O artista plástico Rafael Silveira em seu estúdio | Foto: Lex Kozlik

No Gabinete do Dr. Silveira

Uma autópsia pop e surrealista da mente do artista Rafael Silveira, escrita pelas normas cultas da Língua

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
11 min readSep 29, 2016

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Ao ser inquerido por que é que chama seu estúdio de gabinete, “é por gostar de vocábulos velhos” o que Rafael responde. “Eu gosto de flertar com essas palavras da língua que são archaicas, que se deslocam no tempo nos transportando para uma nouva relação com as cousas”, profere.

Ao Rafael, então, um texto velho, contemporâneo…

Indescriptível perda de tempo seria ir à officina do phenomeno Rafael Silveira — doravante vulgarmente chammado apenas “dr. Silveira” — , ilustríssimo artista de obra inominável a nós apresentado sob a alcunha de surrealista pop, e descrever apenas bobagens irrelevantes.

A quantos contos de réis se barganham quadros seus, o quê Rafael ausculta enquanto cria, quanto tempo leva para finalizar uma obra e em quais artistas elle se inspira, você lê na Folha. A de São Paulo ou a de Londrina.

Revelar o que revela a photo, também não precisa ser revelado. Descrever que a officina d’elle é separada por uma parede de tijolos da officina de sua esposa, uma prestimosa designer de moda que ganha o pão a coser indumentárias descoladas para o phino da bossa curytibana, seria cozer no molhado.

Descrever ainda que a officina se situa n’uma mansarda, no alto d’um portentoso arranha-céus, n’um conhecido logradouro da capytal das araucárias, ou despender duas laudas versando sobre as molduras entalhadas de suas obras, seria uma acachappante redundancia.

O que nenhuma photo é capaz de desvelar é o quê acontece dentro da cabeça d’elle enquanto, do lado de fora, vem a inspiração e a obra nasce. O quê precisa ser descripto é o que não pode ser visto. Os detalhes de alcova que ninguém viu, porque ninguém estava lá. O legítimo gabinete do dr. Silveira é a sua mente. Limpe os pés e entre.

Rafael Silveira — Foto: Lek Kozlik

Córtex Cerebral

Antes de dar prosseguimento a estas mal traçadas linhas e adentrar ao córtex cerebral do afammado rapaz, faz-se deveras salutar ressaltar que dr. Silveira não é doutor em cousa algumma. Nem em química, nem em sciência, nem em physica, nem em communicação, nem em artes, nem em nada.

Libertário demais, moderno demais, autodidata demais para academicismos, dr. Silveira não gosta de submeter seu tempo a cousas que lhe pareçam absoluta perda de tempo. Se assim o chammamos, é apenas a fim de enobrecer ainda mais seu inigualável curriculum.

Infante ainda, dr. Silveira despediu-se, aos nove annos, da bucólica e pitoresca Paranaguá, berço do embrionário artista. Em finais do saudoso século XX, nos auros e laboriosos idos de sua mocidade, quando se contavam os annos de 1996, Dr. Silveira, hontem prestimoso cidadão, hoje renomado artista, ingressou, por intermédio da Universidade Federal do Paraná, no distincto curso de Artes Plásticas oferecido por esta instituição.

“As questões da Faculdade de Artes eram philosophais, de altíssimo nível!”, exclama o alvissareiro artista. Porém, todavia, entretanto, no entanto… pintar, que era bom, nada! Nonada! Rafael conta que almejava aprender a desenhar e não podia, uma vez que não havia professores que o fizessem.

Encontravam-se, elle e seu colegas catedráticos, imersos e submergidos num universo conceptual que lhe deu, segundo elle, todo o embasamento com que discorre hoje sobre sua obra, “mas você tem toda essa bagagem conceptual, e não pode fazer nada. Porque não sabe desenhar, não sabe pintar, não sabe esculpir. Só sabe fallar”, desabapha.

