Dungeons & Dragons vs Dungeon World

Ou por que Dungeon World substituiu D&D como meu principal RPG de Fantasia Medieval

Kazz
Role-Playing Game

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D&D dispensa apresentações. Não é só o primeiro RPG criado, como é o mais popular (no entanto atualmente não é o mais vendido). Já Dungeon World é um RPG indie, um hack do premiado Apocalypse World, que pega suas premissas e as mistura com D&D.

A primeira vista os dois jogos podem parecer bastante semelhantes. Mesma temática, mesmas classes, mesmos atributos. Porém são essencialmente distintos, e é dessa diferença que pretendo falar. Mas vale frisar que meu intuito não é pichar o clássico jogo de fantasia, apenas compará-los e dizer o porquê hoje em dia prefiro um ao outro.

Como base de comparação usarei o D&D 3.x que foram as versões que mais tive contato. Mas acredito que muitas das críticas feitas podem ser aplicadas tanto as versões anteriores como posteriores.

Livros

Sem dúvida os livros de D&D são belíssimos. Capa dura, belas ilustrações, ótima diagramação e uma leitura bastante agradável. Mas para se jogar são necessários três livros, que são grandes, pesados e principalmente, caros.
Nesse ponto DW sai na frente, tendo apenas um livro básico, que apesar de não tão belo e bem diagramado quanto os de D&D é muito funcional. Além disso, depois que você lê-lo uma vez, raramente precisará consulta-lo posteriormente. Praticamente toda informação útil será encontrada nas próprias fichas de personagens e mais algumas tabelas de movimentos. Isso o torna muito prático, evitando aquelas longas consultas que quebram todo o ritmo de uma sessão de RPG.

Personagens

D&D é vendido como um RPG heroico, e em algum momento de fato o é, mas o início de campanha, com aventureiros de nível 1 não tem nada de heroico. Os personagens começaram realmente muito fracos e isso acaba causando alguns problemas mecânicos e ficcionais.

Em DW os personagens, mesmo de nível 1, são heróis, começando com a premissa de que não são apenas mais um guerreiro, mais um ladrão, mais um clérigo, e sim O Guerreiro, O Ladrão e O Clérigo. Eles não são mais fortes apenas mecanicamente, mas dentro da ficção e cabe ao mestre passar essa percepção a eles.

Background

Nos livros básicos de D&D essa parte de background dos personagens é muito pouco explorada. Não há dicas ou direcionamento para os jogadores sobre como explorar melhor o passado de seus personagens. Claro que nada impede o mestre e os jogadores de trabalharem nessa área, mas na prática, na maioria das mesas os personagens são apenas um punhado de números.

E mesmo que os jogadores se esforcem para construírem bons backgrounds o fato dos personagens de nível 1 começarem tão fracos acaba sendo um grande empecilho. Do que adianta você dizer que seu mago estudou a vida inteira nas Altas Torres de Magia se ele só é capaz de conjurar um míssil mágico e torcer para não ser focado em combate?

E um dos aspecto que DW brilha é esse. Seu sistema de vínculos trata com maestria aquela velha questão sobre os personagens já se conhecerem ou não. E isso é feito dentro da sessão de jogo, sem preparação prévia.

Sua premissa de perguntas, além de criar belos backgrounds de forma orgânica e relevantes para campanha/aventura de jogo, acaba incluindo mesmo aqueles jogadores mais tímidos e considerados pouco criativos.
Com um sistema de criação de personagens bem simples e rápido, sua mesa terá um grupo de personagens únicos e interessantes, muito além de números, feats e skills.

Inicie como um fracote, termine como um Deus

Como disse antes, em D&D os personagens no início são muito fracos. Tudo é um desafio para os personagens de 1º nível. No entanto, nos níveis mais altos os personagens são praticamente semideuses.

Em nível 18-20 os personagens se tornam super-heróis, dignos de grupos como Os Vingadores e A Liga da Justiça. Mesmo pequenos exércitos não fazem frente a um grupo de 4 ou 5 personagens desses.

Personagens otimizados

Esse início borocoxô acaba incentivando que os jogadores otimizem a construção mecânica de seus personagens. Isso resultou em personagens bastante parecidos, com as mesmas combinações de habilidades, talentos, periciais, armas... Tudo pra alcançar um melhor aproveitamento do seus personagens.

