Coerência Incoerente

Rodrigo Aguiar
Rodrigo Aguiar
Published in
7 min readJun 19, 2017

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Você alguma vez se prejudicou em alguma situação justamente porque acreditou que precisava manter um determinado posicionamento?

Acredito que seja fácil para você buscar em sua memória as vezes em que preferiu contrariar o conhecido ditado: “É melhor ser feliz do que estar com a razão”. Mesmo que a razão seja apenas a sua versão dela

As pessoas fazem isso o tempo todo sendo que algumas vezes têm consciência disso e outras vezes simplesmente não percebem que estão agindo dessa forma e nem o quanto isso pode ser ruim para elas mesmas e também para aqueles com quem se importam.

A Coerência Interna

Existem muitos fatores que podem estar envolvidos na origem e manutenção nesse tipo de posicionamento como orgulho, vaidade, rivalidade, necessidade de aceitação em determinado grupo, entre alguns outros, mas hoje, quero me deter sobre um aspecto que muitas vezes passa despercebido pela maioria de nós: A necessidade de manter a coerência interna de forma automática.

Existem estudos que apontam que essa necessidade é algo que funciona internamente sem que o ser humano perceba o quanto ela direciona suas ações e decisões no dia a dia.

Depois que fazemos uma opção ou tomamos uma posição, deparamos com pressões pessoais e interpessoais exigindo que nos comportemos de acordo com esse compromisso. Essas pressões nos farão reagir de maneiras que justifiquem nossas decisões anteriores. Simplesmente nos convencemos de que fizemos a escolha certa e, sem dúvida, nos sentimos melhor quanto à nossa decisão (Fazio, R. H., Blascovich, J. e Driscoll, D. (1992). On the functional value of attitudes. Personality and Social Psychology Bulletin, 18, pp. 388–401).

É fácil entender o porquê de esse ser um traço evolutivo, pois num ambiente em que a nossa biologia evoluiu para economizar energia, as representações que criamos em nosso cérebro a respeito do mundo ao nosso redor e de nós mesmos precisavam ser simples e coerentes o suficiente para que pudéssemos compreender a realidade em que estávamos inseridos.

Mudanças constantes de posicionamento e decisões adicionam variáveis às representações e, quanto mais variáveis a serem consideradas, mais energia precisa ser utilizada para trabalhar esse conjunto complexo.

Existem justificativas sociológicas para que esse traço fosse considerado importante ao longo da evolução. Como poderia ser possível classificar o outro como amigo ou inimigo, perigo ou auxílio se não pudéssemos confiar numa representação do mesmo que fosse coerente com aquilo que ele demonstrasse ao longo do tempo?

Tanto isso é verdade que é comum notar que para a maioria das pessoas quando alguém age de forma diversa da representação que foi criada a respeito dessa pessoa ela passa a ser considerada como não sendo confiável. A incoerência é comumente vista como um traço de personalidade indesejado (Allgeier, A. R., Byrne, D., Brooks, B. e Revnes, D. (1979). The waffle phenomenon: Negative evaluations of those who shift attitudinally. Journal of Applied Social Psychology, 9, pp. 170–182.; Asch, S. (1946). Forming impressions of personality. Journal of Abnormal and Social Psychology, 41, pp. 258–90.)

Coerência Interna para Crianças

Para ilustrar um pouco mais, vou usar uma das observações que tenho feito com meu filho de quase 3 anos e que, tenho certeza, se repete com inúmeros meninos e meninas ao redor do mundo, já que tenho trocado impressões com muitos pais que conseguiram observar o mesmo.

A autoimagem que a criança faz de si mesma é muito dependente daquilo que ouve e vê o mundo ao seu redor indicar para ela sobre ela mesma.

Mesmo que não esteja sendo dito diretamente a ele mas estando num contexto onde ele possa ouvir a conversa, se alguém diz, por exemplo: “O Heitor não gosta de doce” e logo após oferecemos algum doce a ele, é muito comum que ele recuse e faça cara feia para o doce.

É obvio que isso não funciona todas as vezes, porque depende de outros fatores, como o estado de humor dele no momento e que outros estímulos possam estar envolvidos, mas o reforço dessa mensagem ao longo do tempo aumenta as probabilidades de que ele se comporte de forma a realizar essa afirmação.

Ou seja, a criança busca ser coerente com a autoimagem que cria de si mesma através das informações que recebe do ambiente em que está inserida.

Se você é responsável por uma criança provavelmente já viu situações onde alguém diz que a criança é assim ou assado e ela passa a fazer e se comportar da maneira descrita. Já vi crianças que começaram a tossir (e fica muito claro que é apenas um simulacro) porque ouviram de alguém que ela ainda estava tossindo, mesmo já não estando tossindo após uma gripe, por exemplo.

Quanto isso não pode ser poderoso quando ao longo do tempo as crianças recebem mensagens recorrentes do tipo: você não consegue, você é muito lenta(o), você é burra(o), Você só faz manha, você é desobediente, etc?