Lobo Frontal

Enfastiado com o universo artístico, concomitante ao curso de Artes Plásticas, o valoroso dr. ingressou no curso de Publicidade & Propaganda, d’onde bacharelou-se publicitário nos primeiros annos do terceiro milênio. O curso de artes, Rafael nunca o terminaria.

“A publicidade foi uma consequência natural de quem precisava trabalhar”, pormenoriza elle. “Eu não podia ficar para sempre philosophando as cousas arctísticas da Federal.” Na publicidade, as cousas davam-se mais na prática.

Embora dr. Silveira não visse ainda a auspiciosa profissão como um mercado de trabalho, a mesma apresentava-se — porém, todavia, entretanto, por conseguinte — como um campo de treinamento nas artes visuais, para que Rafael fosse, aos poucos, transformando-se num artista.

Muito em breve estaria actuando profissionalmente no mercado publicitário, regozijando-se em oferecer-se para fazer as illustrações dos jobs em que trabalhava.

Atelier de Rafael Silveira— Foto: Lex Kozlik

Lobo Parietal

As aulas de pintura e desenho que dr. Silveira não teve, as substituiu pela dissecação auspiciosa e pormenorizada dos cânones universaes do desenho e da pintura, em aulas ministradas a elle por elle mesmo.

Autodidata, perscrutava livros e obras atrás de reconhecer e identificar as técnicas e os pensamentos d’estes mestres. Não os mestres que a história elegeu para todo mundo, pois Rafael não é o tipo que canoniza os santos de toda gente. Evocar, por exemplo, o archaico surrealista hispanico de primeiro nome Salvador nesta conversa, seria uma perfeita nulidade. Mas os mestres que interessavam a elle.

Seu olhar refinado e apurado, Rafael atribui aos annos de actuação no mercado publicitário. “Como director de arte, você está constantemente fazendo com que as composições funcionem bem visualmente. Esta lógica visual se aplica a qualquer outra disciplina. A diferença entre a arte e a publicidade é o propósito”, dualiza ele que, se já não cria mais outdoors, agora desenha quadros que qualquer motorista pararia para ver.

“Na publicidade, você lida muito com a essência. Você monta um outdoor na e precisa falar só o essencial, porque é o tempo de o motorista passar e ler. É uma simplicidade inteligente. Você precisa dizer algo preciso, contundente, assertivo. Isso é uma forma de respeitar o público, porque as pessoas tem cada vez menos tempo. Então, se você consegue dizer uma cousa profunda de forma sucinta, é também um respeito que você tem pelas pessoas.”

Lobo Temporal

Os mestres do dr. Silveira, elle nem sempre os viu ao vivo, in loco, no museu.

Entre a Taschen, com suas publicações de altíssimo nível, e o Google, com suas possibilidades macroscópicos de zoom, o escaneamento visual tem (e)levado o olhar humano de discípulos atemptos como Rafael a detalhes que original nenhum jamais permitiu. “Note o sutil contorno amarelo provocado pelo registro manual e também as pequenas falhas propositais que criam este aspecto de impressão antiga”, escreve ele numa postagem de uma aphamada rede social, direccionando o olhar do leitor para um detalhe que, num museu, passaria despercebido. Dr. Silveira faz uma verdadeira ode à internet e aos livros de arte.

“Quando você lê um livro, está no silêncio. Quando está no museu, tem muita gente ao seu lado. Você quer ver os detalhes da pintura e não consegue”, explica. Só pela quantidade de gente? “Não. Porque colocam-se também camadas e camadas de um verniz brilhante horroroso, que faz você precisa ficar desviando os pontos de luz. Muitas vezes, só se enxerga o reflexo, não a pintura”, completa.

E arremata com uma frase que faria o cânone Walter Benjamim revirar-se na tumba: “Você vai ver muito mais de uma obra numa fotografia grande ou na tela do computador, do que na frente do original. Livros de arte são melhores que obras de arte. Obrigado, livros de arte!

