Ela seria a nossa salvação, mas se tornou um pesadelo horrível

Rogério de Moraes
Redação Crítica
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5 min readOct 3, 2018

por Rogério de Moraes

Esta histórica começa com a lembrança de tardes adolescentes na casa de um grande amigo meu, o Sapão. Nem o chamo mais assim. Hoje é simplesmente Edinho ou algum insulto de ocasião. Depois de quase 30 anos de amizade, qualquer insulto soa carinhoso.

Naquele tempo, víamos TV juntos com frequência. Quase sempre era a TV Cultura. E me lembro do modo brusco com que Sapão pulava do sofá sempre que se deparava com um termo, uma palavra ou uma expressão cujo significado desconhecia ou sobre a qual queria saber mais. Num pulo, corria do sofá para o quarto pegar um volume de sua enciclopédia Barsa. Era assim antes do Google e era motivo de muito orgulho.

Muitas vezes vi esse meu amigo demonstrar imensa gratidão a seu pai, o saudoso Seu Geraldo. Dizia que o velho, mesmo sem ter tido a oportunidade de avançar nos estudos, sempre valorizara o conhecimento e a educação. Duas coisas que fez questão de passar aos filhos (Sapão e Capitão Vodocí, outro com apelido muito peculiar nesta história). Por isso, não hesitou em adquirir todos os volumes da enciclopédia Barsa. Um investimento financeiro bastante alto para os padrões daquele tempo.

Deslumbramento permanente
Conto esta história porque ainda hoje, tanto Sapão quanto eu — e também nossos amigos de mesma idade –, ainda nos deslumbramos com a possibilidade de não mais precisar saltar do sofá e procurar um volume da Barsa para pesquisar sobre algo. Basta esticar a mão e pegar o celular. Somos, afinal, a última geração que chegou à vida adulta antes da internet e do Google.

Sabemos como era difícil adquirir conhecimento, sanar dúvidas, esticar um pouco nossa compreensão sobre a vida, a realidade, o mundo. Eu mesmo, que nunca pude ter uma Barsa em casa, costumava pegar livros e revistas na biblioteca mais próxima para satisfazer minha curiosidade do mundo e das coisas. Eram dois livros e três revistas toda semana, religiosamente. Retirados, lidos, devolvidos. Retirados, lidos, devolvidos. Foi assim por anos, até eu começar a trabalhar e poder comprar meus próprios livros, revistas e jornais.

A maravilha que ia salvar o mundo
Foi por isso que, quando a internet surgiu, minha cabeça explodiu. Ter acesso a toda informação que quisesse, praticamente de graça e a qualquer momento era fascinante demais. Nos meus primeiros meses de acesso, virei madrugadas lendo milhares de coisas e também consumindo muita pornografia, porque não sou hipócrita de negar isso.

Criei diversos blogs aos longo dos anos para compartilhar ideias, debater conhecimentos, falar sobre coisas interessantes. Seguia com atenção diversos outros blogs e me entusiasmava com o que publicavam. Lia jornais, tentava esticar meus rudimentos de língua inglesa acessando sites estrangeiros e diante de qualquer coisa que não conhecia e a curiosidade se assanhava, corria para a internet pesquisar. Era a festa da informação e eu era muito, muito feliz por estar vivendo aquilo.

É inegável que havia, naquela minha euforia, um caminhão de inocência. Acreditava de verdade que as pessoas ficariam mais inteligentes, mais bem informadas, mais conectadas com a realidade e com o mundo. Mas isso não aconteceu.

Um tapa na cara
Foi há poucos anos que tomei um tapa na cara. Na época, eu já me ressentia de ver as pessoas com acesso à internet não fazendo bom uso dela. Mas a realidade desse tapa na cara me deixou desnorteado por expor minha ignorância e minha ingenuidade. Não lembro agora o programa nem o entrevistado. Sei apenas que era um especialista em comportamento e estudioso do fenômeno da internet.

Ele disse que já estava comprovado que o simples fato de o acesso à informação ter sido facilitado pela internet não fizera as pessoas mudarem seus comportamentos em relação à busca por informação e conhecimento.

Afinal, livros, jornais, revistas de qualidade e bons programas de televisão sempre existiram e a maioria das pessoas nunca se interessou por eles. Por que seria diferente com a internet? Quem sempre se interessou por revista de fofoca, só usaria a internet para consumir o mesmo tipo de bobagem. Quem sempre assistiu Faustão e Gugu iria usar a internet para consumir mais coisas do tipo. Cada pessoa se comportaria na internet do mesmo modo que se comportava antes dela, buscando as mesmas coisas, fossem elas úteis ou inúteis.

A desgraça iria piorar
Ao se adicionar a isso o surgimento de redes sociais como Facebook e de aplicativos de mensagem como Whatsapp, tudo ficou ainda pior. Se antes era preciso tomar a iniciativa de buscar por algo na internet, essas redes trouxeram a passividade ao extremo. Agora, você é impactado por todo tipo de bobagem de forma passiva. E, pior, a única ação que toma é a de passar adiante. Não pesquisa para saber mais ou para descobrir se o que está vendo é verdade ou não. Nós nos tornamos absolutamente bovinos no uso da internet e das redes sociais e, por isso, desperdiçamos todo seu potencial.

É assim que chegamos à eleição da Bolsonaro, que é a representação do mais errado possível que a internet poderia ter dado aqui no Brasil. Uma eleição que dou como quase certa e que se baseia exclusivamente na ignorância compartilhada, na mentira disseminada, na contaminação de qualquer chance de debate sério por uma enxurrada de ódio e imbecilidade nunca antes vista.

A internet, que poderia ter sido a salvação de nossa ignorância, se tornou o maior pesadelo de nossa propensão à estupidez, ao obscurantismo, à falsidade, ao ódio, ao preconceito. Pois é nela, na internet brasileira, que ideias incomensuravelmente imbecis se propagam.

São exemplos disso afirmações convictas que não fazem o menor sentido, tal como ameaça comunista, nazismo de esquerda, ideologia de gênero, volta da ditadura, plano Ursal, políticos a favor da pedofilia e uma infinidade de notícias falsas que até já resultaram no trágico linchamento de uma mulher inocente. Tudo isso faz parte do dia a dia de interações digitais de milhares de pessoas que, sem refletir, repassa como verdadeiras mentiras absurdas.

A internet deu muito errado no Brasil. Ela poderia ter sido nossa salvação, mas se tornou um imenso buraco negro que suga para seu interior qualquer possibilidade de esclarecimento e luz.

Era muito melhor quando só tínhamos a Barsa.

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Rogério de Moraes
Redação Crítica

Contar um pouco do mundo por meio de histórias que precisam ser contadas