Manifestações nas ruas e a Comunicação Não Violenta

Rodrigo Aguiar
Rodrigo Aguiar
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8 min readMay 1, 2017

Após longos anos de ditadura, onde a opinião política era praticamente um crime que merecia severo castigo, nosso país se viu às voltas com as manifestações a favor das eleições diretas (década de 80) e daquelas a favor do impeachment do ex-presidente Collor (década de 90).

Tivemos então um período de relativa “tranquilidade”, mas já faz alguns anos que as ruas de grandes centros de nosso país estão sendo palco de manifestações das mais variadas. Podemos citar as de 2013, que tiveram objetivos como contestar o aumento das tarifas no transporte público e os gastos para a Copa.

De forma marcante, tivemos aquelas que culminaram no impeachment da ex-presidente Dilma (havendo sempre as de ambos os lados) e mais presentemente as que contestam o governo do presidente Temer, incluindo-se aí as que contestam as reformas e mudanças que o governo atual pretende.

O mais interessante é que para todas, sem exceção, é possível encontrar argumentos pró e contra cada uma delas. Há sempre aqueles que as defendem e aqueles que são contra.

Particularmente acredito que todos devemos exercer o direito de buscar mudanças e melhorias para nossa sociedade, mas mais do que isso, acredito que devemos exercer esse direito de formas cada vez mais civilizadas, inteligentes e efetivas; à altura de um grupo de seres que já estão se arvorando na conquista das estrelas e do espaço sideral, mas que ainda possuem problemas tão graves como recém nascidos morrendo às centenas em todo o mundo por diarreia.

Antes que venham me chamar de coxinha ou mortadela (aprecio as duas iguarias), digo que exerço esse papel de forma muito peculiar e distante das grandes notícias e, sim, estou também buscando construir um mundo melhor. Eu tenho um filho e um desejo muito ardente de que ele possa usufruir e também construir uma sociedade cada vez melhor.

Exatamente por escolher caminhos não tão convencionais é que me propus a escrever o texto de hoje, pois noto que independentemente do tipo e do momento histórico dessas manifestações como um todo, volta e meia estamos diante dos mesmos problemas, das mesmas reivindicações e dos mesmos abusos. Todas as revoluções, manifestações e levantes ao longo da história humana contam basicamente com os mesmos enredos.

Posto isso, onde é que pode estar o erro?

Indo por caminhos sempre não convencionais, gostaria de propor uma reflexão a respeito da efetividade de nossa comunicação.

Quando avaliamos o ser humano a partir de suas dores e triunfos ao longo de sua história, podemos ver que ambas foram sempre dependentes da capacidade de as pessoas se comunicarem.

Presentemente, o quadro é o mesmo, mas em tempos de realidades tão líquidas chama-me a atenção o quanto de sofrimento as pessoas cultivam em suas vidas por conta de terem uma dificuldade imensa em se comunicar, seja com outros, seja consigo mesmas.

Acredito que tal estado de coisas se deve ao fato de que ao longo da evolução humana, o desenvolvimento da inteligência e do seu lado racional fez com que o ser se desconectasse de sua realidade emocional. Relacionamo-nos uns com os outros através de uma linguagem, ferramentas e realidade racionais sendo que somos seres eminentemente emocionais em nossa realidade mais íntima.

Para escrever esse texto, baseei-me intensamente na obra Comunicação Não Violenta de Marshall Rosenberg, PhD em psicologia e especialista em psicologia social que usou seu trabalho em inúmeras situações de conflito, trabalhando inclusive para a ONU, evitando a morte de centenas de pessoas.

Tio Marshall e uma de suas frases que eu mais gosto. “A violência, qualquer que seja a sua forma, é uma expressão trágica de nossas necessidades não satisfeitas”

Marshall nos diz que a comunicação entre as pessoas se dá basicamente em duas instâncias: a de solicitação e a de retribuição. O que é interessante notar é que essa solicitação está sempre ligada ao suprimento de uma necessidade do indivíduo. Aliás, ele diz em seus seminários algo realmente transformador:

“Quando você entende que toda comunicação se resume a estas duas instâncias, não existe mais espaço para que você se ofenda, pois percebe que as pessoas estão apenas solicitando algo de você ou retribuindo, mas com o uso de estratégias altamente ineficazes.”