"Obrigado, livros de arte!" (Rafael Silveira) — Foto: Lex Kozlik

Sistema Límbico

“Eu me libertei do acaso”, professa, sem constrangimentos, dr. Silveira. “Faço o que eu quero, não o que eu consigo.”

Citado assim, entre aspas, seco, livre de um daqueles apostróficos no presente do indicativo — “ri”, “ironiza”, “chora”, “brinca” — pode parecer presunçoso ou pretensioso. Não é.

Rafael não falla com a afectação ou o maneirismo d’aqueles artistas que acreditam terem burlado Deus, ou cousa que o valha, e que por isso sejam donnos do próprio destino. Fala com a propriedade de quem sabe que a exploração e o aperfeiçoamento das nossas faculdades mentais diminuem o cabresto existencial imposto por nossas limitações.

Fazer o que se almeja, em detrimento daquilo que apenas se pode, não é pretensão ou ousadia: é determinação e disciplina. Seu talento e sua técnica não nasceram com eles, não são natos. De forma que seu sophisma jamais poderá ser visto com a empáfia, a arrogância ou a pretensão de quem já nasceu de quina virada para lua. Muito pelo contrário.

Uma frase assim só pode ser professada orgulhosa e sem titubeios por um artista que, para não ficar à mercê do tempo, da intuição e da fruição, percorreu sozinho, trôpego e descalço, os destroços da história da arte, para pegar o bonde andando a fim de entrar nela também.

Hipotálamo

Apesar de já ter sido agraciado outrora com exposições em São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Miami e Londres, somente agora o pacato e isolado meio social curytibano prepara-se para receber, no enthusiasmo sincero de seus habitantes, a garbosa obra deste verdadeiro baluarte das artes contemporâneas. Rafael logra realisar, para os idos do corrente ou do seguinte, uma fragorosa exposição no oftálmico Museu do Olho.

O projecto vem assignalar um faustoso acontecimento, que ficará imperecivelmente registrado nos annaes da urbe Curytibana. “Expor no MON é algo que avaliza seu trabalho não só para a cidade, mas para o mercado arctístico como um todo”, argummenta o artista. “É o passo definitivo para que a cidade realmente me enxergue”.

Rafael destaca que há vários obstáculos para se chegar até uma exposição no MON. A duras penas, ter-se-ia livrado de vários, amargando outros dissabores. Actualmente, sem esmorecer, o fatigado cidadão resvala no pecuniário, captando recursos por intermédio da Lei Rouanet. Caso a captação não se concretize, viabilizará de outro modo a feita. Talvez faça um financiamento coletivo, o artista de brio. Talvez.

"Hold Your Horses" — Foto: Lex Kozlik

Hipocampo

Apesar de ter percorrido o mundo e ser recebido pelos outros d’antes de ser reconhecido por nosotros, da República dos Estados Unidos de Bumbumritiba, dr. Silveira não nos vem com chorumelas: “Sim, eu fui reconhecido antes lá fora, com certeza”, commenta.

Mas adverte: não fica desgostoso com o fato. “Em que pesem os fatos, é uma característica da cidade desde tempos immemoriáveis”, entalha. “E quando você constata que é assim, é mais fácil usar isso seu favor e fazer as idiossincrasias necessárias para ser reconhecido por ella, do que ficar luctando contra, reclamando que é assim. Curytiba não vai te levar a sério se você só expor em Curytiba. Aqui, todo mundo é culpado até que se prove o contrário, então todo artista é ruim até que se prove o contrário.

E assim, com o contrário provado — enobrecido pela outorga de reconhecimento que lhe dá “o resto do mundo” — , n’um assomo grandioso de ufanismo, o indefectível Dr. Silveira revela o immenso manancial que se annuncia. O bom filho triumphante à casa torna, para lhes dizer que, finalmente, batam palma, é um artista.

