"Nós" (Dir.: Márcio Abreu) | Grupo Galpão | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Teatro com sopa, que delícia

Ensaio sobre o teatro, o cinema e a contemporaneidade

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readJun 5, 2017

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Nós, no plural, vira quem?

O teatro é a mesa ao redor da qual a família se reúne, ponto de encontro entre uma coisa e outra: entre isto e aquilo, realidade e ficção, aqui e lá, agora e depois, passado e futuro, eu e você, atores e plateia, espaço de comunhão, partilha.

Na era do convívio digital, o teatro é um dos poucos lugares onde o fenômeno do presente ainda acontece: eu e você, aqui e agora, comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar. Não interessa a mais ninguém.

Vamos a um show de rock e ao invés de ver com os olhos, vemos através da tela. Na ilusão de que registramos o fato, nos escapa que na verdade o perdemos: desde o instante mesmo em que o presente acontece, estamos separados dele por uma tela. É apenas através dela que o vemos — o presente. Andamos em ruas de verdade, mas guiando em terceira pessoa nossos avatares: “Rômulo Zanotto esteve não sei onde”, “está se sentindo não sei como” e “têm interesse em não sei quê”. Passamos ao largo de quem passa ao lado, porquê no instante em que o outro passava meu avatar perguntava ao dele por onde andava.

Vivemos o tempo todo entre dois mundos, o real e o virtual, mas sem que nunca estejamos de fato completamente aqui, nem de fato completamente lá. Onde tudo é simulacro: eu me iludo que estive presente porque filmei e compartilhei, você jura que esteve presente porque assistiu minha postagem. É um tempo onde tudo se registra, se fotografa, se eterniza, se memoriza, se elipsa e se perde, pois tudo é de mentira. Nada se vive.

"Nós" (Dir.: Márcio Abreu) | Grupo Galpão | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Viver é estar inserido no presente, com todos os sentidos imersos na experiência. Nas palavras do monge budista Thich Nhat Hanh, “você tem de estar completamente desperto ao presente para apreciar um chá. Somente na consciência do presente suas mãos podem sentir o prazeroso calor da xícara. Somente no presente você pode saborear o aroma, provar sua doçura, apreciar sua delicadeza. Se você está remoendo o passado ou se preocupando com o futuro, perderá completamente a experiência de desfrutar a xícara de chá. Você olhará para a xícara e o chá terá acabado.”

O futuro já passou, ninguém viu

O frase acima é uma frase do espetáculo Nós, a mais recente produção do grupo mineiro Galpão, dirigida pelo curitibano Márcio Abreu. O espetáculo foi uma das atrações de encerramento do Festival de Curitiba, que terminou como começou: com festa. Se a de abertura foi de arromba, no palco do Guairão, a de encerramento foi pequeninha, no palco do Guairinha. Mas que festa!

Atores vindo de todos os lados, a plateia subindo ao palco, os atores cosendo a cena e cozinhando a sopa, a plateia assistindo a peça e tomando a sopa. É Curitiba e é Minas, é vida e é teatro, é celebração e é introspecção, é divino e é profano, sou eu e é o outro: o encontro, a comunhão, a partilha.

“Chumaços de cabelos, destroços de ossos.” Todo mundo comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar. Repetição, alguma coisa está fora da ordem, não interessa a mais ninguém. Só à gente, aqui, agora, comungando, partilhando. Eu, tu, ele. Nós, vós, eles: bebendo a mesma bebida, comendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar. Cacos de vida, destroços de ossos.

“Nós” | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Só me interessa o que não é meu

Márcio Abreu — o diretor convidado desta montagem do Grupo Galpão — é também curador do Festival, ao lado de Guilherme Weber. Pela primeira vez em 26 edições, os dois escolheram um aforismo como inspiração: “só me interessa o que não é meu”. Para além do senso comum atribuído à frase de Mário de Andrade — pelo qual se diz que “o seu, digerido, será meu” — a atriz Beatriz Azevedo ressignificou-a, atribuindo-lhe um novo significado: “o meu, seu, devorado, será Outro.”