Por exemplo, se alguém diz “Você nunca me compreende”, está na verdade nos dizendo que sua necessidade de ser compreendido não está sendo satisfeita, mas diz isso usando uma estratégia que dificilmente levará quem expressa a necessidade a ter a mesma suprida, pois essa expressão soa muito mais como acusação do que como um pedido.

Quantas brigas, desavenças, discussões, sentimento de culpa, raiva e de baixa autoestima poderiam ser evitados se as pessoas pudessem entender essa frase como uma solicitação de suprimento de uma necessidade ou se apenas formulassem a mesma como um efetivo pedido?

A CNV é um processo muito, muito simples em teoria, mas bastante complexo de ser colocado em prática, pois requer que saiamos da posição de animais feridos que rosnam e atacam por qualquer contrariedade e nos coloquemos realmente presentes, conscientes, responsáveis e interessados em estabelecer um vínculo com quem nos comunicamos.

Considero ser do interesse de todos nós a construção desses vínculos dado o que foi dito acima, de que o sucesso e a felicidade humanas dependem de uma comunicação mais efetiva e intimamente, todos nós sabemos disso.

Observar sem julgar

“Observar sem avaliar é a forma mais elevada de inteligência humana” — J. Krishnamurti.

O primeiro passo da CNV é o da observação. Conseguir apenas observar é algo realmente raro. Já no primeiro passo a maioria das pessoas consegue transformar a comunicação em algo violento.

Isso acontece porque raramente observa-se sem julgar, sem emitir de imediato um julgamento moralizador, sem se colocar na defensiva ou sem acreditar que sendo eu “certo”, o outro está “errado”.

É fácil observar que essa é a tônica da maioria das abordagens a respeito das várias manifestações que vem ocorrendo em nosso país. Percebe-se o quanto os rótulos reduzem as pessoas a coisas. Não há abertura para diálogo quando parte-se do princípio que o outro lado representa um mal, que está errado, que é limitado. Este é o primeiro passo para violências mais abrangentes, pois o conceito maniqueísta (bem e mal) de realidade faz com que as pessoas desumanizem o outro lado a tal ponto que torne-se permitido e até mesmo desejável fazer esse outro lado sofrer.

Identificando e expressando sentimentos

Tendo efetuado uma observação sem julgamentos, podemos passar para o segundo passo da CNV que é o da identificação dos sentimentos envolvidos, nossos e do outro.

Mais uma vez percebe-se o quanto é fácil criar confusão também nesse passo, uma vez que as pessoas tem grande dificuldade em identificar os sentimentos envolvidos naquilo que estão expressando. Nas palavras de Marshall:

“Nosso repertório de palavras para rotular os outros costuma ser maior do que o vocabulário para descrever claramente nossos estados emocionais.”

É mais comum expressar pensamentos e julgamentos como se fossem sentimentos do que os sentimentos em si.

Um exemplo comum nesses tempos de manifestação: “Sinto-me desrespeitado pela corrupção, pelo golpe, pela greve, pela polícia, etc.” Em qualquer das situações não há a expressão de um sentimento e sim de um pensamento ou julgamento, o que impede uma conexão mais profunda com necessidade real da pessoa e coloca no outro o peso de fazê-la “sentir” dessa forma.

A figura abaixo eu usei em outro artigo (link aqui), mas serve de guia para que possamos melhorar nosso repertório de sentimentos e emoções.

As necessidades na raiz dos sentimentos

O terceiro passo da CNV é a identificação das necessidades por trás dos sentimentos.

