O dia em que me tornei humano

Rogério de Moraes
Redação Crítica
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5 min readOct 25, 2018

por Rogério de Moraes

Chegou o momento de contar uma das histórias mais tristes da minha infância. Uma experiência que me marcou profundamente, a ponto de ser um dos alicerces de quem me tornei hoje.

Era muito cedo. Sei disso porque o sol, quando raiava em certa época do ano, ofuscava os olhos de quem atravessava o corredor do quintal onde morávamos todos. Eu tinha oito anos.

Minha mãe, minha avó, minha tia e eu estávamos indo visitar uma família de conhecidos que moravam longe. Viagem longa, dois ou três ônibus, da periferia da zona norte de São Paulo rumo a uma periferia ainda mais periférica, talvez uma cidade próxima, como Arujá. Talvez. Aos oito anos, nunca se sabe exatamente onde se está indo com os adultos.

Do trajeto lembro pouco. Sei apenas que, quando chegamos, o sol já estava alto.

Sem telefone

Talvez algumas pessoas não entendam, hoje, essa coisa de visitar pessoas como se fazia antigamente. Especialmente os mais jovens ou os que nasceram em famílias com mais recursos. Acontece que, antes da popularização celular, houve um tempo em que quase ninguém tinha telefone em casa.

Uma linha telefônica custava tão caro que era considerada um investimento, algo acessível apenas para famílias de classe média.

As pessoas mais humildes costumavam se visitar sem avisar. Simplesmente apareciam. E sempre eram bem recebidas, porque a hospitalidade, em qualquer circunstância, era um valor absoluto, um traço de caráter.

Naquele tempo, ao menos entre a gente em meio à qual cresci, visitar alguém era clara demonstração de carinho e de amizade. Era uma prova de interesse autêntico pela pessoa. Visitava-se para saber notícias, ouvir seus problemas, compartilhar algum riso, algum drama, alguma vida.

Por isso, ser visitado era motivo de grande alegria e também de certas formalidades não escritas. Era dever de quem era visitado servir às visitas almoço ou café da tarde ou janta. Receber significava sempre compartilhar. Qualquer coisa diferente disso seria motivo grosseria ou de vergonha.

Sem asfalto

Após descer do ônibus, lembro que andamos bastante sob o sol. As ruas eram todas de terra e as casas ficavam distantes umas das outras. Casas inacabadas, sem reboco, sem muros, sem cercas, sem portão. Algumas até sem portas. Todas como que fincadas no meio de terrenos de terra batida.

Achamos à casa que procurávamos. Morava lá um casal de meia idade e um senhor mais velho. Depois da recepção calorosa, dos abraços e da alegria, nos sentamos à mesa modesta, onde o senhor mais velho, provavelmente adoentado, fazia sua primeira refeição do dia. Foi quando percebi uma hesitação e um constrangimento geral. Algo ali não estava certo e a família da casa não escondia certa vergonha.

O senhor mais velho comia em um copo americano. Com uma colher. Uma mistura de café e farinha branca. Nada mais.

Lembro do modo envergonhado com que o fazia. Lembro do modo envergonhado com que a mulher nos contou que eles estavam há dias se alimentando apenas daquilo. Café e farinha branca. Era tudo que podiam comprar naquele momento.

Do colo de minha mãe, sentada à mesa, meus olhos introvertidos de criança calada cruzaram com os olhos tristes daquele senhor. E mesmo sem entender direito, aquilo me doeu profundamente.

Também notei que, durante o relato da mulher explicando a situação pela qual passavam, minha mãe, minha tia e minha avó trocando olhares. Ao final, perguntaram onde ficava a venda mais próxima. Iriam providenciar um almoço.

No caminho da venda

Não tínhamos muito dinheiro. Naquela época, saía-se de casa com o da condução e apenas algum extra para emergência, que era sempre pouco. Mesmo assim, cada uma daquelas três mulheres da minha família abriu mão de seu pouco para que esse pouco virasse um pouco mais e, juntando, foi possível levarmos arroz, feijão, carne e macarrão.

Foi naquele instante que, muito antes do vocábulo, aprendi na prática o significado da palavra solidariedade.

No caminho, minha mãe se voltou para mim. Com uma delicadeza rara para as relações sempre ásperas de nossa família embrutecida pela vida, me explicou que, naquele almoço, todos nós deveríamos comer bem pouco para que pudesse sobrar mais comida para as pessoas que moravam na casa, que elas precisavam daquele alimento mais do que a gente.

Essa fala de minha mãe para mim me trouxe alguma angústia. Porque eu queria, queria muito, que ela soubesse que eu sabia. Queria dizer que entendia o que estava acontecendo, que não tinha nenhuma intenção de comer muito mesmo antes dela me pedir isso. Queria, acima de tudo, dizer o quanto eu estava orgulhoso por elas estarem fazendo aquilo, dizer que eu entendia, que também me solidarizava, que também queria que ela sentisse orgulho de mim por ser uma pessoa solidária. Por ser uma pessoa boa.

Porém, a falta de articulação de uma criança, ainda mais uma criança introvertida, impedia que eu expressasse plenamente o que se passava no meu íntimo e aquilo me frustrou profundamente por alguns instantes.

Almoçamos

Almoçamos todos e sobrou bastante comida. Lembro da dona da casa insistindo para que repetíssemos o prato. Era uma insistência sincera, da hospitalidade de quem tem pouco, mas faz questão de compartilhar com quem visita.

Quando fomos embora, deixamos para trás uma família em estado de muita pobreza e eu levei comigo uma das experiência mais dolorosas da minha infância.

Solidariedade

Ao longo de minha vida contei essa história para poucas pessoas. Lembrá-la me doi muito. Choro. Aquele foi meu primeiro contato com a fome. O primeiro contato com o que, adulto, saberia que se chama insegurança alimentar. Viver em insegurança alimentar é não saber de onde e quando virá sua próxima refeição. Milhões de pessoas no Brasil e no mundo vivem na insegurança alimentar.

Alguma vez você ou seus filhos passaram pela experiência de não saber quando fariam a próxima refeição? Você consegue imaginar o que é isso?

Um ser político

Conto esta história porque ela é uma das pedras fundamentais da minha formação como ser humano. Muitos anos depois desse episódio, ainda jovem, me vi sendo um ser não apenas humano, mas um ser político. Como todos somos, percebamos ou não.

Muito jovem, este ser político entendeu o que era ser de esquerda. Porque diante daquela experiência de infância (e depois, entendendo sua origem proletária) entendeu que não poderia ter outra posição na vida. Porque como disse certa um homem digno: ser de esquerda é uma posição filosófica perante a vida onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo.

Eu entendi isso aos oito anos de idade compartilhando comida com quem tinha fome.

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Rogério de Moraes
Redação Crítica

Contar um pouco do mundo por meio de histórias que precisam ser contadas