Foto: Divulgação — Airbnb

A Revolução Tecnológica

Estar no mundo é pertencer: a geração que trocou o ter pelo compartilhar.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
8 min readDec 11, 2016

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Carregado de conceito e simbolismo — uma característica bem positiva das empresas e logomarcas nesta era das startups — , o logotipo da Airbnb significa pertencimento. Uma das pretensões da empresa é ser reconhecida como a marca símbolo do nosso tempo, como foram Coca-Cola, Nike e Apple recentemente. Tendo em vista o rumo positivo que a vida privada das pessoas na contemporaneidade anda tomando, será bem possível que seja assim.

Diferentemente do imperialismo capitalista, da emblemática hegemonia corporativa que a consolidação dessas marcar trouxeram e significaram, a identificação e o reconhecimento da Airbnb como símbolo de uma geração — a geração startup, a geração da Revolução Tecnológica — significará, historicamente, algo muito maior. Representará a ruptura de uma geração com boa parte dos valores que nos oprimem desde as épocas da Revolução Industrial e da Revolução Francesa.

Se os ideais de liberdade defendidos a partir de 1789, os “francesismos”, de fato correram o Ocidente pelas décadas e pelo século a seguir, rompendo com o paradigma Medieval que se estendia pelo lado canhoto do planeta, o fizeram de forma muito paradoxal e, ironicamente, nada libertária. Por conta de outra Revolução contemporânea à época, a Industrial, o resultado cotidiano na vida das pessoas acabou em outra prisão: a da engrenagem dos Tempos Modernos de Chaplin.

Carlitos (Charles Chaplin), em cena clássica e icônica do filme "Tempos Modernos" (Dir.: Charles Chaplin— EUA, 1936) | (Imagem: Reprodução)

Se é certo e inegável os avanços em relação à mudança de Estado, do absolutismo para uma Constituinte, na prática cotidiana o que se viu foi a troca das grades dos feudos pelas grades das fábricas: horários rígidos, pouco sono, trabalho em série. Um conceito limitado de liberdade. Mas para um povo ao qual não havia nenhuma alternativa de vida, senão um fardo, poder escolher entre duas coisas — o feudo ou a fábrica — já era, pelo menos, alguma escolha.

Com a evolução da indústria, o setor cresceu, a atividade foi se complexando e o mundo mudando: vieram os CNPJs, os departamentos administrativos, jurídicos, de RH, de marketing, SAC, ouvidoria, mídias sociais, etc, etc, etc. As pessoas também foram se tornando mais complexas e exigentes. Algumas, ocuparam as cadeiras destes setores mais complexos e, com isso, sentiram-se mais livres do que aqueles que continuavam apertando parafusos em série. Ledo engano. Estes funcionários também continuaram vítimas dos horários comerciais e das horas de rush — herança direta da Revolução Industrial — , do relógio ponto e da produtividade.

Na história recente, ainda que os hippies tenham tentado, com um leve sucesso, apresentar alternativas a esses valores na década de 1970, o grito foi abafado. Especialmente no Brasil, a ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1985, mais a democracia manca e a economia hiper-inflacionária que vieram depois, limitaram e pasteurizaram nossos desejos, sem que nos apercebêssemos. Por aquela época, estávamos todos muito ocupados em sobreviver, vendendo o almoço para comprar a janta. Com receio que a inflação subisse tanto durante a tarde, às vezes comprávamos o jantar logo depois de vendido o almoço e o comíamos frio à noite, medrosos de que o dinheiro de um já não fosse suficiente para comprar o outro.

No obscurantismo do Brasil ditatorial e até recentemente, com o advento e a popularização da internet, informação também era privilégio (embora, agora, o excesso dela também seja causa de muita confusão). E foi assim que, desde a década de 1950, quando a classe média colocou a TV na sala como símbolo de status — eram poucos que podiam comprar o aparelho — e não a tirou mais, mesmo quando ela já não fazia sentido, tudo se empobreceu de vez: as pessoas deixaram de ler — muitos ainda nem sabiam — , passaram a ver o mundo com a superficialidade maniqueísta das novelas e dos telejornais — “mocinho e bandido”, “cidadão de bem X bandido bom é bandido morto” — e a ver o mundo como voyeurs. A qualidade ruim das estradas, a elitização das passagens aéreas e a derrocada da situação econômica faziam com que, realmente, viajar fosse para poucos. Víamos o mundo pela sala de TV. Ninguém pertencia à nada, senão a ela: a sala de TV.

Imaginávamos o glamour do dia a dia de atores e atrizes como se eles fossem mais do que meros operários de uma empresa de entretenimento. Mais do macaquinhos adestrados, muito bem pagos para o exercício de suas funções. Víamos a semana do presidente resumida aos domingos na TV como se ele ainda fosse apenas um monarca absolutista. Ouvíamos as ordens imperativas dos comerciais — compre, pague, ouça, beba, leia, veja — e criávamos desejos em cima de nossas necessidades. E agora, no final desta era, ainda damos uma “espiadinha” numa Casa Grande, sem senzala, mas com muito escravo diante da telinha. Tudo sem pertencer.

"Jeito velho, jeito novo" | (Imagem: Reprodução)

Quando Platão elaborou sua Alegoria da Caverna, na Grécia, dizia que os homens estavam separados do mundo exterior por uma caverna, e que não viam, do mundo real, senão as sombras dele projetadas numa parede, por estarem acorrentados de costas para a entrada. O filósofo estava falando de simulacro.

