André Coelho, designer e ilustrador | Foto: Flávia Wolf

Na toca do Coelho

Designer e artista visual, André Coelho tem uma relação intensa com o tempo, e com a passagem do tempo. Com a cidade, e a transformação da cidade. Com a vida, a passagem e a transformação da vida.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readOct 27, 2016

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Filho de artistas — pai arquiteto e mãe ceramista –, o ilustrador passou muito tempo ensimesmado, buscando sua identidade através dos desenhos e um traço autoral para sua obra. Agora, aos 36 anos, satisfeito por ter amadurecido — o traço e a identidade — ,diz querer sair da toca e ganhar a cidade que tanto admira desde pequeno.

O Ateliê

Projetado pelo pai, com a cara da mãe, o ateliê dos Coelho abarca hoje as ilustrações de André e as criações de sua mãe, a ceramista Denise Coelho. Localizado num bairro pacato, numa rua bucólica e pouco movimentada, com um pé direito alto e um jardim silencioso ao fundo, torna-se o local perfeito para quem tem o olhar voltado para o momento íntimo e sublime da criação. “Prezo muito pelo silêncio”, diz André.

Construído há 20 anos para ser um atelier de cerâmica, Denise viu há quatro o filho chegar e se apropriar dele junto com ela. Viu, na companhia de André, um estímulo para que ela própria voltasse ao trabalho e às suas criações. Denise teve uma ausência temporária em decorrência de problemas de coluna ocasionados pelo peso das grandes peças que produzia. Voltou produzindo peças menores, como colares e luminárias.

— Como é a convivência com o filho? — pergunto.

— Maravilhosa. — Adjetiva Denise. — Maravilhosa como seria com qualquer outra pessoa que ocupasse o espaço e criasse com o mesmo talento que ele.

André e a mãe, Denise, no ateliê | Foto: Flávia Wolf

Está tarde, tarde, muito tarde, diz o Coelho de Alice, não o nosso

Tal qual Alice entrando na toca do coelho e descortinando o seu país das maravilhas, é assim que me sinto ao adentrar o recinto. Entre as paredes de tijolo à mostra e as peças coloridas da mãe, saltam aos olhos as gravuras preto e branco do filho. Parece ter sido esta a maneira simples que André encontrou de apropriar-se do espaço para chamá-lo também de seu: a simples exposição de seus quadros. “Aos poucos, quero abrir o ateliê para frequentadores, para as pessoas que queiram adquirir uma obra diretamente de onde ela é criada”, conta ele. “Comprar um quadro em uma galeria é uma coisa. Comprar onde ele é feito é outra.”

Tal qual Alice entrando na toca do coelho e descortinando o seu país das maravilhas, é assim que me sinto ao adentrar o ateliê.

Ao invés do chá — talvez por não termos chapeleiro, não sei porquê, me ocorre agora o motivo — , cafés é que são servidos. Duas xícaras. E assim ficamos nós, eu e André, Alice e o Coelho, na toca, conversando. Sem chá, sem chapeleiro, mas sempre malucos. Malucos pela arte, pelo tempo, pela cidade, pela vida.

Diferente do coelho de Alice, André não fala que está tarde e corre apressado, olhando o tempo que passa no tic-tac do relógio. Neste sentido, está muito mais para outro personagem, a lagarta, que tem seu próprio tempo: “Eu descobri que meu tempo é lento, diluído. Respeito meu tempo. Prefiro fazer menos coisas e estar fora da correria absurda da vida. Estar inteiro no que eu estou fazendo. As pessoas se agridem muito.”

O Tempo e a Cidade

André explica que seu trabalho representa muito a busca de uma identidade e a observação da passagem do tempo, as transformações da vida. Da mesma forma, sempre teve um olhar atento para a cidade, muito forte desde criança.

O ilustrador fala com muito entusiasmo do projeto de croquis urbanos, do qual participa ativamente. Trata-se de um grupo aberto de desenhistas, amadores ou profissionais, que promove encontros nas manhãs de domingo em busca de temas curitibanos para seus croquis. O objetivo é registrar a cidade, seus habitantes, e trocar entre si possibilidades de desenho e diferentes pontos de vista sobre o tema retratado.

