Emanuel Aragão, em cena de "Hamlet — Processo de Revelação" (Dir. : Adriano Guimarães e Fernando Guimarães), em cartaz no último Festival de Teatro de Curitiba | 2016 | (Foto: Ismael Monticelli — Divulgação)

Hamlet

Crítica à “Hamlet — Processo de Revelação”, de Adriano Guimarães e Fernando Guimarães

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
5 min readNov 12, 2016

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Eram nove e seis da noite quando Emanuel Aragão começou “Hamlet — Processo de Revelação”, na sessão do espetáculo que assisti durante o Festival de Curitiba.

Aragão — que enquanto a plateia entrava esteve o tempo todo sentado na borda do palco descompromissadamente — entra em cena, senta-se, pergunta as horas para a plateia — 9:06pm — , conta a história da morte do seu pai, fala de uma chinesa suicida, dita as "regras" do espetáculo para a plateia — as luzes não vão se apagar, a plateia pode falar, o ator tem que ir com o espetáculo até o final, acontece o que acontecer, a gente não — e começa o espetáculo.

Há o despojamento, a ausência de sacralizações — do palco, do ator, de Shakespeare, do teatro — e das convenções cênicas (aquele acordo tácito e implícito que existe entre o espectador e a cena, que faz com que que seja possível se emocionar e se iludir com o que se vê).

A ilusão, hoje em dia, parece estar mesmo reservada à realidade. Nos sentimos tão ultrajados, aviltados, enganados, aturdidos, iludidos e humilhados o tempo todo com a nossa realidade, que no teatro ou onde quer que seja, não queremos ser ludibriados novamente. Nele, não cabe a farsa, a pantomima, o simulacro, o faz-de-conta.

Neste sentido, a montagem brasiliense de Hamlet, co-dirigida por Adriano Guimarães e Fernando Guimarães, começa muito bem sucedida. As regras propostas e o despojamento sugerido são empáticos. Além disso — avisam — , o público não será ignorado, pode se manifestar, e as luzes da plateia não serão apagadas, para que os espectadores não se eximam da co-responsabilidade do espetáculo em momento nenhum. Como se dissesse, "agora é com o ator”. Aquele alívio que dá quando as luzes se apagam e você pensa: "eu não tenho mais nada com isso, agora é lá com ele".

Emanuel Aragão | “Hamlet — Processo de Revelação” | (Foto: Ismael Monticelli — Divulgação)

Aragão também faz questão de deixar claro também que apesar de poder falar, a plateia não é obrigada, só fala se quiser. Então fica todo mundo à vontade: os tímidos e os participativos. O ator conta ainda que a peça já teve sessões com duração de uma hora e meia e com duração de três horas. E repete: a plateia pode ir embora a hora que quiser. O único que tem a obrigação de ficar ali até o final, é ele. De resto, somos todos livres. Bem livres.

Até aí, tudo bem. Mas a partir de então, Aragão apresenta uma breve sinopse de Hamlet. Comenta sobre as variantes de interpretações, a universalidade e a atemporalidade de Shakespeare, sobre o solilóquio mais famoso da história da dramaturgia, resume o final e volta até o início da peça, contando a história toda, sob o pretexto de elencar e descobrir as motivações de Hamlet. Ou ausência delas.

É certo que Shakespeare será sempre atual e, portanto, pertinente, na medida em que escrevia sobre temas universais e atemporais. Mas daí a encená-lo, são outros quinhentos. É preciso que a linguagem que se usa para adaptá-lo agregue sentido, significado e valor ao texto.

O espetáculo, encenado em Curitiba no SESC da Esquina, resvala em apenas “contar” as sequências dramatúrgicas de Shakespeare, com supostos momentos de interiorização do ator. Hora o ator puxa para si a emoção do personagem, hora destrincha as falas palavra por palavra, linha por linha as falas da peça, dando, à plateia, a sua compreensão e a sua interpretação delas.

“Shakespeare escreveu quatro mil linhas”, diz ele, “exatas quatro mil linhas”, repete, como se na repetição nos convencesse da profundidade do que é dito (o ator faz isso dezenas de vezes). “Em mil delas — mil delas!—, discorre sobre teatro. E em apenas quatro — quatro! — acontece o que seria o objetivo principal de Hamlet: matar Cláudio. Matar o Rei Cláudio.”

Da mesma forma que Hamlet, Aragão parece se arrastar por três mil novecentas e noventa e seis linhas, para em apenas quatro fazer o que tem de ser feito: encenar Hamlet.

Emanuel Aragão | “Hamlet — Processo de Revelação” | (Foto: Ismael Monticelli — Divulgação)

É possível que o ator atravesse, de fato, a trajetória do personagem?, é a pergunta que a sinopse indica que a montagem quer responder. Tendo em conta o arrastar-se de Aragão para fazer o que tinha que ser feito — recitar o ser ou não ser!— pode-se dizer que sim.

Mas há muito pouco ou quase nada de teatro ali. Tudo daquela conversa cênica poderia ser apreendido numa leitura, numa conversa, num TED, num curso de teatro, talvez. Nada é inerente à linguagem teatral ali.

Num dos trechos da montagem, o ator discorre longamente sobre o terceiro solilóquio de Hamlet (Ato II, Cena II). Nele, Hamlet aproveita a passagem de uma companhia de atores pela corte dinamarquesa, para discorrer sobre os maus atores e o que se fazia com eles à época de Shakespeare.

“Sou acaso um covarde? Quem me chama

De vilão? Quem me parte o crânio e arranca

As barbas, para em rosto m’as lançar?

Quem me torce o nariz? Quem me desmente

E jura que há de pôr-me pela goela,

Atingindo os pulmões, o que é uma mentira?

Quem me faz isso? Ai, bem o mereço”

(Hamlet, Ato II — Cena II)

Emanuel Aragão | "Hamlet — Processo de Revelação" | (Foto: Ismael Monticelli — Divulgação)

Os maus atores contemporâneos de Shakespeare eram desmascarados em público, como na descrição dos versos acima.

Aragão, no Festival de Teatro, terminou o espetáculo intacto.

Decerto não era mau ator. Decerto, o conceito de ator mudou.

Se atualmente já não é possível mais arrancar nenhum disfarce, puxar nenhuma barba, arrancar nenhuma peruca, é porque os atores já entram em cena tão desmascarados, escancarados, desmentidos por si mesmos, que não há nada ali para ser descoberto.

Irritantemente Hamlet, de tanto que não fez.

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.