Sabe Quem Morreu!?
Essa é a pergunta que para tudo: uma roda de conversa, um grupo de WhatsApp, o plantão de notícias e até você, lendo essa revista. Mas e quando quem morre sou eu: "espelho, espelho meu", quem pergunta quem morreu!?
A morte atravessa séculos para nos encontrar. Num infarto do miocárdio, num acidente de trânsito, num quarto de hospital, numa poça de vômito no banheiro de casa ou num parque de diversões repleto de gente. É certo que ela virá. Nascemos sentenciados de morte. No entanto, a escondemos debaixo do tapete tanto quanto possível.
No século XX, a morte passou para o ambiente esterilizado dos hospitais, escondida e calada. Até então, morria-se em casa, via-se, velava-se em cima da mesa. Hoje, apesar de o obituário da vir editado no caderno , como um recado eloquente a nos lembrar muito bem o lugar que a morte ocupa no dia a dia, não se convive com ela. A morte é uma espécie de não acontecimento. Morre-se longe dos olhos.
O sociólogo alemão Norbert Elias chama este isolamento e segregação dos velhos e moribundos de “bastidores da sociedade”. Como se a morte devesse ser ocultada e imediatamente esquecida. O que os olhos não veem o coração não sente?
A vida é só o tempo de se contar um
“Lava-te do rosto o assassinato, meu príncipe, e lança um lânguido olhar à nova Dinamarca”, nos parece dizer a sociedade sobre a morte e sobre o luto, com a mesma pressa de Gertrudes a Hamlet: antes que se gastem os sapatos com que seguiu o enterro de seu pai.
A despeito do tabu na vida, a morte sempre foi um prato cheio para a literatura e para as artes em geral. Seja no campo das artes visuais, do cinema, do teatro, da dança, da música ou da literatura, a morte inspirou grandes obras, em todos os tempos. “A morte é a grande musa das artes e da filosofia”, entra na conversa Camila Appel, redatora do programa Conversa com o Bial e blogueira da Folha de São Paulo , com o blog Morte sem Tabu . “Toda pessoa que se proponha a refletir sobre a vida, vai refletir sobre a finitude.” Ser ou não ser: eis a questão. “Muitos artistas se alimentam deste conflito, que é o maior que alguém em profunda reflexão pode ter: como assim, eu vou morrer?”, completa ela.
Karl Ove Knausgård e Paul Auster escreveram sobre a morte do pai; o diretor e roteirista norte-americano Allan Ball fez uma série imprescindível sobre o viver e o morrer, Six Feet Under ; Amy Winehouse fez um álbum todo sobre o luto e morreu depois; Jean-Michel Basquiat, o jovem artista pop dos anos 80, pintou Cavalgando com a morte e “caiu do cavalo” aos 27; Tólstoi se tornou uma espécie de “especialista em morte na literatura” de tanto descrever pormenorizadamente o trespasse de seus heróis; e Shakespeare escreveu uma tragédia sobre um coadjuvante, Horácio, que mantém seu sopro de vida neste mundo apenas para contar a saga do seu primo e protagonista, Hamlet. Maldito fardo!
Morrendo em primeira pessoa
Aqui, no Brasil, Clarice escreveu sobre a hora da morte, que é a hora da estrela; Gerald Thomas dirigiu um eloquente espetáculo sobre a morte da mãe, Rainha Mentira ; Brás Cubas escreveu suas memórias póstumas através de Machado; o artista plástico Flávio de Carvalho retratou sua mãe morrendo numa Série Trágica de nove desenhos em tamanho natural; Gilberto Gil, Caetano, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e inúmeros outros sambistas e compositores têm um vasto repertório sobre a morte; e Glauber Rocha foi o primeiro a encarar a morte sem desvios no curta-documentário Di Cavalcanti Di Glauber , quando foi ao funeral do artista com uma câmera na mão e uma ideia bizarra na cabeça: filmar o defunto em close, enquanto a família do morto pedia aos berros que ele fosse embora.
Mas se as artes sempre tiveram a morte como tema, o morrer artístico também vem se tornando uma narrativa cada vez mais confessional, de não ficção, escrita na primeira pessoa do singular. Nos últimos anos, David Bowie e Leonard Cohen, “ao saber que iam morrer” — digo, na presença iminente da morte; digo, ao saber do diagnóstico incurável de suas doenças — fizeram um álbum de despedida; Oliver Sacks, o neurologista e escritor anglo-americano, ao saber de sua metástase sem volta publicou uma série de belíssimos textos de despedida, tecendo odes à vida; os textos de Sacks, por sua vez, inspiram-se na autobiografia de poucas páginas do filósofo oitocentista David Hume, escrita quando este também soube da sua morte anunciada por uma doença incurável.
Cartas para além dos muros
Assim é que, se boa parte das pessoas, senão a maioria, ainda prefere morrer nos bastidores, longe dos olhos dos outros, uma pequena vanguarda de pioneiros já escolhe vir ao centro do palco para morrer, oferecendo seu “repertório de morte” como arte. Tal qual a atriz Maria Alice Vergueiro, vanguardista até à morte.
O que acontece agora é que com a tendência à narrativa íntima e confessional proposta pelas redes sociais, estas expressões artísticas ganham visibilidade e naturalidade. Afinal, se a cultura de massa do século XX colocou todos os tabus no armário e a morte nos bastidores, a cultura da convergência do século XXI tem exibido o making-of desses bastidores.
Em três cartas para além dos muros — como ficaram conhecidas as crônicas -, Caio se esforça para dizer. Na primeira, dá pistas — “alguma coisa aconteceu comigo” -, despista — “alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela” -, pede compreensão — “por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer” -, cumplicidade — “escuta bem, vou repetir no seu ouvido” — e promete retribuir a confiança: quando souber finalmente o que foi, será claro.
Na segunda, já a caminho do céu ou do inferno, um tanto quanto perdido entre prosa e poesia, descreve sobre anjos e demônios. Na terceira, Caio finalmente escreve o inaudito, “agora assim, mais claramente”: estava com AIDS, morreria.
A partir daí, tomado por uma certeza inconsciente de que o melhor que podia fazer era continuar escrevendo — “a minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento” -, e também porque, apesar da morte, “a vida grita e a luta continua” — a derradeira frase da última carta -, Caio escreveu. Escreveu, escreveu, escreveu.
Viva la Vida
“Em quem está com Aids o que mais dói é a morte antecipada que os outros nos conferem”, escreveu. Talvez por isso Caio conseguisse contar com tanta força o que visse, como a visão do próprio rosto refletido nas pupilas dilatadas da morte: porque já estava lá, sem que ainda tivesse deixado de estar aqui. Pelo lugar privilegiado em que se encontrava.
Fazer o quê, se o infinitivo do verbo viver é também o gerúndio do verbo morrer? Um dia nascemos, um dia morremos, e isso é tudo. “Se tiver de ser agora, não está por vir. Se estiver por vir, não será agora. E se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo!”
A vida está morta. Viva la vida!
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