uma história muito rica e que eu achava que precisava ser contada para as novas gerações terem contato com tantas experiências, até para sentirem que quando as coisas dão erradas anos após anos, projetos após projetos, mesmo assim se você manter o foco, uma hora consegue organizar o caos e fazer um filme onde o público se identifica e te recompensa adotando teu filme. E a Canibal Filmes sempre foi independente, então acho também que toda essa experiência que tivemos com pouco dinheiro, sem ajuda de patrocinadores, sem incentivos fiscais, sem editais, pode ser muito importante para inspirar jovens cineastas que estão desiludidos com o desmonte cultural que o atual governo está promovendo. É muita experiência acumulada em três décadas, e essa experiência precisa circular. Até porque a gente tem muito projeto que deu errado, eu já fali duas vezes com a produtora e sempre reergui ela recomeçando do zero, então não é exatamente um livro escrito por vencedores, né? É um livro sobre a teimosia de uma grupo que nunca se dá por vencido, independente da dificuldade que surgir.
Conte a sua trajetória e o que é o SOV?
O Shot-On-Vídeo surgiu no início da década de 1980, com o advento das filmadoras VHS, que permitiram que jovens começassem a ousar em algumas ideias que, geralmente, não conseguiam encontrar nos filmes do cinema blockbuster de Hollywood. O SOV está para o cinema assim como os fanzines estão para as publicações impressas profissionais. E o horror foi o gênero que mais ganhou adeptos neste formato, porque as produções caseiras permitiam exagerar a mão no sangue e tripas. Eu diria que de 70% a 80% da produção inicial no estilo SOV é de filmes de horror, muitos deles com efeitos envolvendo muita sangueira, melecas e tripas, coisa que o cinema geralmente não dava aos fãs de horror porque pegava censura. Eu iniciei minha produção dentro do horror sanguinolento com, primeiro fanzines, com títulos como Arghhh e Necrofilia, e logo em seguida passei a fazer filmes em VHS com ajuda de amigos como E.B. Toniolli, Airton Bratz e Carli Bortolanza, que eram meus colegas de aula na época (e trabalham comigo até os dias de hoje). Nossa primeira experiência lançada foi um longa de horror/sci-fi gore, cheio de humor demente e que teve uma repercussão interessante na época, principalmente porque ninguém estava fazendo nada parecido na época. E eu cheguei em muitas pessoas naquela época através de cartas via correio, já que meu modelo de distribuição eram os fanzines e as demo-tapes das bandas. Este incentivo todo fez com que nos organizássemos e, assim, levantei a produção do O Monstro Legume do Espaço, uma sci-fi goresplatter podreira cheia de escatologia que virou uma espécie de cult movie em 1995. Depois rodamos o ultra gore Eles Comem Sua Carne, produzido e lançado em 1996 e que até 2013 era o filme mais sangrento já feito no Brasil, já que tinha cenas de sangue jorrando em quase toda sua metragem. Depois disso estruturamos tudo como uma produtora/distribuidora independente, e produzimos sem parar. Em 1996 lançamos 4 longas; em 1997, 2 longas e em 1998, mais 2 longas, tudo dentro de estilos extremos de se fazer e pensar cinema. Em 1999 escrevi e dirigi o Zombio, que nas pesquisas que o Jamie Russell fez para seu livro Zumbis — O Livro dos Mortos, é apontado como a primeira produção sobre o tema aqui no Brasil (isso está na edição original, lançada uma década antes da edição nacional deste livro que foi atualizada com outros exemplares SOVs de cinema zumbi tropical). Em 2004, em parceira com o Coffin Souza, lancei o livro cult Manifesto Canibal, que ensinava a fazer filmes independentes de um modo mais, digamos, desajustado. Entre 2006 e 2010, mudei um pouco meu esquema de produção e distribuição ao fechar parceria com o Gurcius Gewdner, quando alugávamos cinemas por algumas capitais do Brasil e exibíamos sessões duplas com nossos filmes mais escatológicos ou experimentais. Nessa mesma época lancei uma série de filmes que ficaram bem conhecidos, como Arrombada — Vou Mijar na Porra do seu Túmulo!!!, Vadias do Sexo Sangrento, Ninguém Deve Morrer e O Doce Avanço da Faca, todos estes bastante gores e já produzidos no formato digital. Em 2013 realizei o longa Zombio 2 — Chimarrão Zombies, que se tornou uma espécie instantânea de clássico da comédia splatter escatológica. Este filme foi exibido por mais de 50 festivais e mostras ao redor do mundo, incluindo festivais como Sitges, FantasPoa, Rojo Sangre e outros. Teve distribuição em DVD no Canadá, USA, Espanha, etc. E me rendeu convite para escrever e dirigir episódios em filmes coletivos, como As Fábulas Negras (2014), que trazia Zé do Caixão entre os colaboradores, e 13 Histórias Estranhas (2015). Depois disso passei a fazer alguns curtas politico-experimentais, como Ándale! (2017), que venceu vários festivais na categoria melhor curta experimental, A História Kaingang por Eles Mesmos (2018) e Brasil 2020 (2019).
