O arquiteto Manoel Coelho, criador da primeira identidade visual urbana criada para uma cidade, Curitiba/PR | (Foto:Lex Kozlik)

O Manezinho de Curitiba

O arquiteto Manoel Coelho tinha o sonho de fazer da sala de casa uma praça para encontrar amigos. Deu tão certo que, quando acordou do sonho, ele e seus colegas tinham construído uma cidade ao redor de casa.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readNov 16, 2016

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“No dia 23 de dezembro, esta casa é incrível”, me recebem contando Manoel Coelho e sua esposa, a ceramista Denise Coelho. “É aniversário do Manoel, então reunimos as pessoas aqui em casa e costuma ter 60, 70 pessoas”, relata ela. “Ultimamente não mais”, emenda ele. “Tudo tem sua época. Já passou.”

Me falta um calendário às mãos naquele momento, mas “bem”, penso eu: “se a casa é incrível no dia 23 de dezembro, depois de amanhã deve ser Natal." Deveria eu, então, parabenizar o arquiteto?

Sigo a conversa sem ter certeza do dia, mas não importa. A casa tem 35 anos e continua contemporânea. Se os encontros no aniversário de Manoel não acontecem mais com o entusiasmo juvenil de antes, a vivência deles continua impregnada naquelas paredes, enchendo a casa de vida e a vida de histórias. Nada tem sua época. Tudo permanece.

Manoel e a esposa, a ceramista Denise Coelho: os anfitriões | (Foto: Lex Kozlik)

Manoel Coelho está na história da arquitetura de Curitiba desde o início. Quando ele nascia em Florianópolis, em 1940, Alfredo Agache rascunhava os traços do primeiro plano diretor da cidade. Depois, em 1967, o manezinho se formou na primeira turma, do primeiro curso de arquitetura da Federal do Paraná, onde mais tarde foi professor e coordenador. Já formado, participou do início do planejamento urbano de Curitiba no final dos anos 1960, como estagiário do Ippuc, e ocupou a Secretaria do Desenvolvimento Urbano em 1990.

Nos anos 1970, desenvolveu o campus curitibano da Universidade Católica. Passou a década desenvolvendo cidades e suas identidades: Criciúma, Urussanga, Curitiba. Nos anos 2000, a Universidade Positivo o convidou para projetar também suas novas instalações. A partir daí, uma nova vida de conhecimento foi arquitetada por ele: edifícios didáticos, teatros, monumentos, bibliotecas, parque de exposições e eventos.

Coelho projetou muitas casas onde antes só havia chão. Mas também foi o responsável por contribuir, através da criação de logomarcas e projetos de comunicação carregados de simbolismo, para a consolidação da identidade e da personalidade curitibana. “Pelo menos, o que resta dela”, lamenta-se.

Apesar de sua formação catedrática, as aptidões criativas e profissionais de Coelho ultrapassaram em muito as perspectivas firmes e retas dos seus traços arquitetônicos. Lá fora, nas ruas da cidade, a alma de Manoel Coelho está por tudo: nas placas com os nomes das ruas, no mobiliário urbano, na revitalização da Praça Osório, na identidade visual do MON — tão icônica quanto o próprio museu — , no trânsito.

Coelho teve o privilégio de participar, no início dos anos 1970, do movimento de arquitetura, urbanismo, planejamento, preservação e linguagem do patrimônio histórico de Curitiba, iniciado na gestão de seu amigo Jaime Lerner. Até então, pouco se fazia isso.

“Foi difícil para metrópoles como Rio e São Paulo admitirem que ideias mais avançadas para o desenvolvimento urbano nasciam em cidades menores, como Curitiba”, relata o arquiteto, responsável pelo primeiro projeto de sinalização urbana brasileiro a abranger uma cidade como um todo, em 1972. “Em São Paulo, era exclusividade da Avenida Paulista. Tudo que a gente fazia era mais abrangente. Esta é que foi a grande diferença de Curitiba: havia sempre uma visão de conjunto.”

Manoel também é criador de um de nossos maiores patrimônios simbólicos que, por não ter sido tombado, acabou aniquilado por Beto Richa no seu primeiro dia de sua gestão: a saudosa logomarca que atravessou 16 anos como símbolo da cidade, trazendo a simpática folha de árvore no lugar do “A”. Lembra?