É irônico pensar que, hoje em dia, milênios depois, já nem precisemos mais estar de costas para o mundo. Estamos é bem de frente para a realidade, mas separados dela o tempo todo por uma tela de retina. iPhones, iPads, iMacs… O “I”, do inglês, sempre tão maiúsculo, tão imponente, transformado no que se tornou o “eu” na contemporaneidade: algo pequeno, oprimido, sem poder de escolha. Dedo em riste, indicador estendido em telas de retina, ponta vermelha, ET querendo voltar para casa.

"E.T. phone home" — "E.T — O Extraterrestre" | Dir.: Steven Spielberg — EUA, 1982 | (Imagem: Reprodução)

Por outro lado, é através destas mesmas ferramentas que as pessoas estão percebendo suas possibilidades e aflorando o senso de pertencimento. Encontrando coisas, pessoas e lugares em outros cantos do mundo através da tela, e se materializando depois, do outros lado, para viver estas mesmas coisas, pessoas e lugares. Formando “países ideológicos”, em que se unem por afinidade, interesse, valores em comum.

A Airbnb está longe, por exemplo, da formalidade e da impessoalidade de uma recepcionista de hotel dizendo “pois não, Senhor?” quando você só se tem trinta e poucos anos. Longe do gerundismo barato e descomprometido de uma atendente de telemarketing — “estaremos efetuando a sua reserva, senhor”. Longe de um Guia Quatro Rodas, que aponta todos os restaurantes da cidade que já não precisam de apontamento porque todo mundo sabe onde ficam.

A empresa é um símbolo para as pessoas que querem experimentar um chá do qual elas nunca ouviram falar, em uma vila que elas não conseguiram encontrar no mapa, servido por alguém que tem história para contar.

O logo do Airbnb e o conceito da marca | (Imagem: Reprodução)

É um símbolo de onde vão os habitantes daquele lugar: o café que não tem nome, o boteco escondido no beco, as galerias de arte que não aparecem nos guias. É o símbolo daqueles que não querem apenas dar uma espiadinha, mas entrar na casa e na vida das outras pessoas. Símbolo daqueles que tendem a confiar no seu semelhante. Que são prudentes, mas conversam com estranhos. Entram na casa dos outros, e dormem na casa dele.

"Estamos no mapa!" | (Imagem: Reprodução)

E não é só quem gosta de compartilhar ou trocar experiências que sai ganhando. Mas quem quer usar o Airbnb para locar seus imóveis de forma alternativa à imobiliária ou ao mercado da Revolução Industrial também. Projeções da consultoria PwC indicam que a economia compartilhada, baseada no usufruto de bens e mercadorias, pode alcançar um volume estimado em US$ 335 bilhões até 2025. O Airbnb é o mais emblemático exemplo.

Existindo desde 2008, oferece mais de 2 milhões de acomodações em 190 países, incluindo castelos e casas em árvore. Em oito anos, já se tornou a maior empresa de hospedagem do mundo em faturamento e oferta, superando as gigantes mundiais do corporativismo hoteleiro. Inúmeras pousadas e proprietários de imóveis tem utilizado a Airbnb como plataforma de negócios ao invés de imobiliárias ou sistemas comuns de reservas. A taxa de aproveitamento têm sido de 90%.

A Airbnb une diretamente as pessoas que desejam anunciar seu espaço para hospedagem a milhões de viajantes que buscam uma estadia ao redor do mundo. O contato acontece diretamente entre as partes — outra característica deste tipo de serviço, a inteligência horizontal e coletiva — amparado jurídica e operacionalmente pela empresa. Em caso de “chablau”, ambos os lados, hóspede e anfitrião, são assistidos.

(Imagem: Reprodução)

De início, é como uma imobiliária: você acessa o site, consulta os imóveis disponíveis, entra em contato e efetiva a reserva. A diferença está na experiência. Além do cardápio básico da imobiliária, você pode encontrar na Airbnb anfitriões que têm perfil parecido com o seu ou que oferecem acomodações bem peculiares: um castelo, um contêiner ou uma casa na árvore. Você também pode alugar um quarto na casa de um músico, de um chef de cozinha, de um diretor de cinema ou de um jogador de futebol.

Reside neste contato direto e neste aspecto da horizontalidade e da coletividade a característica mais emblemática da Revolução Tecnológica: ela presume — ou almeja — cidadãos informados, empoderados, conscientes da coletividade, que conhecem e exercitam seus direitos e deveres, respeitam o usufruto ao bem público ou privado e autogerem-se. A si mesmos e à sociedade sistêmica.

A Revolução Tecnólogica virá tão marcante e emblemática quanto a Industrial pelos próximos anos deste século. Será representada por todas estas startups e aplicativos que agora nos encantam — Netflix, Uber, 99Táxis, Airbnb. Terá um marco inicial bem célebre: o dia em que a última das famigeradas mocinhas de telemarketing informar que "o sistema está inoperante, senhor”. E você, do alto dos seus trinta e poucos anos, levar à forra a geração da Pitty, respondendo no infinitivo: reinstalar o sistema!

Aí, é só baixar o aplicativo de novo, relogar, e começar o mundo do início.

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.