Tropa de Elite: um filme que só poderá ser compreendido por completo atualmente!

Breve ensaio sobre o filme Tropa de Elite, dirigido por José Padilha, que aponta um certo diálogo com a filosofia a partir de autores como Hegel, Nietzsche e Foucault

Ricardo Max
rock.rec.br

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Como venho de uma tradição hegeliana da filosofia, sou adepto da visão de que a consciência ela tarda na compreensão do Ser. Não podendo acompanhar, na maior parte das vezes, o movimento do Real enquanto ele acontece, mas só depois que acontece. Aquilo que Hegel chamou de consciência post festum.

Aconteceu do mesmo modo na minha interpretação do Filme Tropa de Elite (2007), dirigido pelo cineasta brasileiro José Padilha e que na época eu não via com bons olhos o filme, diferentemente da grande massa de brasileiros médios que aplaudiam de pé as ações dos protagonistas e coadjuvantes que fazem parte da corporação do Batalhão de Operações Policiais Especiais, ou comumente chamado, BOPE.

O primeiro motivo por ver com maus olhos o filme foi a parte que me tocava afetivamente, pois vivi em um ambiente familiar militarizado e que convivia com os mesmos problemas da família do Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura. Levar o trabalho para casa daquele modo era idêntico ao que aconteceu com meu pai em casa. Hoje, liberto da corporação por estar na reserva.

Um outro elemento que solidificou a minha interpretação na época foi uma crítica escrita por um líder de movimento de esquerda, que colocava o filme como uma ferramenta narrativa de justificativa da violência policial nas periferias, o que é o contrário da proposta do filme como veremos depois, e, assim como a maioria da população, este autor tinha a visão maniqueísta tanto da narrativa, como da nossa realidade.

Hoje, após eu assistir este filme inúmeras vezes e ter amadurecido, somado ao atual governo no qual é baseado no militarismo e no apoio do discurso do “bandido bom é bandido morto”, colocado em prática pelas milícias dentro das periferias do país, minha perspectiva em relação ao filme mudou para totalmente o oposto e hoje vejo como este filme é autoexplicativo, mas poucas pessoas perceberam a sua verdadeira crítica.

Vamos aos elementos narrativos do filme:

Quando falo que este filme é totalmente autoexplicativo, o diretor teve que pôr uma citação de Stanley Milgan (1974) no começo do filme:

“A psicologia social deste século ensinou uma importante lição: usualmente não é o caráter de uma pessoa que determina como ela age, mas sim a situação no qual ela se encontra”

Esta citação é simplesmente a síntese do filme estampada nas nossas caras e que eu nunca tinha associado a sua importância para a estória de alertar-nos de que:

não existem pessoas boas ou pessoas ruins, existem ações boas e ações ruins.

Talvez pela nossa formação cultural cristã, estamos acostumados a ver o mundo numa simples dualidade: bom e mau, mocinho e vilão, Deus e Satã, acabamos enquadrando, inconscientemente, as personagens nestas duas classes.

Capitão Nascimento

“Honestidade não faz parte do jogo” — Capitão Nascimento.

A princípio, achei que Capitão Nascimento tinha perdido totalmente a sua humanidade para poder enfrentar o crime que é desumano. Como nos fala Augusto dos Anjos:

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Ou seja, Cap. Nascimento tornou-se aquilo que ele mesmo combatia. O crime se tornou a sua forma de “tentar” vencer o crime. Suas ações como execuções extra-judiciais, o “saco” e a “vassoura” nada se diferenciam, em grau, a execução à la inquisição feita pelos traficantes num casal de classe média-alta que trabalhava na ONG do morro.

Matias e Neto

Para substituí-lo em seu ofício, Cap. Nascimento busca a mesma coisa que Nietzsche buscou na sua vida filosófica, o Übermensch.

Übermensch, traduzido por super-homem ou além-do-homem nas edições em português, seria a união de duas partes presentes em nós: apolíneo e o dionisíaco, onde a primeira representa a nossa parte racional, calculista, precisa, e a segunda a nossa parte irracional, impulsiva, temperamental. Ambas as partes foram totalmente separadas pela tradição cristã ocidental, sendo valorizada o apolínio e menosprezado o dionisíaco. Então, o Übermensh viria superar esta ruptura e reconciliar ambas as partes numa nova moral.

Nesta trama, Matias é a nossa parte apolínea enquanto Neto, dionisíaca e Cap. Nascimento, busca, assim como Nietzsche, relacionar estas duas partes, chegando a um substituto perfeito, mas o que acontece é a morte de Neto e a transição de Matias do Apolíneo ao Dionisíaco.

Foucault e a bolha universitária

Quem somos nós, acadêmicos, na bolha universitária repleta de professores e estudantes de classe média dizendo o que é a classe operária, como deveria ser e como deveria agir? Mesmo que nossas teorias, teses e análises estejam corretas, elas acabam presas em trabalhos acadêmicos lidos somente pelos membros da academia. Alimentando ainda mais esta bolha.

A obra utilizada pelo filme é Vigiar e Punir (1975), no qual é descrita a história do nosso sistema penal moderno e a evolução das punições corporais, para as punições na “alma”, onde o pagamento desta sentença se converte em tempo de cadeia. O objetivo desta pena na “alma” é a reflexão sobre o crime cometido pelo transgressor, diferentemente das penas pré-Revolução Francesa que eram direcionadas diretamente aos corpos: decapitações, enforcamentos, fogueiras etc. Além desta genealogia, Foucault faz críticas contundentes ao sistema judiciário moderno que pune com maior rigor os pobres por crimes contra a propriedade privada e justifica o crime dos ricos: “por que ele fez isso?”, “Será motivado por algum distúrbio mental?” “ele não tinha motivos para fazer isto” etc.

Há uma citação deste livro que explicaria a nossa má interpretação na época de lançamento do filme:

[…] “acostumado a ‘ver correr sangue’, o povo aprende rápido que ‘só pode se vingar com sangue’ (p. 63).

No entanto, Foucault seria pouco ouvido pelo brasileiro médio, sendo interpretado somente de forma hermenêutica pelos acadêmicos e tendo pouca relação com a realidade material.

Pelo nosso costume de ver o rio rubro correr em nosso chão, não questionamos as execuções extra-judiciais dos “heróis” de nossa trama, nem a destruição da humanidade feita pelo treinamento dos futuros policiais do BOPE, pois o criminoso é o nosso vilão e ele deve ser exterminado de qualquer maneira, mesmo que isso leve a nossa própria humanidade junta.

Este costume fez com que aplaudimos a barbárie que o filme expõe: o crime e a guerra contra as drogas se auto alimentam e levam todos nós para a vala.

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