Coelho ilustra a conversa tirando da cartola o croqui afetivo do último encontro. Na praça Generoso Marques, em frente ao Paço da Liberdade, o que chamou atenção aos seus olhos, pedindo para ser registrado, não foram a imponência da antiga sede da Prefeitura e seus detalhes arquitetônicos. O que chamou atenção do artista, mostrando as peculiaridades do ponto de vista, foi um olhar bem mais íntimo e pessoal sobre o largo: a janela da vó, à direita da praça, na esquina com a Rua Prefeito João Moreira Garcês.

Detalhe do croqui realizado por André no Paço da Liberdade, retratando a janela do prédio de sua vó | Foto: Flávia Wolf

— Passei muito tempo da minha infância ali, vendo o tempo, a cidade e a vida passarem pela janela. Registrar aquilo é uma forma de capturar a passagem do tempo: aquele prédio que já não é mais o que era, a janela que já não é mais o que era, a minha vó que já não é mais o que era, eu que já não sou mais o que eu era. Tudo está em transformação — conclui André. — Só o coração da cidade ainda está lá, batendo junto com o meu.

Chico Buarque canta que o tempo passou na janela e só Carolina não viu. Felizmente, ali, ninguém se chama Carolina. Eu me chamo Alice, André se chama Coelho, a mãe se chama Denise. Todos vimos.

Diferente do coelho de Alice, André não fala que está tarde e corre apressado, olhando o tempo que passa no tic-tac do relógio. Neste sentido, está muito mais para outro personagem, a lagarta, que tem seu próprio tempo.

Desenhando com o Corpo

Raul Cruz, Poty Lazzarotto e Denise Roman são três apropriações evidentes do estilo de André Coelho, que ele diz ter absorvido de maneira natural e intuitiva. “Tudo já foi feito e tudo depende da forma como você se apropria. Você se apropria trazendo para si, digerindo, tornando seu.”

Coelho explica que o cinema e a dança sempre o influenciaram mais que as outras artes. Mais do que a literatura, por exemplo. Mais até do que as próprias artes visuais. Vê uma coreografia de Pina Bausch e tenta transportar aquilo para o papel.

André é — ou foi — ator, tendo estreado profissionalmente pelas mãos de Regina Vogue e contando no currículo com uma passagem longa pelo emblemático Ateliê de Criação Teatral, o ACT, de Luis Melo. Através do teatro, da dança, da meditação, da linguagem corporal, é que diz ter ampliado seu canal sensitivo. “Me sinto muito ator desenhando. Muito, muito mesmo. Tento experimentar ao máximo as sensações da vida.”

Pergunto se pretende, um dia, voltar a atuar. André responde que não sabe, que não costuma fazer planos. Mas que se voltasse, teria que ser com a mesma entrega e autoria que dedica hoje aos seus desenhos.

Até Oito, Sua Polpa Macia

No conto homônimo, Até Oito, Sua Polpa Macia, Caio Fernando Abreu descreve as transformações de um homem no tempo de se contar até oito, como uma fruta que também amadurece. O autor nunca deixa claro se tratar de estar o homem maduro a ponto de oferecer-se para ser desfrutado ou, ao contrário, estar preparado para morder a fruta. Seja como for, estão preparados os dois, o homem e a fruta. Maduros. Prontos para morderem ou serem mordidos.

Assim, também, André passou seu tempo, lento, contando até oito. Durante a contagem, em seu ateliê, esteve descobrindo e aprimorando a técnica dos traços fluídos e rabiscados que marcam e evidenciam seus desenhos. Através dos exercícios individuais ou das conexões artísticas que promoveu — como o Encontro de Desenhos, onde reunia vários artistas para a retratação de modelos vivos nus — , Coelho buscou a identidade autoral que caracteriza sua obra hoje.

“Eu sempre quis ser um artista autoral, não um designer versátil”, conta André, que também é convidado, como ilustrador, para criar peças e materiais de comunicação. “Queria ser chamado para um trabalho não para me adaptar a linguagem dele, mas exatamente porque o trabalho precisasse da minha identidade, da identidade do meu desenho”, analisa. “Hoje, fico feliz quando recebo este retorno.”

“Me sinto muito ator desenhando. Muito, muito mesmo. Tento experimentar ao máximo as sensações da vida.” (André Coelho)

Saindo da Toca, a Lagarta

Apesar de ter um trabalho intimista, quase minimalista, e de ter uma relação íntima e silenciosa com seus desenhos, André tem se aventurado em convites para intervenções urbanas — como o tapume da praça da Espanha, aqui em Curitiba, e o Garimpo das Artes 2014, em Belo Horizonte. Pergunto como tem sido este encontro com o spray e as grandes proporções.