O problema vai além, D&D 3.x virou uma verdadeira corrida armamentista com cada suplemento lançado trazendo novas classes de prestigio, talentos, habilidades e itens mágicos.

Não é raro ver gente relembrando seus personagens marcantes, e ao invés de falarem de sua personalidade, feitos interessantes ou belos diálogos, falarem de seus números, combos e equipamentos mágicos.

Combate

D&D possui um combate tático muito legal, também bem pudera, nasceu de wargames. Toda esse potencial estratégico dos combates já me chamou muito a atenção, mas seus vários defeitos me desgastaram.

Miniaturas

Não me entendam mal, miniaturas são muito legais e acrescentam bastante ao jogo, mas por outro lado, pela minha experiência, também subtraem.

O fato de existir miniaturas e uma matriz de combate acaba, muitas vezes, limitando nossa imaginação. Começamos a enxergar o combate de forma mecânica e não ficcional. Pensamos em franquear, investida, bônus de ataque e deixamos a criatividade de lado.

DW não dá suporte a miniaturas e isso obriga mestre e jogadores a visualizarem o combate apenas em sua imaginação. Isso incentiva muito a criatividade para situações inusitadas fora do usual. Mais criatividade, menos combate pasteurizado.

Resultados binários

D&D e muitos outros RPGs, salvo raras exceções, só permitem dois resultados em seus testes de combate: você acerta ou você erra. As vezes sai um acerto critico ou um falha crítica que podem trazer algumas situações inusitadas, mas essas rolagens são bem mais raras.

Em DW temos três faixas de resultados: a falha, o sucesso intermediário e o sucesso completo. A primeira vista pode não parecer muito mais, mas para cada faixa atingida nos dados uma infinidade de situações e consequências podem surgir de acordo com o mestre e as escolhas dos jogadores.

Isso não traz só dinamismo ao combate em DW como também emoção. As batalhas são lembradas por suas diversas reviravoltas dentro da ficção e não somente pelo double damage ou trespassar aprimorado.

Os jogadores são obrigados a fazerem escolhas difíceis ou se veem em situações inusitadas que só pioram. Falhou uma magia? Talvez você tenha despertado uma fera inominável ao invés de só esquecê-la. Errou a flechada? Acho que só sobrou uma na sua aljava, e agora?

Ciclo tedioso

Não foram poucas as vezes que um combate que prometia ser emocionante se tornou extremamente tedioso nos jogos de D&D que participei.

Principalmente em combates com muitos indivíduos envolvidos e/ou com muitos ataques por rodadas o que começa com descrições criativas de como aquele personagem sacou sua espada e tentou cortar o orc decorre com um ciclo de “ataco; errei; próximo; movimento; ataco; acertei; rolo dano; próximo”.

Depois de horas jogando muitos mestres e jogadores cansam de descreverem o que seus personagens estavam fazendo e acabam sintetizando tudo em simples palavras de comando, até por que as descrições na maioria dos casos tem pouco ou nenhum impacto na ficção. Não importa se seu guerreiro usou sua espada pra perfurar ou cortar, se cortou na vertical ou horizontal, isso não muda nada.

O combate em DW costumam ter uma duração muito menor e são mais dinâmicos por N motivos e como são pautado inteiramente na ficção a descrição dos combates importa e importa muito. Então isso dificilmente será algo negligenciado.

Sem turnos, sem transição

Não é incomum em grande partes dos RPGs ao se deparar com um combate o jogo entrar numa espécie de “modo especial” onde as regras mudam, a passagem do tempo muda, uma matriz de combate aparece, e etc. Tanto que muitos RPGs eletrônicos, principalmente os antigos, entravam nesse modo de batalha (ah, a musiquinha irritante de Final Fantasy).

DW se destaca por não haver transição alguma entre uma situação, por exemplo, de exploração para uma de combate. Nada vai mudar. Sem teste de iniciativa, sem teste de surpresa, sem matriz de combate, sem turnos. O jogo continua fluindo da mesma forma que em outros tipos de cenas.

