O quanto é possível descobrir de você mesmo descobrindo os outros? | Foto: Arquivo Pessoal

E se eu me chamasse Raimundo!?

Mundo, mundo, vasto mundo…

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
11 min readJan 31, 2020

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#TBT de vidas passadas? Temos!

#TBT de #TBT, como matrioskas? Temos!

Antes de nascer, eu tive um tio que se chamava Raimundo. Ele morava no Rio de Janeiro e morreu atingido por um raio na praia de Copacabana em 1977, aos 28 anos. Hoje, 30 de janeiro, faz exatos 43 anos.

Essa história e a figura do meu tio foram muito impressionantes para mim a minha infância inteira. Primeiro porque me davam uma noção muito estranha de que o mundo não tinha começado comigo: tinha havido coisas e pessoas que existiram e sumiram antes mesmo de eu nascer. Depois, porque eu morava numa cidade minúscula onde todo mundo conhecia todo mundo e me intrigava imenso o fato de que meu tio morasse numa cidade onde ele morresse e ninguém soubesse quem ele era: ele estava sem documentos e foi dado como desaparecido até que a família o encontrasse no IML.

Na idade adulta, essa história passou a me impressionar ainda mais. Por questões geográficas, só me aproximei melhor da família do meu pai aos 24 anos, quando fui morar no Rio de Janeiro. Eles moravam na Zona da Mata minera, conhecida como "oeste do Rio". Ou seja: vizinhos. Era lá que eu passava os feriados e uma série de sincronicidades com o meu tio morto passaram a acontecer.

Primeiro, que eu era a cara dele: conheci pelas fotos. Depois, que minha tia me deu a melhor herança que podia: dezenas de correspondências e escritos dele. Quase enlouqueci!

Foto: Arquivo Pessoal

Pra começar, que dentre todas as variantes possíveis, a primeira "coisa" que li era uma carta pós-morte, endereçada a ele, em primeira pessoa. Ele trabalhava na Embratel e era a carta de uma colega de trabalho, em papel timbrado, falando para ele. Com ele.

Carta póstuma de Dirce C. Christino a meu tio Raimundo | Arquivo Pessoal

As cartas eram as que ele recebia, não as que ele enviava, o que me dava, dele, uma visão de terceiros. Ele gostava de viajar, fazia amigos por onde passava e se correspondia INTENSAMENTE com estas pessoas. Era algo impressionante a relação de profundidade que ele mantinha com elas. Algumas eram do meu pai e da minha mãe, e foi lindo e emocionante descobrir os dois, individualmente e como casal, através daquelas cartas.

Chorei, e ainda choro várias vezes com a beleza do que li e descobri ali: a emoção e o orgulho do meu pai ao contar da infância da minha irmã — "A Bárbara está uma coisinha fofa, você não pode imaginar como ela é querida"…

Trecho de carta enviada pelo meu pai ao meu tio em 1977 | Arquivo Pessoal

… a preocupação dele "com os seus", a cumplicidade entre os irmãos, descobrir que meu pai gostava de assistir Gabriela (em uma das cartas ele diz que vai parar de escrever para assistir a novela), minha mãe contando que, no sábado, ela e meu pai iam “virar os canecos no Baile do Chopp”… kkkk. Logo minha mãe, que eu nunca vi beber nada além de vinho até hoje?

Tem também meu pai contando sua prosperidade pequeno burguesa de "filho que mora longe e deu certo na vida!" Que figura interessante descobri que ele era! E que impressionante que fosse meu tio morto que me apresentasse meu pai! Que impressionante! Que impressionante! Era um morto me apresentando outro morto!

Então era assim que os mortos falavam e continuavam presentes na vida da gente? Através dos ossos? Sim, por que… o que seriam aquelas cartas, senão ossos num cemitério? Como fósseis. Vestígios de uma “civilização" perdida em minha própria família. Que felicidade a minha que meu tio chegasse pra mim pelas mãos da minha tia (hoje morta também!), através daquelas cartas, e me trouxesse ele e meu pai de mãos dadas comigo. Que felicidade! Que felicidade!

