Um “anti obituário” que virou linha editorial

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rock.rec.br
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5 min readAug 2, 2021

ou — como podemos levar adiante o legado “daquele chato” do Frederico Neto

Caraca, Fred, já faz um ano que cê morreu. Eu sei, você repudiaria um texto sobre isso, dizendo ser antiético divulgá-lo aqui. Mas desde este luto, percebi sua ausência justamente em nossa linha editorial, que você também idealizou. Pautar e fortalecer o debate crítico sobre cinema e cultura é reviver sua trajetória fantasmagórica. Então, os já tradicionais anti obituários também têm um espaço para a sua obra e seu legado.

Quase como se a sua consciência crítica não deixasse a nossa em paz, caso não fizermos isso. Tratemos um pouco de suas produções e seu lado mais crítico — leia-se “chatíssimo”. Nas semanas anteriores à sua morte, a gente conversava com certa frequência. Sobre seu estado de saúde, você era sempre objetivo e até cético, mas sempre encerrava encaminhando os trabalhos.

Seguia no seu ritmo produtor, às vezes trabalhando direto do hospital. Sobre os efeitos da pandemia na geopolítica mundial, parecia mais animado, torcendo por uma guinada à liderança chinesa no mundo. Essa sua criticidade, um humor ácido, mas sobretudo a radicalidade, parecem ser a própria linha editorial de nossas produções por aqui. Acreditar no público, mais do que na “classe artística” (aspas suas) ou na indústria cultural, e pautar este recorte político geográfico nessa perspectiva que convencionamos chamar de terceiro-mundista tricontinental (América Latina, Ásia, África, num recorte muito mais político e afetivo do que geográfico).

Frederico como personagem nas tirinhas de “Magra de Ruim”, em processo de adaptação para o cinema.

Sobre a situação da cultura aqui no Brasil, você estava sempre melhor informado. Raramente falava bem de alguém com fama, lançamento ou publicação, e tinha as melhores razões para isso. Suas opiniões sempre traziam alternativas e soluções, como quem estivesse mais próximo do que a China no objetivo de dominar o mundo. A verdade é que isso sempre nos motivou a pensar e fazer o jornalismo cultural que sabemos necessário — para não dizer inexistente. Escrever isso enquanto a cinemateca pega fogo ilustra bem nosso contexto.

Aliás, seu acervo de referências ou posicionamentos denunciam que você era, afinal, muito mais um agitador cultural do que meramente um produtor (quem está por fora de suas poucas e boas que se atualize). Isso me surpreendeu algumas vezes nessas conversas, que não se restringiam ao campo do audiovisual ou da música, passando por experiências no acervo ou memória ou articulando o meio cultural. Até quando eu comentei com você sobre o terreiro de candomblé que frequentava, e você perguntou “de qual nação?”, num interesse genuíno que nunca vi em nenhum outro materialista convicto.

O anti obituário

A tentativa infrutífera de fazer seu anti obituário, portanto (consigo ouvir sua voz furiosa gritando “corta isso, cara!”), vai mais no sentido de levar adiante, se é que isso é possível, a falta que você faz nestas trincheiras. Fico imaginando como você veria seus próprios filmes “de fora”, com este seu olhar crítico tão peculiar. Provavelmente falaria uma série de problemas técnicos, da produção, de precariedades que gostaria que fossem resolvidas, e que limitaram ou empobreceram o filme. Também criticaria esse “pessoal pós-moderno metido a artista” que só fala de “estética” sem entender de linguagem de cinema, e por aí vai. Pois é, Fred, você realmente era um crítico, acima de todas as outras funções.

E é engraçado como tudo isso, na minha leitura, se relaciona muito com o universo em que você documentou a banda Dorsal Atlântica, por exemplo. Não só por se tratar de uma trajetória marginal, radical, com toda a precariedade que possa transparecer. Mas também pelo fato de muita gente nem fazer ideia do que se trata, enquanto quem é do meio sabe muito bem da importância. Tal qual a figura do produtor que, quando faz seu trabalho de forma eficaz, nem precisa aparecer no produto final. O mesmo acontece no longa “Valeu, Animais”, que adentra os 25 anos do “programa mais maldito da rádio brasileira”. Fico muito curioso de saber como fica seu filme ainda inédito sobre a banda curitiba Relespública.

Estes seus filmes musicais são, em conjunto, um mergulho crítico na indústria cultural, na produção brasileira, no fazer arte com rigor no terceiro mundo. Junto a essa radicalidade, portanto, há um olhar bastante sagaz para identificar trabalhos culturais relevantes em meio a todo este caos, em que muitas vezes grandes produções acabam “superestimadas” (como era comum você nomear), ao passo que muita coisa boa acaba não chegando a tanta gente.

E este é um outro ponto importante na sua atuação: o foco no público. Muitas vezes metia o pau no artista. No meio, na cena. Mas o público era sempre visto como a peça mais importante da cultura. Esta certamente é uma escolha central na sua obra, mas também aqui no rock.REC.br, em que várias vezes conversamos sobre as editorias, maneiras de produção ou escolha de pautas. O protagonismo e foco central no público, na formação, acreditar nesse encontro, no livre debate de ideias, algo cada vez mais raro, e por isso urgente.

“Aula” de Frederico para o jornalista e ativista André Takahashi

Há momentos raros, em que você aparece nas filmagens — logicamente mexendo nas papeladas, e provavelmente resolvendo as “tretas” da produção, agilizando e fazendo com que as coisas acontecessem da melhor maneira possível. Outra faceta mais “oculta” é esta de fã, ainda que um fã crítico, que mete o pau na banda, e mais parece ser um integrante.

E não foi à toa que, com este espírito questionador e de levar as “tretas” até as últimas consequências, muita gente mesquinha fosse colocando pedras em seu caminho profissional. A galera reaça da “Província”, como você chamava Curitiba, que o diga. Engraçado que, depois da sua morte, me surpreendi com a quantidade de pessoas relatando seu apoio em momentos chave na carreira ou na vida pessoal.

Estou aqui buscando uma forma de encerrar este pequeno texto. Não quero cair na pieguice nem na lamentação, atitudes que você sempre esculhambou. É como se, para prosseguir, a gente tivesse sua figura insepulta incomodando mesmo depois da morte. “O que o Frederico diria disso?” soa como uma boa pergunta norteadora para nossas atividades culturais, ativistas ou políticas. Mas a gente sabe que era e continuaria sendo impossível agradar alguém como você. Para isso, seria necessário uma revolução.

Conforme sinopse do Fred: “O som e a fúria de Eduardo Coutinho sobre os Festivais de Cinema.”

Texto de Vinicius “vino” Carvalho. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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