“Foi novidade criar uma identidade visual para uma cidade”, relembra ele. “Arquitetura e urbanismo, todo mundo já conhecia, mas aquilo era algo novo. Não apenas uma marca”, conceitua. “Significava um espírito de administração da cidade, a qual cada gestão cedia uma personalidade. Representava um símbolo firme da postura de vanguarda que Curitiba assumira em relação às outras cidades brasileiras.”

Lá fora, nas ruas, Coelho plantou ainda milhares de árvores. Entalhou-as no metal ferroso dos nossos pontos de ônibus e táxis, projetando nelas a silhueta de araucárias que já não existem mais para projetar sombra sobre nossas calçadas.

Em compensação, no quintal de casa, bem no meio da cidade, Manoel Coelho tem uma araucária no seu jardim. “O que logo me encantou no terreno foi o casal de araucárias que tinha atrás”, conta o arquiteto. “Aqui, colhemos pinhão do pé, nunca compramos”.

Sala de jantar e living de acesso | Residência Manoel Coelho | Curitiba/PR | (Foto: Lex Kozlik)

Coelho tentou aplicar na casa os conceitos e concepções que apreendeu na faculdade, com Rui Otake, e que também passou para seus alunos: de que a casa é uma praça onde se encontram os amigos. De que a casa é o terreno todo, não apenas o volume arquitetônico projetado nele.

“Parece um conceito óbvio”, explica Coelho, “mas não é. A casa tem uma relação muito grande com o exterior, não é apenas a área coberta. Este foi o conceito que eu me esforcei para expressar.”

Uma casa que desliza naturalmente para cima e para baixo, para dentro e para fora | Residência Manoel Coelho | Curitiba/PR | (Foto: Lex Kozlik)

A casa se estende por quatro níveis, num terreno de 14 metros de extensão e 50 de profundidade. Living de acesso e sala de jantar no pavimento de entrada, sala social embaixo, sala íntima em cima e quartos no último. Tudo sob uma grande e única cobertura, pela qual os espaços fluem harmoniosamente por baixo.

Nas áreas comuns, portas e paredes separam apenas o escritório e a cozinha. “Hoje eu vejo que nem estas divisórias precisavam”, contemporiza o próprio projeto, Manoel.

Parede dividindo uma das salas do escritório, uma das poucas divisórias da casa: "Hoje eu vejo que nem estas precisava", contemporiza Manoel o próprio projeto | (Foto: Lex Kozlik)

A piscina, em forma de gota, circunda uma das duas araucárias. Coelho gosta de dizer que é uma gota d’água trazida de Florianópolis. “Eu nasci de frente para o mar. Tinha a minha casa, a Praça da Alfândega, a rua e o mar.” Por isso, gosta de dizer isso sobre a piscina.

O arquiteto abriu espaço no deck e desenhou a gota de forma a integrar a natureza e a arquitetura. Harmonizou as coisas que já são, como as árvores, com as coisas que o homem cria, como as piscinas.

O terreno, íngreme, foi a principal dificuldade a ser vencida. Mas agora, 35 anos depois, Manoel se orgulha de não ter tirado nenhuma colher de terra para erguer a casa. Apenas acomodou-a à terra. “Por isso a casa tem estes níveis, porque ela vai descendo. Se adaptou ao local, à natureza.”

Sala social | Piso de baixo | Residência Manoel Coelho | Curitiba/PR | (Foto: Lex Kozlik)

O cuidado que Manoel teve há mais de 30 anos para fazer a casa, hoje em dia virou moda. Chama-se sustentabilidade. Mas, de acordo com o anfitrião, um arquiteto consciente desde sempre esteve preocupado com isso.

“Não é coisa atual, deste século, destes últimos anos. Só que agora o cidadão passou a dar mais valor a isso, o que é esperançoso para o futuro.”

O projeto foi criado por Coelho no final da década de 1970. “Eu o fazia em casa, à noite”, projeta ele a memória. Embora relate que consultasse a família, Denise conta que era tão fascinante a realização do esposo com a construção do projeto, que o deixava à vontade para concebê-lo como quisesse. “Assim como eles tiveram a liberdade de opinar”, pondera Manoel, acomodando a família no projeto com a mesma facilidade com que acomodou a casa ao terreno.

