Eu matei Amy Winehouse

E o Oscar vai para… Você! Que matou Amy Winehouse

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
6 min readFeb 29, 2016

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“Que felicidade ter ido a um show dela”, é o que comemoro ao dar o play em Amy, documentário que ganhou o Oscar na categoria em 2016. Estive no primeiro show dela na turnê brasileira, em Florianópolis, em janeiro de 2011. O ingresso do show está lá, no meu álbum de memórias, marcando a data. Só que terminei o filme com vergonha.

Amy é um documentário eloquente, daqueles que te deixam preso à cadeira até o final, pensando, perseguido. Primeiro intensamente, durante muitos dias. Mas certamente pela vida afora.

Não há problema nenhum em ir ao show de um artista — desde que ele queira estar no palco, o que acontece na maioria das vezes. Mas Amy era uma exceção. E a humanidade, tão massificada, maniqueísta e pouco profunda, desaprendeu a lidar com as sutilezas, com as raridades, com as exceções. Tudo virou senso comum. Não estou me referindo à raridade vocal ou ao talento de Amy, mas às peculiaridades e miudezas íntimas, pessoais, privadas.

Amy era uma diva nata, mas não tinha nem ambicionava ter a mínima vocação para aquilo. Não era uma Madonna, uma Lady Gaga ou uma Adele. Embora seu cabelo, suas roupas e maquiagens icônicas não tenham surgido com ela já num primeiro instante, não foram fabricados ou pensados para um efeito. Foram genuínos. Da mesma forma como uma mulher anônima de vinte ou vinte e um anos assume uma personalidade enquanto amadurece, Amy assumia a sua.

Amy não nasceu — e também não ambicionava ter nascido ou querido aprender a ser — para as multidões. Nasceu para o underground. Era onde se realizava. Tanto que quando recebeu o Grammy, em 2008, estava num pub, em Londres, com transmissão ao vivo na cerimônia em Los Angeles.

Um ano antes, no Brit Awards, o mundo já teria assistido à cena que, hoje, o documentário eterniza como uma das mais eloquentes em abarcar a inadequação de Amy àquele papel no mainstream. Ela simplesmente não cabia nele. Quando saiu às ruas, pelos bastidores, estava assustada com a fama. Fama que ela já tinha vaticinado desde o início, do documentário e da vida, que não saberia lidar. Amy só queria cantar. Não queria se espalhar pelo mundo feito Coca-Cola.

Talvez por isso, no ano seguinte, tenha optado por receber o Grammy no porão, na sua cidade natal, ao lado da família e poucos amigos. Só que as coisas se tornaram grandes demais para a Amy underground e, em pouco tempo, ela estava fazendo shows em turnês mundiais, para boa parte do mundo.

De saco cheio de repetir o repertório do segundo disco, Amy queria parar para fazer o terceiro, mas “não tinha jeito”, diziam o pai e os empresários, “tinha que ir”. Mesmo doente, mesmo embriagada, mesmo obrigada.

Em junho daquele maldito 2011, bebeu tanto que desmaiou. Colocaram-na no banco de trás de um carro e ela acordou no aeroporto, a caminho da Sérvia, onde tinham-lhe agendado um show no dia seguinte.

“Com vocês, Amy Winehouse”, anunciava o backing-vocal e amigo da cantora, que dividia o palco com ela. E de fato ela estava ali. Mas nunca tão longe.

Amy entrou no palco, ignorou o microfone, sentou, tirou os sapatos, os músicos riram. Ela se aproximou do amigo backing-vocal, disse alguma coisa. Talvez que ela quisesse mudar de planeta, mas como não pudesse, gostaria ao menos que a deixassem não cantar, voltar para casa. Como não deixaram, ela ficaria ali, sem fazer nada, houvesse o que houvesse.

A cantora cai. Os músicos tocam para ela ir atrás, ela não vai. Se retorce, se abraça, vira os olhos, treme. “Ela simplesmente não cantava”, narra o guitarrista Dale Danis no documentário. Queria arruinar não só a carreira, mas acabar também com as amizades, com os contatos musicais, com o público. A plateia grita: “ela está bebaça”, “não sabe nem onde está”, “ou canta ou o dinheiro de volta”. Uma cena dantesca, terrível. O Daniel na cova dos leões à contemporânea.

No dia seguinte ao show, as manchetes estampavam a incompreensão: “Amy sobe ao palco inapta para cantar”. Estava inapta sim, mas não por estar bêbada. “Será que os empresários não veem?” Viam, mas achavam que era obrigação dela e que estavam ajudando: "mente vazia, oficina do diabo", deviam pensar o pai e os empresários a marcar os shows, "não dá valor ao que tem", "sabe quantas dariam tudo para estar no seu lugar?"

“Era para ser uma volta por cima e ela estragou tudo”, concluiu uma jornalista, simplista. Nunca foi para ser uma volta por cima e ela não estragou nada. Muito pelo contrário, deu tudo conforme o planejado. Amy era, toda ela, um dedo-do-meio gigante apontado na cara da sociedade. Só que nós não entendemos.

Em Florianópolis, seis meses antes, no início daquela turnê que terminaria assim, Amy começou o show quase da mesma forma: conversou com o backing-vocal, cantou uma música, conversou de novo, saiu do palco um tempo e voltou dez minutos depois. Talvez já estivesse esboçando uma tentativa, um jeito mais explícito e radical de dizer que não queria mesmo estar ali, que não era só uma maldita bêbada desregrada. Dizer que queria fazer um disco novo, cantar músicas inéditas, que a esquecessem um pouco. Que um dia, talvez, ela voltasse. Se quisesse. Se se sentisse melhor.

Amy no palco, em Florianópolis — SC (Foto: reprodução)

Mas alguém, daquela vez, a convenceu a voltar para o palco, a “ter juízo”. Ela tentou. Aguentou mais sete meses. Morreria um mês e cinco dias depois daquele show na Sérvia no qual, apesar de ter chorado, terminou sentada, no fundo do palco, rindo. Rindo muito por ter tido a audácia de não se render à grandiloquência do circo todo que seu pai, seus amigos, seus músicos, seus empresários e sua plateia tinham armado pra ela.

Há um casal, no documentário, que pede uma foto à cantora dizendo “sentir muito” pelo inconveniente, mas não resistindo ao pedido. Amy atende, gentilmente, mas responde: “se sentisse realmente, nem teria pedido”. O pai fica indignado. “Eu não fiz ninguém se sentir mal”, ela responde, “eles tiraram a foto que queriam, era tudo que importava para eles, eu não quero ser uma caneca personalizável.”

Eu também tenho o ingresso do show. Era tudo que importava para mim, mesmo que eu não soubesse: estar numa plateia da Amy, mesmo que o que estivesse no palco não fosse ela, mas sim uma caneca. Personalizável.

Tony Bennett lamenta não ter tido a oportunidade de dizer “vai com calma, a vida ensina a viver se você viver o suficiente.” Se tivéssemos deixado Amy se curar primeiro, talvez passassem-se os anos, a vida ensinasse e ela quisesse subir no palco novamente. Mas nós não deixamos. Estávamos ávidos demais, afoitos demais para ir a um show dela antes que ela morresse. Não podíamos deixá-la viver primeiro.

Amy sabia que nunca a deixariam em paz. Não era só o dinheiro dos ingressos que o público queria de volta, mas a bilheteria de toda uma vida: a vida dela, do começo ao fim. Viva, nunca deixariam Amy se calar. Precisava morrer.

Meu ingresso para o primeiro show de Amy Winehouse no Brasil.

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.