Por esta feita, a fim de evitar uma celeuma por demais injuriosa, pede, o artista, olvidarmos de mencionar estas lastimáveis lamúrias lamuriosas, deixando-o, assim, ennamorar-se prontamente de Curytiba.

Cerebelo

Rafael conceptua bem, tem uma preocupação intelectual com sua obra, falla bonito e longamente sobre as pinturas, mas deixa claro que sua única pretensão é encantar visualmente, ainda que isso não seja bem quisto pelo mundo das artes.

“Elles”, redargue o artista, determinando o sujeito mas ainda assim deixando-o occulto, “se deixaram seduzir por uma arrogância intelectual pós-moderna em que qualquer actividade manual é artesanato. Então, ou você joga uma lata de tinta em cima da tela e coloca um concepto nisso ou está fazendo artesanato.”

A questão, segundo Rafael, é: será capaz, o artista, de falar alguma cousa interessante sobre sua obra, utilizando a última flor do lácio, inculta e bela?

“O que as pessoas querem, quando te perguntam sobre sua obra, é que você diga algo que elas considerem genial. Se você conseguir, será considerado gênio”, tergiversa.

Ou seja, se o cidadão não pinta nem borda, mas tece eloquências sobre o seu bordado, ele é um artista. Ao passo que a recíproca não é verdadeira: se ele pinta e borda magistralmente, mas não abre a boca, não vai à Roma. É vaiado por ela.

O Criador e a Criatura — Foto: Lez Kozlik

Áreas de Broca

Rafael é gênio. Não se quer dizer, com isso, que elle apenas saiba versar sobre sua obra, como se viu através deste gabinete passado em revista. Até porque elle não precisaria estar fallando. Só falla porque eu inquiro, só falla porque eu pergunto.

Se eu não estivesse ali, neurônio enxerido no seu gabinete, o artista estaria quieto no seu canto, desenhando. Desenhando seus desenhos, tão eloquentes quanto elle. Pinturas que não precisam de ninguém, nem do seu criador, a falar por ellas. Quadros que fallam sozinhos. Verdadeiras obras de arte.

Este texto, barroco assim, rococozo assim, só illustra o que illustram a obra e a vida de Rafael: que a palavra, antiquada, não serve para nada. Esquadrinhar as cousas? Catalogar o mundo? Não é tudo. A parte do cérebro que compreende é muito pequena, mente. Siga em frente.

“Só vou fazer se eu entender?”, pergunta, retórico. “A parte do meu cérebro que entende as cousas é muito pequena”. Diminuta, diria elle, se transcrevesse a sensação para a linguagem d’este texto. “A potencialidade do cérebro é muito maior nas cousas que não entendemos. Geralmente, as escolhas dos elementos que compõe uma imagem são aleatórias. Depois, começo a estabelecer conexões entre uma cousa e outra, e fico chocado com quanto aquilo faz sentido”.

É nestas horas que o artista se pergunta: “Será que eu já sabia daquilo, mas a ficha não tinha caído?”.

Aqui, é a única vez em que a resposta é simplória como a de um jogador de futebol: “Você joga a bola para frente e depois corre atrás. Você cria algo sem saber o que é e depois de criado se propõe ao desafio de entender.”

Para entrar de fato no jogo do Rafael, é preciso esquecer o gabinete.

O texto mente.

Limpe os pés e entre.

Sua obra, sua mente.

Detalhe de obra | Foto: Lez Kozlik

Área de Wernicke

Despedimo-nos, assim, sob ruidosa salva de palmas, não apenas contando os nobres feitos de nosso indelével artista, mas também enobrecendo-o-o, dignificando-o-o, exaltando-o-o e elevando-o-o. Auguramos vida longa e próspera a este valente estandarte do modernismo paranaense, ensejando-lhe o estupendo porvir que, num piscar de olhos, se annuncia.

Aos leitores que, enquanto isso, não puderem ter as obras dele ao alcance dos olhos, convidamos que corram ao Google para ver. O artista, ao contrário de Walter Benjamin, nem se importa!

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.