Ficção, Ficção, Ficção

Eu já disse e repito: DW coloca a ficção acima de tudo. Suas mecânicas são feitas para atuarem em segundo plano sustentando a ficção. Por isso jogadores devem evitar ao máximo usarem a mecânica para descreverem as ações de seus personagens. Nada de “faço um ataque investida para ganhar um bônus de +2”. Ao invés disse os jogadores devem descrever exatamente o que os personagens fizeram (ou tentaram fazer) e então o mestre usando essa descrição deve julgar em qual movimento a ação se encaixa em termos mecânicos e então descrever seus resultados ficcionais. Em DW sempre se começa e termina na ficção, a mecânica é o meio, nunca início ou fim.

Pode não parecer uma diferença tão grande, mas na prática esse conceito é realmente impactante.

Criação colaborativa

Em DW o trabalho de contar a história não fica todo sob os ombros do mestre, ele é divido com os jogadores. Uma de suas premissas é de sempre deixar espaços em suas criações para os jogadores completarem. Seja a masmorra, a cidade ou a personalidade do Rei.

Esse poder nas mãos dos jogadores e essa falta de controle do mestre pode parecer assustador à primeira vista, mas não só torna as coisas extremamente divertidas como é muitas vezes libertador para o mestre e satisfatório para os jogadores.

Os jogadores perguntaram como é aquela vila vizinha que você não pensou com antecedência (e talvez nem deva). Ok, devolva a pergunta para eles: “não sei, o que vocês ouviram falar sobre ela?”

Onde o railroading não tem vez

Mestres acostumados a aventuras bem planejadas onde as decisões dos jogadores seriam apenas ilusórias terão que deixar seus velhos conceitos de lado para jogar Dungeon World. Mas não se arrependerão disso.

Para jogadores a oportunidade de interagirem não só com o cenário criado pelo mestre como criado por eles mesmo é bastante satisfatória. Realmente suas decisões terão peso real sobre a história e seus personagens serão conectados ao cenário de maneira muito mais orgânica do que a maioria dos backgrounds criados com antecedência.

Conclusão

É difícil explorar todos os pontos sobre o porquê de preferir Dungeon World, mas espero que com isso convença um ou dois a experimentarem o jogo. Não espero que ninguém largue o D&D (ou seja lá qual seu RPG de fantasia medieval favorito), mas dê essa oportunidade ao jogo.

Mas para resumir meu ponto, o que mais pesou na substituição foi o peso da ficção. Ao fazer uma retrospectiva dos meus jogos de D&D vi que muitas lembranças marcantes (mais do que eu gostaria) eram sobre rolagens de dados e builds de personagens. Ou seja: eram sobre mecânicas e não sobre histórias.

Acredito que a essência do RPG seja sobre contar e viver historias e não sobre números num papel ou rolagens de dados. E acho que o D&D acabou desvirtuando-se dessa essência com o passar das edições.

Obviamente há coisas em DW que me incomodam também (como o sistema pseudo-vanceano de magia) assim como há ainda mais coisas que me incomodam em D&D (dependência de equipamento e itens mágicos que os personagens tem), mas quando coloco tudo na balança D&D me parece cada vez mais distante do que eu gostaria de jogar numa mesa de RPG.

Em tempo vale fazer algumas pontuações

Alguns podem contra argumentarem alguns pontos dizendo que não jogam assim ou assado. “Depende do grupo”. É redundante dizer que cada grupo de jogo é diferente. Mas ao julgar um RPG não posso levar em conta as variações desse ou daquele grupo, essa ou aquela house rule, só posso julgar o que está em seus livros.

“Ah, mas isso não está livro”. Sim, nem sempre os livros são muito claros sobre como seus autores idealizaram seus jogos (e aqui mais um ponto pro DW e outros muitos RPGs indies). Mas a própria estrutura dos livros acabam empurrando os jogos para um lado. Veja bem, se o manual básico do seu RPG diz que é um jogo sobre intrigas e manipulações (quem lembrou de GoT levanta a mão), mas dedica apenas 10 páginas a esse aspecto e 100 para o combate físico não espere que os jogos sejam, em sua maioria, sobre intriga e maquinações pois não serão.

Por último, talvez esse artigo leve a outra discussão que seria “O sistema importa?”. Bem, aí fica pra próxima. Mas já adianto: SIM, IMPORTA!

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