Qual o estilo dessa autobiografia e quais os livros que influenciaram?
Eu queria uma linguagem bem solta, ágil, engraçada, porque a gente nunca foi uns caras formais, a gente era um bando de cara sem rótulo que queria chocar, que queria fazer filmes e livros irreverentes e provocadores. Então a linguagem que eu queria era mais próxima de uma conversa de boteco do que um tratado acadêmico. Quis escrever um daqueles livros que, apesar de ter mais de 450 páginas, fosse pra se ler em uma sentada, e mais, fosse pra se divertir com o tanto de histórias absurdas e imbecis que contamos neste livro. Tenho certeza que muita gente vai terminar a leitura e se perguntar: “Mas como estes diabos ainda estão vivos?”. Pra compor este livro, teve duas biografias que me influenciaram para chegar na narrativa alucinante que eu queria: Evil Dead — A Morte do Demônio [Arquivos Mortos], de Bill Warren; e Mate-me Por favor — A História sem Censura do Punk, de Larry “Legs” McNeil e Gilliam McCain. Afirmo também, sem medo de errar, que se você gostou de filmes como “Ed Wood” ou “Dolemite is my Name”, vai gostar com certeza deste livro.
O que os leitores podem esperar do livro?
É uma história muito rica. A Canibal Filmes foi criada numa cidadezinha de 8 mil habitantes, na década de 1990, num tempo que simplesmente não existiam nem produções profissionais no Brasil, então imagina se falar em fazer filmes de horror transgressores. E essa história é cheia de passagens realmente absurdas, desde como filmávamos até problemas de gente revoltada depois com nossos filmes. Em 1994 chegamos a ser presos por estarmos filmando sem autorização num cemitério. Também conto sobre acidentes de filmagens (tivemos, em pelo menos duas ocasiões, acidentes que quase resultaram em mortes); conto sobre provocações que fazíamos na nossa fase 1998 (filmamos uma cena de orgia escatológica numa área da polícia federal, com autorização da polícia; filmamos cenas de beijo gay nas escadarias da Igreja Matriz no centro de Porto Alegre exatamente no momento que a missa terminava, gerando fiéis revoltados; invadimos o Festival de Gramado e produzimos um longa de guerrilha que conta com contrariados atores Globais em seu elenco e o Jorge Timm vestido de Tor Johnson passando a mão na bunda do Kikito, só pra ilustrar com três exemplos); tivemos pelo menos umas duas vezes revólveres enfiados na nossa fuça por motivos que só lendo o livro pra descobrir; debanda de pessoas ligadas a produtora que até hoje não falam mais conosco e outras muitas passagens envolvendo situações que se tornaram surreais por conta da nossa sede por álcool e mais; também levanto muitas histórias envolvendo produções que começamos a filmar e tudo deu errado; passagens sobre festivais como HorrorCon, na São Paulo da década de 1990, nossas festas sem limites na Splatter Night Fest, o início de tudo quando o Festival Crash ainda era Trash, as lendárias exibições de nosso curta “Boi Bom” no Cinemeando no Garagem, em Porto Alegre; e, talvez o que mais irá deixar o leitor embasbacado: nossos sets de filmagens que foram, todos, cheios de problemas envolvendo muitos problemas e pessoas bem abertas, sexualmente falando.
Conte um pouco da ideia do Catarse e essa sua filosofia prática de fazer as coisas por conta própria sem esperar editais, patrocínios e leis de incentivo?
