As mãos de José Aguiar, quadrinista curitibano, em ação | (Foto: Lex Kozlik)

A Infância de José Aguiar

Conheça José Aguiar, o protagonista dos quadrinhos curitibanos

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
7 min readDec 10, 2016

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“Sério!? Este cara aqui do meu lado é desenhista do Homem-Aranha!? Este outro, do outro lado, desenha os Transformers!? Este outro desenha O Gralha, O Super-Herói Curitibano?”

De acordo com o quadrinista José Aguiar, quando as pessoas descobrem que têm gente fazendo quadrinhos no Brasil, em Curitiba, ao lado delas, elas ficam loucas.

José Aguiar em seu estúdio | (Foto: Lex Kozlik)

A descrença de que alguém ao seu lado desenha HQS “faz parte de um complexo da nossa infância que tem que ir embora”, argumenta ele, não explicitando se o complexo se refere à infância pessoal e intransferível de cada um—de achar que quadrinhos são coisas de crianças—ou à infância do país—de achar que quadrinhos são coisas de estrangeiros.

Seja como for, é a primeira vez, de uma série de várias, que a palavra infância aparecerá na conversa. “Fomos criados para acreditar que coisas boas vêm de fora.”

Pois bem aqui do lado, no Capão da Imbuia, nasceu, numa casa sem livros, na década de 1970, o personagem desta matéria.

“Não tem quase nada ali até hoje, mas eu consegui, graças aos quadrinhos, abrir muitos caminhos.” Palavras de Aguiar, cuja rotina da família era sair de casa cedo, voltar tarde, assistir TV e dormir. “Tudo que eu tinha era a televisão.”

Foi por meio dela, da TV, que o quadrinista começou a ver os seriados de super-heróis que passavam no final dos anos 1970. Começou a se interessar por desenhar aqueles personagens. “Eu queria copiar o logo, os veículos, o seriado.”

De novo, as mãos de José Aguiar em ação | (Foto: Lex Kozlik)

Só que as imagens, em movimento, passavam muito depressa. O menino Aguiar não tinha tempo suficiente para memorizar, absorver as coisas todas que queria desenhar. Então, migrou para os gibis. Assim, podia parar, olhar, contemplar. “Normalmente, eu não ganhava o gibi que eu tinha pedido. Mas ganhar já era um bom começo.”

Foi pela TV também que o curitibano descobriu a Gibiteca, aos 15 ou 16 anos. O plot point, o ponto de virada da sua vida. Nessa época, Aguiar já fazia fanzines, jornal na escola, e publicava tirinhas na Gazetinha, o encarte da Gazeta do Povo para crianças.Mas ainda não criava suas próprias histórias. Faltava leitura, experiência, maturidade, repertório. Adquiriu com a Gibiteca.

De acordo com Aguiar, o estereótipo versa que quadrinhos são para crianças. Mas ele descobriu boa parte do mundo adulto nos quadrinhos. “Eu amadureci muito lendo HQ, muito mais que os amigos que foram obrigados a ler literatura clássica no colégio e detestavam.” Ele não. Tinha prazer, porque sabia que estava adquirindo vocabulário. “Minha infância foi esquisita neste sentido, tinha esta paixão muito grande.”

“Eu amadureci muito lendo HQ, muito mais que os amigos que foram obrigados a ler literatura clássica no colégio e detestavam.” (José Aguiar)

Por teimosia ou por falta de outras perspectivas, sonhava—sabia?—desde pequeno que seria um autor de quadrinhos. Dono de um traço pessoal, José Aguiar foge dele sempre que possível. “Cada projeto tem uma cara própria. Busco um estilo que case com a proposta da história. Vou experimentando novas técnicas, novas formas de narrar.”

Desta forma, podemos encontrar obras dele em aguada, nanquim, pincel, grafite e digital. “Nos quadrinhos, há uma tendência grande por esta última. Mas eu gosto de usar o grafite, da casualidade que vem do encontro com o papel. A mancha que surge, seca e muda de forma.”

Seu caminho é o da busca estética, da reinvenção, da pesquisa. “Tenho este lado inquieto, de me reinventar a cada trabalho. O dia que eu me achar um bom desenhista ou um bom escritor, eu serei medíocre.”

Foi na mesma Gibiteca, descoberta na televisão por Aguiar, que ele promoveu, anos depois, a primeira Gibicon, a feira curitibana de HQS, transformada em Bienal este ano.