Marshal diz que julgamentos, críticas, diagnósticos e interpretações dos outros são todas expressões alienadas de nossas necessidades. E toda vez que nos expressamos dessa forma, é muito mais provável que a outra parte entenda isso como crítica ou acusação, encerrando a possibilidade de entendimento.

Exemplo: “Os manifestantes nunca respeitam o patrimônio público, são todos vândalos”. Essa expressão, tão comumente usada pelos dois lados da atual polarização, pode estar expressando a necessidade de respeito, de segurança, de abertura ou mesmo de confiança por parte de quem diz, mas a estratégia utilizada claramente não permite esse entendimento.

Como foi dito anteriormente, toda comunicação traz em si um pedido de suprimento a uma necessidade que não está sendo atendida e quando avaliamos as necessidades humanas, elas são praticamente as mesmas, variando o momento e condições em que são demandadas. É justamente o entendimento das necessidades que poderia nos ajudar a encontrar caminhos de colaboração, de entendimento e de busca pelo bem comum, mesmo havendo divergências de posição.

Efetuando um pedido

Tendo identificado os sentimentos envolvidos e as necessidades a serem atendidas, fica mais fácil pedir aquilo atenderá a estas necessidades.

O pedido deve ser algo concreto, uma ação clara que se executada, trará a mudança dos sentimentos e consequentemente o preenchimento das necessidades.

Não adianta dizermos que não queremos mais corrupção. Esse é um pedido muito amplo. Não é uma ação específica e ainda define apenas o que não se quer e não o que se quer.

Pode parecer bobo, mas é algo que pode transformar as suas relações se você passar a se comunicar de forma clara a esse respeito. Mais, isso pode trazer a você um sentimento de realização realmente enorme, pois poderá trabalhar explicitamente aquilo que terá um efeito específico sobre as suas necessidades.

É realmente mais complexo formular pedidos que atendam às necessidades de uma população ou grupo de pessoas e eu não tenho a menor inocência de acreditar que seria possível harmonizar todos os pedidos, mas eu tenho a certeza de que com a forma como as coisas estão caminhando, não há absolutamente nenhuma clareza quanto ao que realmente se quer e de que forma isso poderia atender às necessidades de quem pede.

Qual o caminho a seguir?

Se você chegou até esse ponto do texto, em primeiro lugar eu agradeço pela sua paciência e em segundo lugar, acredito que você esteja esperando que eu possa dizer então como poderemos resolver todos esses impasses que vem agitando o nosso país.

Pois é, eu não tenho e desconfio de quem possa dizer que tem uma resposta pronta e universal para isso. O que eu realmente acredito é que já são anos, séculos, milênios de agitações, tanto no campo pessoal como no social e parece que as necessidades são sempre as mesmas. Parece que se não encontrarmos uma forma melhor de nos expressarmos e buscarmos o bem comum, continuaremos repetindo esses mesmos padrões.

As experiências de Marshall tanto em comunidades devastadas pelo racismo, segregação e concentração de renda quanto em sociedades e países em guerra, onde o ódio e a vingança eram a regra geral mostram que a única forma de evitarmos mais sofrimento dentro dos relacionamentos, sejam eles pessoais ou sociais, é buscarmos estabelecer uma conexão empática com as necessidades que nos unem.

Desculpe se eu sou um desses que não acredita que as baixas são necessárias.

Se esse texto fez sentido pra você, se foi útil de alguma forma, curta e compartilhe, pois é a melhor forma de fazer com que chegue em outras pessoas. Ah, e não deixe de comentar e expressar dúvidas ou contribuições!

Abraços.

PS1: Construí um infográfico maneiro a respeito da CVN. Fique à vontade para baixar e compartilhar.

PS2: Recebi uma indicação ótima de comunicação não violenta. Esse é um trecho do filme Front of the class. Espero que goste. Link aqui

PS3: Esse é um dos seminários do nosso amigo Marshall Rosenberg. Por favor, assista as 4 partes. Não desista de adquirir conhecimento que pode te tornar melhor. Link aqui

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