— Gosto do exercício de ampliar meu desenho para fora do meu foco de visão, para fora da folha. Você tem que desenhar com o corpo, criar uma relação com o espaço, precisa se afastar para ver. Estou aprendendo a explorar esta linguagem das ruas. Tem sido algo complicado aliar a técnica da grafitagem aos meus traços finos.

Independente destas intervenções explícitas, André, o coelho mais uma vez transmutado em lagarta, quer se transformar e sair para a vida. “Sempre tive uma tendência a ficar ensimesmado. Agora que me sinto mais maduro, estou fazendo uma força muito grande para sair de mim mesmo. Estou buscando a troca. As linhas contínuas de meus desenhos parecem ter ligado as coisas na minha vida. Me senti forte. Comecei a criar um diálogo intenso com o externo.” Por isso gosta de estar nas ruas, nos croquis urbanos, nas redes sociais. “Gosto do diálogo com as pessoas, com o espaço urbano, desorganizado. Gosto de estar lá fora.”

E mesmo quando não está lá fora ou nas redes sociais, André cria as formas de curtir a vida e compartilhar o trabalho. Dentre seus próximos objetivos, está o interesse já manifestado de continuar abrindo a toca. Quer seja inaugurando uma pequena galeria anexa ao ateliê para a exposição de seu trabalho ao público, quer seja abrindo o ateliê à visitação, quer seja realizando novos encontros coletivos de desenho, o casulo quer deixar o coelho. Conta até oito, e já está lá fora.

André Coelho | Foto: Flávia Wolf

Filho de Peixe, Coelho é!

— Donde esse seu interesse tão forte pela cidade? — , perscruta Alice, já que o negócio é sair da toca e voltar às ruas. — Talvez por ser filho do arquiteto que ajudou a construir a identidade urbana da cidade? Talvez por quê o coelho olhasse pra fora da mesma forma como olhava para dentro, reconhecendo a sua própria impressão digital e, depois do oito, a impressão desta digital no lugar em que vive, como os tapumes da cidade ou os croquis urbanos? — Tal qual o chá trocado pelo café, Alice não sabe, apenas se faz de sabida.

"Donde esse seu interesse tão forte pela cidade?", perscruta Alice, já que o negócio é sair da toca e voltar às ruas.

— Não sei. Sinto que tenho que me relacionar com a cidade através do desenho. Talvez, sim, por ser filho de um arquiteto que ajudou a construir a imagem da cidade, por meu irmão ser um documentarista que ajuda a documentar a história dela, pelo simples fato de viver nela.

— Você pergunta a opinião deles, da família, sobre sua obra? — continua, ingênua, Alice.

— Frequentemente. São pessoas com quem eu conto muito. Não como opinião de pai, mãe ou irmão, mas de críticos. Críticos pertinentes.

A mãe conta, aos risos, que antes de entregar uma obra finalizada, sempre que possível o filho recorre a ela como primeira espectadora. Quando não gosta, Denise aponta fragilidades, avalia, critica. “Mas agora não posso mais mexer, mãe. Está tarde, tarde, muito tarde”, diz ele. “Pois deveria, meu filho. Deveria.” Termina, rindo, a mãe. Que por ser coelho, não é coruja.

O Resto é Silêncio

Passadas duas horas de conversa, o ateliê volta a ficar do jeito que seu dono gosta. Em silêncio, depois da troca.

Alice deixa agora o recinto, voltando a ser somente o que era e o que nunca deixou de ser: apenas eu. Mentira. Ela não volta a ser nada. Tudo muda. O tempo, a vida, a cidade, os traços, a lagarta, o Coelho, Denise, Alice. O ateliê já não é mais o mesmo de há 20 anos, o André já não é mais o mesmo de há 36, eu já não sou mais o mesmo de há duas horas. Tudo se transforma. Bastaria contar até oito. Não fosse a vida, paradoxalmente, apenas o tempo de se contar um.

E o resto? Bem… o resto, você sabe, é silêncio.

Silêncio que ele, o Coelho, tanto preza, por não estar correndo.

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.