Minha energia é gasta em tornar os projetos realidade e, como não sou um cara nem um pouco paciente com burocracias, não tenho saco pra formatar projeto, enviar, esperar, etc. Não sou contra, acho que precisam existir, inclusive tenho amigos que usam, só que não são pra mim. Até porque minhas temáticas nunca se encaixam nos editais e, outra, porque fazer tudo com suas próprias pernas dá um tesão desgraçado! Então este Catarse para tornar o livro Canibal Filmes — Os Bastidores da Gorechanchada uma realidade fecha um círculo de 30 anos, onde uma produtora transgressora conta suas experiências e faz isso com dinheiro de apoiadores que adoram e respeitam seu estilo de fazer as coisas de forma livre. Este livro precisa ser independente, é uma questão de honra depois de tantos anos batendo a cabeça contra muros.
Caso a campanha não dê certo, haverá livro?
Olha, minha sugestão é: Apoie nosso Catarse! É este apoio que vai garantir mesmo a edição do livro! Se você realmente curte o que realizamos nestes 30 anos, mostre para seus amigos, envolva-os, mostre que é extremamente importante apoiar nosso projeto pela importância histórica dentro da cena independente e underground brasileira. Vá em lojas, livrarias, sebos e mostre a campanha e os incentive a comprar o livro para o Catarse ser bem sucedido. Divulgue em suas redes sociais e não deixe o projeto morrer. E nossa história não é uma história local. Ela começou numa cidadezinha de 8 mil habitantes, mas nossas produções e lançamentos sempre envolveram a cena underground em nível nacional. Até para ilustrar isso, meus últimos 5 curtas foram todos filmados em estados diferentes. Ándale! (2017), em Santa Catarina; Beck 137 (2017), em Goiás; A História Kaingang por Eles Mesmos (2018), no Rio Grande do Sul, na T.I. Guarita, e 290 Venenos (2019), no Mato Grosso. Se não der certo a campanha, há possibilidades concretas de que o livro pode ficar por muito anos ainda em alguma gaveta aqui em casa.
Existem umas metas estendidas, o que seria isso?
Nosso foco inicial é completar o quanto antes os 100% pretendidos no projeto, que já irão permitir uma edição com capa dura e a parte gráfica fantástica. Mas passando os 100% vamos tentar dobrar os apoios para termos a história toda numa edição de ultra luxo, meio que uma provocação aos meios oficiais de produção que são aprovados em editais e fazem um serviço gráfico meia boca. Com 200% já teríamos como colocar 30 páginas a mais de fotos e dos bastidores, ilustrando o livro com inúmeras imagens que sempre são banidas da internet pelo seu teor erótico ou violento. Então, se conseguirmos chegar a META VI (225%), além de todas as melhorias já previstas nas metas anteriores, ainda incluiremos um Lobby Card do filme Zombio. Para quem não sabe, Lobby Cards eram uma maneira muito popular que os cinemas tinham de divulgar os filmes, além de se tornar um objeto colecionável. Atingindo a META VII (250%), vamos criar uma Sobrecapa com arte ultra gore composta de fotos despudoradas e sangrentas de filmes da produtora. Tudo que já foi censurado ou que nos deu problema em algum momento dos 30 anos, estará estampando essa sobre capa. Se atingirmos a META VIII (275%), o apoiador também receberá um Poster do filme Zombio 2 em tamanho A3, e, se atingirmos a META IX (300%), e para isso precisaremos do seu comprometimento em adotar o projeto como se fosse seu, editaremos um Audiolivro (audiobook) com toda a história da Canibal Filmes.
Tem alguma outra novidade para dentro da campanha ou algum outro projeto para 2020?
Vai ter sim, principalmente para os apoiadores, que de tempos em tempos irão ganhar alguns mimos surpresas. É uma forma que encontramos de recompensá-los previamente. Estes mimos surpresas serão materiais gráficos e vídeos que tenho certeza de que quem curte nossa história vai delirar e, quem ainda não conhece direito, irá ficar muito instigado a querer mais. Após encerrar a campanha de financiamento coletivo para o Canibal Filmes — Os Bastidores da Gorechanchada, iniciarei o roteiro de um curta de extremo gore que vou desenvolver com a maquiadora Alice Austríaco e que, por enquanto, não posso falar muito.
Serviço: www.catarse.me/canibal — a campanha vai até o dia 08/05/2020.
Entrevista por Frederico Moschen Neto, revisão e edição de Ana Gilda Vicenzi. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.