A casa integra o que está dentro e o que está fora, a arquitetura e a natureza, a araucária de Curitiba e a gota d’água de Florianópolis, de formas naturais e aconchegantes. Não tem cortinas. Apenas persianas, e com o único intuito de não estragar os móveis.

Residência Manoel Coelho | Curitiba/PR | (Foto: Lex Kozlik)

“Você está sempre olhando para fora,como você está vendo agora”, estende Coelho o meu olhar. “E de fora para dentro também. Afinal, os cidadãos moram numa rua, que faz parte de um bairro, que faz parte de uma cidade. A casa, portanto, tem que fazer parte deste contexto”.

Este contexto é Curitiba. Voltemos à ela.

Conto à Denise que a grande maioria dos curitibanos e do Brasil acompanhou orgulhosa e se identificou com a construção daquele espírito urbano proposto pelo marido dela e sua turma, colegas de vida e faculdade de Manoel, na década de 1970: Jaime Lerner, Domingos Bongestabs, Abrãao Assad, Cenevivas. Pergunto como foi acompanhar essa trajetória dentro de casa. Como ela sentiu com os próprios olhos as transformações que o marido e os colegas promoviam na cidade.

“Sempre achei o Coelho muito criativo e muito entusiasmado: com o curso, com a arquitetura, com a cidade. As mudanças de Curitiba desde que Coelho se envolveu com o grupo que a reformulou foram muito grandes. Eles amavam a cidade e sabiam o que estavam desenvolvendo para ela. Foi surpreendente esta fase: uma patotinha fazendo algo por Curitiba e pelos curitibanos, que transformou a cidade.”

“E sobre a transformação da casa no mesmo período?”, pergunto.

Pai de três filhos, a casa ficou grande demais para o casal quando eles foram embora. “Têm arquitetos que defendem que uma casa deveria ser projetada para crescer e depois diminuir”, diz Manoel, acompanhando, neste ritmo, a expansão e retração natural das famílias.

Ao contrário de uma cidade, que cresce para nunca mais encolher, toda casa é uma metamorfose: vai ficando pequena à medida que a família cresce, cresce junto com ela quando é possível, como foi o caso dos Coelho, e, por fim, fica grande demais quando os filhos crescem e saem.

Os "meninos”, como chama a mãe aos três filhos, continuam marcando presença na casa através do registro de seus trabalho ou de retratos nas paredes— “bem coisa de manezinho”, relata Manoel.

Os filhos continuam marcando presença na casa através de retratos nas paredes: “Bem coisa de manezinho”, contextualiza Manoel | (Foto: Lex Kozlik)

E a paixão da esposa por Curitiba, é tão grande quanto a do marido? “Eu gosto muito de Curitiba, mas também gosto muito da cidade dele”, molda a ceramista, mudando as coisas de estado e de perspectiva.

“O senhor acha que teria conseguido contribuir tanto para a construção de Florianópolis, se tivesse escolhido viver e trabalhar por lá, quanto conseguiu contribuir para Curitiba?”, pergunto.

Florianópolis é muito complicada. Tem uma natureza exuberante e eles destroem. Já tomei grandes broncas por lá: vocês não gostam do mar, que fazem aterro e o afastam duzentos metros para longe? Vocês não aprenderam a conviver com o mar? Eles têm uma mentalidade muito esquisita, muito ruim, não aprenderam com o desenho da natureza”, confidencia. “Eu fico muito triste. Talvez por isso eu venha me fixando cada vez mais em Curitiba. Aliás, já estou fixado. Já sou curitibano.

“Parabéns”, me despeço eu, soltando finalmente o cumprimento que segurara desde o início. Não é aniversário do arquiteto, mas ele merece parabéns mesmo assim. Por integrar tão bem sua vida à sua família, sua casa, sua rua, seu bairro, sua cidade, seu país.

Parabéns, Manoel Coelho, por fazer com que todas as ruas de Curitiba pareçam convergir para uma única praça, na sala de uma casa, onde um homem recebe seus amigos e brinca com eles de construir uma cidade ao seu redor.

Denise e Manoel Coelho, contemplando a sombra da araucária projetada sobre a piscina: "uma gota d’água trazida de Florianópolis" | (Foto: Lex Kozlik)

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.