O mesmo poder pode ser exercido criando uma autoimagem positiva com mensagens do tipo: você é inteligente, você é carinhosa(o), você é bonita(o), etc.

Não quero dizer aqui que essa necessidade de coerência seja algo ruim, ao contrário, como foi dito anteriormente, ela é um traço evolutivo e se é assim, de alguma forma nos ajudou a chegar até aqui.

A necessidade de coerência funciona de uma forma automática por uma questão de economia de energia e por isso mesmo ela nos poupa muita energia que seria gasta pensando duramente sobre tudo. Imagine em um mundo como o nosso, termos que avaliar os prós e contras de tudo e tomar decisões complexas o tempo todo. É simplesmente impraticável!

A incoerência por trás da coerência interna

Robert Cialdini em As Armas da Persuasão nos fala sobre um segundo aspecto no qual a coerência automática nos poupa de dissabores:

“Às vezes, não é o esforço do trabalho cognitivo difícil que nos faz evitar a atividade pensante, mas suas penosas consequências. Ter que encarar o conjunto desagradavelmente claro e indesejável de respostas fornecidas pelo raciocínio pode estimular nossa opção pela preguiça mental. Existem certas coisas perturbadoras que preferiríamos não perceber. Por ser um método pré-programado e maquinal de reação, a coerência automática tem a capacidade de oferecer um abrigo seguro das percepções preocupantes. Protegidos pela fortaleza da coerência rígida, podemos ser impermeáveis aos ataques da razão.”

É especialmente sob esse aspecto que a coerência automática pode se tornar bastante prejudicial para muitas pessoas, pois em busca de coerência com soluções mágicas e simplistas que elegem para si mesmas, elas acabam por agir e tomar decisões que podem parecer claramente descabidas para quem está de fora da situação, mas que para elas é um caminho mais fácil já que o caminho de uma razão mais profunda poderia mostrar que a solução está distante, vai necessitar muito esforço ou é até mesmo impossível naquele contexto.

Quem de nós já não foi confrontado por um amigo ou amiga que ao nos pedir um conselho não queria realmente ouvi-lo e sim reforçar a solução que já tinha dentro de si mesma(o)?

E há muito pouco que você pode fazer para que essa pessoa mude de posição enquanto ela mesma não abandonar a necessidade de coerência com seu próprio pensamento que se apresenta de forma automática. Uma técnica que funciona algumas vezes é mostrar para a pessoa que está tudo bem se ela mudar de opinião/decisão ou até mesmo mostrar que se trata de uma posição de coerência automática, mas não é certeza de que funcionará.

Isso é muito verdadeiro, principalmente quando se trata de avaliar decisões passadas e reconhecer que a decisão não foi acertada ou que ela pode ter prejudicado a si mesma ou a outras pessoas pois esse tipo de reconhecimento, para algumas pessoas está carregado de juízo de valor, principalmente daqueles que foram reforçados durante a infância: Se você tomou determinada posição/decisão, você é mau/má, é burra(o), é menos do que os outros, etc.

Quando nossa representação de mundo e de nós mesmos funcionam em termos absolutos, dificilmente aceitamos mudar de posição, aceitamos que os erros fazem parte do processo de aprendizado e de melhoria do próprio processo de tomada de decisão.

Como ser coerente?

Embora tenhamos pouco ou nenhum poder sobre a tomada de consciência das demais pessoas sobre estes aspectos, temos poder sobre nós mesmos e é aí que espero estar a utilidade deste texto.

A coerência automática pode ser muito importante para que possamos economizar a energia que usaríamos pesando todos os aspectos das situações pelas quais passamos mas, como vimos, agir sempre de forma automática no que tange à questão da coerência interna, pode ser prejudicial. Dessa forma precisamos buscar identificar em que situações deveríamos desligar a coerência automática para avaliar a possibilidade de um posicionamento diferente.

Situações que envolvem tomadas de decisão muito importantes, seja pelo impacto em nossas vidas ou de outras pessoas, seja pelo risco/ probabilidade de dar errado, ou situações que envolvem a boa convivência com aqueles com quem nos importamos deveriam ser avaliadas no sentido de verificar se não estamos enveredando pelo caminho da coerência automática.

Toda situação em que tenhamos um sentimento de fundo (algo muitas vezes escondido ou que escondemos até de nós mesmos) de que estamos indo pelo caminho errado também deveriam ser avaliadas de forma mais dedicada. Obviamente isso exige um alto grau de auto-observação, mas a verdade é que no fundo todos nós temos essa percepção para assuntos realmente relevantes em nossas vidas.

Tudo isso depende, é claro, de estarmos realmente abertos a mudar de posição. A enxergar a vida e a nós mesmos como algo mutável e que pode sempre ser melhorado, além de ser muito possível não termos todo o conhecimento e nem toda a percepção das situações que vivenciamos para que estejamos sempre certos.

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Abraços.

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