O cineasta baiano radicado em Curitiba, Aly Muritiba | (Foto: Lex Kozlik)

Aly Muritiba, Aqui Curitiba

Os filmes e a vida do cineasta baiano radicado em Curitiba, Aly Muritiba, são a melhor prova de que nem tudo é o que parece.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readNov 21, 2016

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Aly Muritiba é como os filmes dele: uma reversão de expectativas — técnica de roteiro que consiste em confrontar o espectador com um acontecimento inesperado, surpreendente, que contradiga a lógica aparente da história. Embora o cineasta seja aqui o protagonista, a matéria começa com outro cineasta (uma reversão de expectativa).

Em passagem por Curitiba, Fernando Meirelles (Cidade de Deus), um dos donos e diretores da produtora O2, em São Paulo, conversou comigo. Quando perguntado sobre o quê conhecia da produção artística curitibana, Meirelles lembrou três nomes: Paulo Leminski, Dalton Trevisan e Aly Muritiba. Leminski e Dalton eram lembranças esperadas. Muritiba foi a reversão de expectativa.

“Mas ele é baiano, não?”, indaga o cineasta. “Sim”, respondo, revertendo a expectativa de Meirelles. “Mas para todos os efeitos, é nosso”, continuo eu, nos apropriando com orgulho do cineasta baiano. “Na medida em que sua produção é daqui, é nosso.”

Aly conta que Meirelles mandou um e-mail dizendo ter visto o primeiro curta-metragem dele, A Fábrica. “Muito bom e bonito seu trabalho”, escreveu ele. “Parabéns. Legal ter alguém novo aparecendo, de um lugar que a gente nem imagina” (reversão de expectativa).

Não fica claro se Meirelles se referia à Bahia ou ao Paraná quando escreveu “de um lugar que a gente nem imagina”. Mas, tendo em vista aquela conversa que eu tive com ele, pode-se dizer que era Curitiba.

É que, com a devida simpatia, Meirelles confidenciou, naquela ocasião, ter dificuldades para lembrar das artes do Paraná. “Temos Minas, Rio, São Paulo, aí pula o Paraná e Santa Catarina e vai para o Rio Grande do Sul”, confessou Meirelles aquela vez. “Por que é que o Paraná não tem uma música forte, um cinema forte? Vocês tem alguma explicação? Vocês são muito civilizados, parecem a Suíça brasileira. A Suíça também não tem um grande músico, um grande cineasta. Faltam problemas para vocês, ninguém cria, a vida é boa”, finalizou, entre risos.

Meses depois, depois da conversa com Meirelles e antes da entrevista com Aly, assisto Para Minha Amada Morta, primeiro longa-metragem de Muritiba nos cinemas. Vejo que o filme foi finalizado na O2. Por um instante, chego a pensar que Meirelles só o conhecia por causa disso, por ter sido fornecedor dele e, talvez, o encontrado circulando pelos corredores de sua produtora.

“Não”, reverte minha expectativa o nosso cineasta, Aly, contando a história da troca de e-mail com Fernando. “A O2 é tão grande que ele certamente nem sabe nem quem está produzindo lá dentro.” E Aly vai além no que conta, ampliando as expectativas: daquele e-mail de congratulações para cá, os diretores trocaram outros e, agora, vão trabalhar juntos.

“A Globo Filmes pediu que eu enviasse o projeto de um longa, dentro no novo modelo de cinema autoral que eles estão implantando”, relata o cineasta. Aly, então, enviou um projeto, que foi analisado por Meirelles e outros dois diretores. Meirelles quis ser padrinho e tutor.

Para além da referência como cineasta, Aly diz admirar Meirelles também por sua postura. “É uma pessoa que tem uma visão bastante consciente do nosso cinema e da nossa TV, e sabe explorar essa potencialidade muito bem”, explica ele. “Tem consciência do que é ser um brasileiro, estar no Brasil, ganhar voz e, por consequência, ser ouvido por muitas pessoas.”

Aly Muritiba | (Foto: Lex Kozlik)

Aly também é assim. Sabe o que fala, e como fala. “Sempre que alguém te dá a oportunidade de falar, portanto sempre que você tem a oportunidade de ser ouvido, é preciso exercer esse privilégio com responsabilidade”, afirma ele.