Quando ele e outros colegas quadrinistas criaram o evento, havia um receio da aceitação que ele teria. Ao mesmo tempo, tinham a convicção de que Curitiba tinha vocação para os quadrinhos. “E comprovamos esta teoria”, afirma.

É verdade. Tanto que a última edição da Gibicon levou ao evento 15 mil pessoas. Tanto que, no último ano, todas as grandes livrarias de Curitiba ganharam uma sessão de HQS. Tanto que a primeira sessão do projeto Cena HQ [projeto de encenação tratral de histórias em quadrinhos] realizada em 2012 tinha apenas quatro pessoas na plateia, mas ao longo dos quatro anos de duração o evento foi crescendo, lotando o teatro e deixando gente para fora. Tanto que, das quarenta leituras dramáticas de história em quadrinhos realizadas nestes quatro anos do projeto, apenas quatro foram estrangeiras e muitas, dentre as nacionais, curitibanas.

Este projeto, desenvolvido em parceria com a companhia teatral Vigor Mortis, de Paulo Biscaia Filho, consistia em leituras dramáticas de histórias em quadrinhos, realizados mensalmente no Teatro da Caixa. “O Paulo era curador teatral, eu, curador das HQS”, explica José Aguiar.

Para além de sua produção artística, o quadrinista é um relevante agente cultural da cidade. Cena HQ é um, dentre tantos projetos, que ele realizou.

A própria parceria com a Vigor Mortis é bastante profícua. Com ela, o quadrinista desenvolveu também uma interação visual e cenográfica para o espetáculo Graphic e desenvolveu uma narrativa trasmidiática—aquelas em que diferentes partes de uma mesma história são contadas em diferentes linguagens. “O começo da saga é uma peça, o meio da história é em quadrinhos e o final é um filme.”

José Aguiar, desenhando em seu estúdio | (Foto: Lex Kozlik)

Além disso, José Aguiar possui sua própria editora, a Quadrinhofilia, e realizada todo mês, nas Livrarias Curitiba, o Ciclo de Quadrinhos, realizando palestras sobre lançamentos cinematográficos relacionados ao universo das HQS.

“E eu ainda faço muito pouco, perto do que eu gostaria”, revela ele. Mas pondera: “De qualquer forma, não tenho a pretensão de ser o poderoso chefão dos quadrinhos curitibanos, de estar por trás de todos os projetos. Fazer os meus é mais importante.”

“Quadrinho, aliás”, volta à infância José Aguiar, “tem um diminutivo no nome que faz mal enquanto linguagem. Quando a tente é criança, há um prazer na leitura destas histórias que que se perde na idade adulta. Só que a infância, apesar de passar, não nos deixa. Quando me tornei pai, passei a relembrar da minha através do meu filho. Como se eu tivesse neurônios mortos que ressuscitassem de repente.”

Com base nesta análise e nessa convivência com o filho, José Aguiar descobriu que ser criança é uma coisa mutável, diferente de época para época. “Como era quando meus pais me tiveram, em 1975? E quando meu pai nasceu, em 1927, há quase um século? E como era antes disso? Vamos voltar no tempo.”

Foi assim que nasceu A Infância do Brasil. Uma web comic em seis capítulos, publicada on-line, em que o autor passeia pela história do país para descobrir o passado, a fase mais importante da vida. Quis recontar a nossa história por um viés que nunca ninguém fez.

Na obra dele, a história do Brasil é contada a partir de momentos pontuais na vida de crianças, desde a colonização até agora. O século XVI, por exemplo, é a história de um parto, remetendo ao nascimento do próprio país.

“Eu sempre gostei de História, mas nunca da História como a vi. Me interessava a questão humana, a vida privada das pessoas. Eu não preciso falar de Zumbi [dos Palmares], Antônio Conselheiro, Tiradentes. Eu falo de escravos anônimos, crianças abandonadas, crianças de rua.”

O artista, que tem o estranho hábito de ouvir podcast sobre cinema, arte ou política enquanto desenha, coloca a cidade em sua obra de forma um pouco menos óbvia, ufanista ou icônica do que se costuma ver por aí.

“Quem disse que eu não posso criar histórias que se passam em Curitiba sem ser ridículo? Eu posso fazer histórias muito legais, com espontaneidade, sem ser turístico. A Malu [personagem de Folheteen] não precisa estar no MON em uma página, na Catedral na outra e no Jardim Botânico na seguinte. Mostro Curitiba na sutileza, no grafite da parede, no design do ponto de ônibus.”

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.