Você não estava aqui (Sorry we missed you)

Direção de Ken Loach | 2019 | 101' | Ficção | Reino Unido, França, Bélgica

Antonio Lima Júnior
rock.rec.br
4 min readMar 16, 2020

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Depois de nos agraciar em 2016 com o longa Eu, Daniel Blake, o diretor britânico Ken Loach abrilhanta as sessões de cinema do começo deste danoso 2020 com a estreia do seu novo filme, Você não estava aqui (Sorry we missed you). Na obra, somos apresentados a Ricky (Kris Hitchen), um ex-operário que agora se vê trabalhando como motorista de entregas via aplicativo, assumindo uma visão de trabalho “autônomo”, na lógica do discurso liberal de ser o próprio patrão.

Fotograma do filme Você não estava aqui (Sorry we missed you) — Divulgação

A trama, entretanto, nos mostra que na realidade não é bem assim. Enquanto vemos na pele de Ricky a lógica de um trabalho exaustivo e nada benéfico, também vemos o drama da família britânica dos novos tempos, onde a esposa de Ricky, Abby (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora, mostrando como a sociedade europeia trata os idosos. Seus filhos, em especial o mais velho, Seb (Rhys Stone),tem problemas na escola, assumido uma identidade de “juventude transviada”, enquanto a filha mais nova, Liza Jane (Katie Proctor), assume um papel de dona de casa na ausência dos pais e sofre com as brigas constantes da família.

Como o usual em seus filmes, Ken Loach assume um realismo quase que documental das transformações da sociedade capitalista. Assistimos nas cenas da rotina dos personagens e em diálogos como a discussão acerca do futebol. A construção das personagens acaba sendo expandida para os celulares, que assumem papel de antagonista na vida das demais personagens, uma ação que foge das telas para a vida real.

Nas entrelinhas dessa dinâmica é que vemos os problemas concretos da sociedade contemporânea, que aparecem em cenas como a conversa com uma das “clientes” de Abby, uma senhora que participou de uma greve na década de 80 e, ao contar a sua história, nos mostra as disparidades das lutas conquistadas por sua geração e as derrotas de lá pra cá, ao ser atendida por uma cuidadora que trabalha mais de oito horas por dia e não recebe sequer o vale-transporte.

A luta da família para sobreviver mostra que há algo de similar na classe trabalhadora universal, seja na Inglaterra ou no Brasil. O acúmulo de dívidas, o medo de regredir nas condições de vida e a precarização do trabalho diante da retirada de direitos, são problemas que as personagens da trama enfrentam de uma maneira condizente com a realidade vivida hoje em dia, realidade esta que está tão diante de nossos olhos, que o filme causa espanto com tamanho realismo e quebra a ausência de reflexões que não fazemos no mundo real.

O mundo moderno virou uma selva e na luta por sobrevivência o patrão continua sendo um grande obstáculo, por mais que a ideologia liberal disfarce a exploração com discursos de um trabalho autônomo, onde se trabalha para si. Entretanto, Ken Loach lembra que o patrão ainda existe e segue imperdoável, com o personagem que assume o papel de chefe do Ricky no aplicativo de entregas (Ross Brewster), mas que este diz que apenas segue um papel linha-dura para manter o lucro dos acionistas.

Na tentativa de buscar um futuro melhor, as personagens adultas acabam construindo um drama onde o conflito está entre esse futuro nebuloso e um retorno ao que era antes, tão desejado pelas personagens adolescentes, mas que em síntese o diretor nos aponta que esse retorno é impossível diante do que o capitalismo nos apresenta em seu cotidiano bárbaro.

Trailer oficial de Você não estava aqui — Divulgação: Vitrine Filmes

As cenas finais mostram que não existe final feliz no capitalismo, que é preciso continuar trabalhando exaustivamente para pagar as dívidas que se acumulam pelo simples fato de estar vivo dentro do sistema danoso. O espectador, além de se sentir angustiado com o encerramento brusco, sente a vontade de reagir, de não deixar que as cenas da tela sejam vistas diariamente na realidade. Esse é o cinema que Ken Loach assume, um cinema de contestação, essencial para os dias de hoje, onde alguns ainda brincam de fazer cinema como um artigo de luxo, impossível de ser visto ou de servir como reflexão para quem não tem tempo para nada que não seja o trabalho.

Longe de ser pessimista, o que Ken Loach traz em Sorry we missed you, assim como na sua obra anterior, é a realidade tal qual ela é: um choque necessário para uma possível reação, para que não continuemos lamentando o esquecimento da humanidade como seres humanos e não meros produtores de mercadorias, fazendo uma relação com o nome do filme, referência aos cartões entregues quando o cliente não atende ao aplicativo de entrega. É o momento de acabar com a alienação, sabendo que mesmo que não tenhamos as respostas na ponta da língua, o primeiro passo é se indignar com a realidade, antes que seja tarde demais, como em Daniel Blake.

Crítica de Antonio Lima Júnior e revisão de Frederico Moschen Neto. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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