Sentia que o impossível acontecia, e eu conhecia os dois depois de mortos. Hoje, faz 43 anos que meu tio morreu. Quarenta e três: a idade que meu pai tinha quando morreu. Hoje, entre eu e meu tio, tenho exatamente a vida inteira de meu pai no meio.

19h35min | Posto 3 | Praia de Copacabana | Rio de Janeiro (RJ) | 30 jan. 2017 | Arquivo Pessoal

Mas o tempo não para e também anda pra trás. Sendo assim, arqueólogo que sou, lá passava eu, horas e horas, dias e dias, procurando mais “pistas de carbono” sobre meu pai e sobre meu tio. Eu queria conhecê-los. Saber quem eles eram. E… bem… "se nos anos 70 um homem foi atingido por um raio em plena Praia de Copacabana, isso deve ter sido notícia nos jornais”, pensei. E lá fui eu revirar os arquivos d'O Globo, como tinha feito com as cartas do meu tio.

No dia seguinte da morte, 31/01/1977, na página 8, lá estava a notícia: “Raio mata um homem na praia de Copacabana”.

Jornal "O Globo" | 31 jan. 1977

Eu gostava daquilo, da manchete genérica, do meu tio sem nome — apenas “um homem” — nas manchetes dos jornais. Aquela notícia — linda! — parecia um conto (era um estilo jornalístico recorrente à época, constatei): a descrição, as velas, as pessoas — anônimas — velando o corpo de um cadáver que era meu tio (e a notícia sempre me lembra o conto "Uma Vela Para Dario", de Dalton Trevisan). Aquele homem, meu tio, andando na beira da praia, "sem lenço e sem documento", como a querer caetanear, rindo da cara do perigo — a tempestade que se aproximava.

Gostava também da forma linda como pessoas desconhecidas velaram meu tio sem fazer de tudo para “recolher” ou ocultar aquele cadáver imediatamente, como parece exigir a "etiqueta social" que, ao longo do século XX, transformou a morte em tabu, empurrando-a para seus bastidores (como já contei aqui para o blog Morte sem Tabu, da Folha de SP).

No dia seguinte, O Globo continuou apurando a notícia, até que se descobrisse a identidade do homem: Raymundo Francisco de São José.

Jornal "O Globo" | 01 fev. 1977

Eu gostava daquilo. Do nome escrito com "Y", do sobrenome escrito errado (Francisco seria Francino), do sobrenome que meu pai não tinha ganhado quando nasceu — São José — e falava em pleitear na justiça o direito de usar (mal sabia ele que eu rezava para que não conseguisse, pois morreria de vergonha se eu virasse São José!), da ironia de que meu tio servisse como personagem e pretexto para pautas sobre proteção a raios.

Eu gostava também da forma como o jornal repetia, como metáfora, por analogia, mais ou menos o que tinha acontecido comigo ao longo da vida: saber que existiu “um homem” — que, no meu caso, era meu tio — atingido por um raio na Praia de Copacabana… só ficar "conhecendo" aquele homem depois que ele já estivesse morto… até que aquele homem fosse se desvelando, se revelando, tomando uma identidade à minha frente. Ainda que confusa, ainda que difusa, ainda que imprecisa. Ainda que com um "Y" onde deveria haver um "I". Ainda que com um cisco onde não deveria ser Francisco.

Em justaposição à matéria, aliás, a carta póstuma escrita pela Dirce me fazia pensar agora na frase em que ela frisava o nome correto do meu tio como um respeito pela sua individualidade, pela sua existência, pelo seu nome, pela sua identidade. Como se, em resposta à informação equívoca do jornal, dissesse que "um homem" (uma pessoa!) nunca é apenas "um homem". Que o nome de "um homem", fosse qual fosse, não poderia ser descrito de qualquer maneira sob pena de indicar outra pessoa no mundo que não ele. Porque cada pessoa é, pela primeira e única vez no mundo, ela!