“Sempre que alguém te dá a oportunidade de falar, portanto sempre que você tem a oportunidade de ser ouvido, é preciso exercer esse privilégio com responsabilidade.” (Aly Muritiba)

Para além de competente e inventivo cineasta, gosta, também como Meirelles, de apadrinhar e dar visibilidade a novos projetos, ou estimular novas oportunidades. Paralelamente à suas produções autorais, a Grafo Audiovisual, produtora dele, é a responsável pela realização do Olhar — Festival Internacional de Cinema de Curitiba.

“Quando eu tive o privilégio de viajar pelo mundo com os meus filmes, percebi que o público e os realizadores daqui não tinham a mesma oportunidade que eu estava tendo de conhecer os cineastas e realizadores dos mais diversos cantos do mundo. Isso é ruim tanto para eles quanto para mim, porque uma cena cultural só se cria através de olhares múltiplos”, conta ele, que tirou seu primeiro passaporte em 2008 para viajar com um filme seu para um festival internacional. “Mas, para que ela seja criada, é preciso uma formação do olhar, através do debate crítico, do diferente, do outro.”

O Festival passa, portanto, por este desejo de Aly e de seu sócio, Antônio Junior — também curador e co-diretor do Festival — , de se tornarem agentes e fomentadores culturais curitibanos.

Aproveitando o mote, pergunto o que, relativo à sua obra, é inerente a Curitiba, a cidade em que é produzida. Aly, que não tem respostas prontas e não se contenta em repetir clichês de efeito — característica também dos seus filmes — , não sabe fazer este julgamento.

“Se fosse uma produtora pernambucana, talvez não passássemos tanto perrengue”, analisa ele, revertendo a expectativa da resposta para além do universo artístico, revelando nisso seu pensamento mais abrangente e transversal com relação à sua produção. “Pernambuco investe 11 milhões por ano no audiovisual”, quantifica. “O Paraná não investiu isso nos últimos dez. Se eu estivesse em Pernambuco, estaria produzindo mais.”

“Pernambuco investe 11 milhões por ano no audiovisual. O Paraná não investiu isso nos últimos dez.” (Aly Muritiba)

Recife e Salvador, aliás, são duas cidades em que Aly moraria, não morasse em Curitiba. “Uma cidade litorânea, porque me faz falta o mar.” Porque é que está aqui então? Por causa da esposa. “A gente se conheceu cantando no coral da USP. Nos casamos, tivemos filho, a esposa terminou o pós-doutorado em 2004, não queria mais ficar em São Paulo, os pais dela estavam morando aqui”, então decidiram vir para cá.

Meio Eduardo & Mônica, a história do cineasta com a esposa é, novamente, uma reversão de expectativa. Ele, um garoto de 21 anos descobrindo a vida, cursando História na USP, frequentando o coral da universidade para melhorar sua performance numa banda que tinha com um dos primos.

Ela, uma cientista, mulher formada, 29 anos, gaúcha, no segundo doutorado. Foi graças ao cunhado — portanto, graças também à esposa — que o repertório cinematográfico de Muritiba melhorou.

Aly nasceu, criou-se e viveu até os 17 anos em Mairi, cidade de 19 mil habitantes no interior da Bahia, que não tinha, não teve, nem têm, teatro ou cinema. Filmes, ele só “via os que passavam na Tela Quente e a cinematografia norte-americana indicada ao Oscar e referendada pela crítica das revistas semanais brasileiras”, que alugava na locadora da cidade.

Noutras vezes, quando um cinema poeira chegava em Mairi, daqueles que se instalam pelas cidades dos interiores, Aly assistia a estes mesmos filmes, só que na tela grande. E pagava com água.

Como sua casa era a última que fazia divisa com o terreno baldio onde parques, circos e cinemas se instalavam, eles batiam à porta da família de Aly para se abastecer com água em troca de ingressos.

Quando foi embora para São Paulo, aos 17 anos, as possibilidades de consumo cultural se abriram, mas a necessidade de trabalhar e estudar o impediam de usufruir.

Morando na periferia, com os tios, continuou consumindo cultura de massa, especialmente o pagode, por conta de um vizinho fanático. “Eu tinha consciência que meu pai não teria grana para me bancar em São Paulo, nem para pagar minha faculdade. Era 1997. Não tinha ProUni, Pronatec, nada. Então, eu ou eu me matava para entrar numa universidade pública ou não ia estudar e ponto”, conta Aly.