Assim, se para os leitores do jornal não importava que Raimundo fosse descrito com "Y" ou com "Z", que fosse Francino no lugar de Francisco, felizes eram eles que o tinham conhecido de perto e podiam dizer: "Tivemos um amigo chamado Raimundo Francino de São José".

Carta de meu tio Raimundo a uma "desconhecida" Lia, escrita em 11 set. 1976 | Arquivo Pessoal

E assim, ao longo dos anos, foi assim que me veio vindo este tio Raimundo: um pouco através dos jornais, um pouco através da família, um pouco através das cartas dos amigos, um pouco através dele mesmo. Sim, porque se a visão que o mundo — mundo, vasto mundo — tinha do Raimundo era mostrada para mim através das cartas, o contrário me era mostrado pelos seus escritos em primeira pessoa, em papel A4, datados e assinados. Nesses escritos ele sente, sofre, pede seguidas e diversas vezes para morrer.

Tal qual um poeta maldito ou romântico, se declara insistente, constante e apaixonadamente, ao longo dos últimos anos de via, para o que seria uma musa igualmente romântica. Só que, além do sofrimento, há um quê de clandestinidade, de mistério, de velado, de culpa, de pecado, de proibido, de escondido ali! Em todos os escritos, há um exímio e extremo cuidado com a ausência de gênero para aquela musa! Isso era o que mais me impressionava desde o início: suas excelentes e exímias peripécias literárias para ocultar o inefável; para contar sem deixar de contar; não falar sem deixar de dizer.

Quando escorregava e precisava usar um artigo, parecia sempre querer deixar — propositada, desleixada ou displicentemente — uma nesga de dúvida sobre se seria um "a" ou um "o" aquilo (e isso só funcionava quando era manuscrito). Terminava as palavras sempre desleixadamente — não sei se por propósito ou inconscientemente auto-defeso— , quase como se fosse o "x" da questão "indefinidx" de gênero de hoje em dia.

Nas dezenas de páginas, só há uma palavra que o entrega: en passant, num diálogo ao telefone, meu tio deixa passar, no masculino, um “obrigado” de seu interlocutor.

"Obrigado!"

Meu tio também teria sido gay? Por que fazia tanta questão de ocultar o gênero daquela "musa"? Queria apenas isso mesmo: estimular, no futuro, as peripécias imaginativas de um sobrinho enxerido metendo o dedo num antigo baú de ossos onde não era chamado? Ou será que a preocupação era mesma com o presente: havia tanta medo de ser o que era, que a culpa o fazia disfarçar de lirismo a sua vergonha? Ele sofria por ser gay ou por um amor não correspondido?

Nunca ousei perguntar à família. Estávamos em 2004 e, há 16 anos, insinuar que um homem pudesse ter sido gay ainda seria profanar a memória daquele homem. Mas aquela notícia d'O Globo ilustrava que sim. Seria "o paulista Paulo Roberto Guimarães, que exerce a função de intérprete" a musa de tantos e repetidos poemas? Seria daquele "amigo" que identificou Raymundo o “obrigado” que teria escapado? Seria por ele, "que tinha vindo de São Paulo para passar o fim de semana" com meu tio, que Raimundo queria morrer?

Era pelo jornal, aliás, que eu descobria que Raimundo estava acompanhado. Nas histórias da família ele sempre esteve sozinho. Eles achavam isso mesmo ou sempre souberam desse "amigo" e, pela memória e honra da masculinidade do morto, preferiram esquecer?

Quanto a mim, não deixo de lembrar um só instante que foi Paulo Roberto quem atribui uma identidade ao "homem morto na praia de Copacabana", assim como foi O Globo que me contou em que posto da praia ele estava e as roupas que ele usava.

Aliás… Paulo Roberto podia até não ser a musa do meu tio, mas aquela sunga estampada e aquela camisa listrada continuavam dando na cara. Não porque "homens vistam cor única e bichas vistam estampado", mas porque vivíamos uma outra era nesse país, onde menino vestia azul e menina vestia rosa.

Ao longo dos anos, tentei encontrar Paulo Roberto e todos os outros interlocutores e amigos do meu tio. Escrevi para o endereço de todas as cartas, procurei todos os remetentes e destinatários nas redes sociais, e encontrei apenas a Dirce, da primeira carta, que só conseguiu responder que "não lembrava de tê-la escrito". Dirce faleceu em 02 de abril do ano passado (2019).

Os outros nomes? Ao contrário do cadáver do meu tio, todos velhos demais ou genéricos demais — como “Paulo Guimarães” — para serem identificados. Quanto aos endereços, descobri que as pessoas desconhecem a histórias dos próprios lugares onde moram, o que parece inadmissível para mim, que insisto em dar à vida tantos mortos. As pessoas enterram o passado com a mesma convicção, o mesmo tabu e desespero com que enterram seus mortos: tudo faz parte do mesmo processo de negação.

Praia de Copacabana | 31 jan. 2017 | Eu lendo o texto em homenagem ao meu tio, quarenta anos depois

Um raio cai duas vezes no mesmo lugar?

Há, ainda, uma última coisa que eu quero contar sobre essa história: a etimologia do meu nome diz que Rômulo, “senhor de Roma”, sumiu pra sempre, atingido por um raio, numa noite de tempestade. Desde criança, eu era obcecado pelo Rio de Janeiro: queria morar lá. Desde criança, eu tinha pânico de raio: me escondia na despensa, embaixo da cama, atrás das paredes. Durante muito tempo, achei que eu fosse uma espécie de reencarnação ou continuidade do meu tio.

Em janeiro de 2017, quando fazia 40 anos da morte dele, eu estava no Rio de Janeiro. Não foi programado, não foi pensado, não foi intencional. Quando dei por mim, tava lá! Eu e meu amado marido. Minha musa, meu "amigo", meu "Paulo".

Quando me liguei na coincidência, quis estar no exato local da morte, na hora em que tudo acontecesse, para ler a matéria d'O Globo em homenagem a ele. Diz-se que há uma memória biológica no corpo que reconhece, como num ciclo, os momentos de emoções intensas e se lembra. Eu queria ver o que eu sentia.

O tempo estava feio, fechava, e eu ficava nervoso. No exato instante em que íamos gravar — e, portanto, quando quarenta anos antes caia um raio ali — , fomos "gentilmente assaltados": eu estava com a camisa da seleção Argentina e os caras nos tiraram para gringo. Só que, quando abrimos a boca e falamos em bom português, trocamos o assalto todo — estávamos com dois iPhones na mão! — por R$ 10,00. Eu nem queria mais gravar, só queria ir embora. Foi minha musa, corajosa, quem insistiu.

Todo modo, eu fiquei nervoso. E esse nervosismo passa na minha voz e no meu jeito. Penso que eu podia omitir essa parte da história e deixar pensar que esse embargo todo fosse emoção. Mas acho importante contá-la até o fim, para deixar registrado que, apesar da iminência, um raio não cai mesmo duas vezes no mesmo lugar. E que, quando se perde o medo dos mortos e das tempestades, é possível saber quanta gente vive dentro da gente; quanta gente é possível tocar, sem ter nunca estado com elas; e o quanto é possível conhecer de si mesmo conhecendo os outros.

"Eu…" | Raimundo Francino de São José

Muito prazer!

P.S: Se você conhece algum Paulo Roberto Guimarães, compartilhe esse texto, por favor! Vai que ele "exerce a função de intérprete"…

"Paulo" e eu!

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.