Foi só quando conheceu o cunhado que o refinamento artístico começou. O irmão da esposa, historiador, cinéfilo, tinha tese de mestrado sobre cinema de ficção científica. Com uma grande coleção de filmes, Aly começou a ver Expressionismo alemão. Até então, nunca tinha visto sequer cinema mudo. O cunhado lhe presenteou também com a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, graças a qual o cineasta começou a ver alguns títulos nacionais.

Desta forma, quando entrou na Faculdade de Artes do Paraná (FAP) para cursar cinema, o repertório já tinha melhorado. Um pouco.

“Eu tinha algumas referências, mas eram pequenas em relação aos demais. No primeiro dia de aula, quando perguntaram por que fazíamos cinema, os colegas diziam: hó… porque quando eu tinha 12 anos, eu vi um filme do Bergman!. Outro: ah… porque eu gosto da trilogia das cores do Kieslowski!. Eu pensava: quando chegar a minha vez eu estou ferrado, porque eu não sei nem soletrar este nome”. Risos.

Aly Muritiba: o cineasta é ex-agente penitenciário | (Foto: Lex Kozlik)

Memórias do Cárcere

Mas, ao contrário de parecer planejado, a escolha do curso de cinema foi fortuita (reversão de expectativa).

Servidor público estadual, Aly procurava um curso universitário para usufruir de um direito que lhe assistia: compensar horas de trabalho com horas de estudo. Agente penitenciário, ele prestava turnos de 12x48 ou 24x72 horas.

“Passar 24 horas por dia na cadeia, às vezes alocado onde você não via o Sol, era muito ruim”, conta o ex-carcereiro. “Se eu fosse estudar, pelo menos saia da cadeia por umas seis horas, via uma galera diferente, dava uma espairecida, e voltava para a cadeia!” Risos.

“Passar 24 horas por dia na cadeia, às vezes sem ver o Sol, era muito ruim. Se eu estudasse, pelo menos saia da cadeia por umas seis horas.” (Aly Muritiba)

Assim como a própria profissão, o curso de cinema foi mais uma casualidade, mais uma obra do acaso na vida de Muritiba que ele soube aproveitar. “Eu entrei no curso aos 27 anos. Eu não fiquei me formando, lendo, teorizando. Eu fui fazer e ponto. O campus de cinema da FAP é longe e é lindo. Eu não iria chegar e ficar jogando minha echarpe para o lado, colocar meu oclinhos de aros grossos e ficar pagando de intelectual. Eu tinha mais o que fazer. Tinha dois filhos para sustentar.”

A profissão, Muritiba manteve em segredo dos colegas de faculdade. Não por vergonha, mas por segurança. “Há todo um preconceito que eu também nutria a respeito de qualquer agente de segurança pública”, entalha ele. “Quando eu fazia História na USP, não aceitávamos que a PM entrasse no campus. Porque nós, de humanas, associamos a figura do policial à ditadura, à coerção, à tortura. Nesse imaginário, o agente penitenciário é o próprio torturador. Se eu conto isso no primeiro dia de aula, numa faculdade de Artes, ninguém jamais sentaria perto de mim.”

A revelação, para os colegas, aconteceu durante uma discussão sobre o filme Tropa de Elite. As pessoas falavam que era um filme fascista, que defendia a tortura e, ao defender outro ponto de vista, Aly precisou contar sua profissão, para tornar coerente seu lugar de fala.

Já os colegas de presídio sabiam que Aly fazia Cinema. “Com A Fábrica, quando as coisas começaram a dar certo, colocavam matérias de jornal no mural, eu levava DVDs”, conta ele. “O pessoal achava legal, mas não tinha muita celebração não. Elogiavam, e na sequência diziam: Bora lá algemar aqueles presos.” Risos.

A Fábrica é um curta-metragem que narra um fato na vida de um presidiário. O espectador parte do princípio que algo ruim vá acontecer, pelo simples fato de se tratar de um presidiário. Mas Aly reverte a expectativa.

Entrevistar Muritiba esperando encontrar o velho clichê do cineasta vestido de boina, echarpe e oclinhos de aros grossos que fica pagando de intelectual, é tão gratificante quanto chegar ao final dos seus filmes.

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.