E assim terminamos nós esta edição do Festival: com nosotros — mas quem é nosotros, é nós ou é os outros? — reunidos ao redor da mesa, no palco do Guairinha, comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar: cacos de vida, alguma coisa está fora da ordem, “o que foi que você colocou na minha caipirinha?”, risos. Repetição, o azedo do limão, cacos de vidro, destroços de ossos. Um teatro onde nada é improviso, posto que tudo é vivo: estamos a encenar um jogo convosco, enquanto a vida de verdade acontece no tempo em que a gente encena. Os imprevistos ficam mesmo para os cacos de vidro.

“Nós” | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Filmar a sopa ou tomar a sopa?

A pergunta acima é o clássico dilema de Perlov, documentarista que registrou sua vida em vídeo em meados do século passado. Espécie de “ser ou não ser” do cinema, representa o humano moderno cindido entre o desejo de viver ou registrar a vida. Observar a sopa ou tomar a sopa? Observar a vida ou sorver a vida?

Pois parece que esta grande questão do cinema do século XX foi muito bem resolvida por Márcio Abreu e pelo Grupo Galpão neste teatro do início do século XXI: é preciso comungar a sopa!

Antônio Edson | “Nós” | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Acadêmico de teatro, lembro de mim e meus colegas a discutir, há 20 anos, o que seria um teatro pleno, completo, que envolvesse todos os sentidos. Se o cinema — e a televisão, va lá! — era — e é! — a linguagem artística da ilusão dramática por excelência — tornando o teatro, em comparação, cada vez mais patético — ;e se o teatro tornava-se cada vez mais frio, cerebral e racional — um atributo analítico, da intelectualidade, cuja linguagem artística mais adequada seria a literatura — ; então como fazer um teatro relevante, pertinente, cuja existência se justificasse?

Embora a fórmula ainda não houvesse se materializado, os acadêmicos que éramos vislumbrávamos o caminho. Esquecendo a ideia do espectador passivo, esquecido, escondido no escuro — mais adequado ao cinema –; e deixando de lado também o espectador analítico, intelectual, pensante — este, por sua vez, mais pertencente aos livros –; no teatro o espectador se faz presente de corpo e alma. Algo vivo acontece: um encontro, como no chá de Thich Nhat Hanh.

“Nós” | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

Longe da mera interatividade — palavra tão recorrente quanto assustadora entre as plateias do finzinho do século (quantos não deixaram de ir ao teatro nos anos 2000 só porquê a peça era “interativa”) — era preciso seduzir o espectador despertando-lhe os sentidos.

E se a divisão entre o que é palco e o que é plateia não fosse tão delimitada? E se os espectadores não ficassem no escuro, escondidos como se não tivessem nada a ver com o que se passa no palco? E se a peça tivesse café, não poderia ter cheiro de café? E tendo cheiro de café, os espectadores não poderiam tomar café? E se no lugar do café fosse uma sopa? E se nos reuníssemos, a nós e a eles, nosotros, ao redor da mesa, fazendo teatro como quem faz uma sopa? A última ceia de uma velha que tem que sair. Morrer?

Teuda Bara | "Nós" | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Annelize Tozetto

“Do que vocês estão falando, gente!?”, pergunta a velha. “E se elas fossem para Moscou?”, responde outra com um fala que é texto da peça mas também nome de outro espetáculo do Festival. Só que Moscou não existe, crime & castigo, “o machado no crânio da usurária”, o fracasso do coletivo, a velha que tem que sair, “não saio”, a hora de sair é a hora de morrer, a ceia, a última ceia.

The Last Supper

Este era o título de uma das montagens de formatura da minha turma de teatro, naqueles idos de 20 anos. Dirigida por Cristiane Bouger, com preparação corporal de Fernanda Machado, tinha as queridas amigas Carolina Fauquemont e Guta Ruiz no elenco. Sem a importância de um Nós, era apenas uma peça de formatura.

Fernanda Machado você sabe onde está, virou atriz global. Cristine Bouger, uma performer vivendo entre Curitiba e Nova York. Guta Ruiz, uma conceituada atriz paulistana transitando principalmente entre o cinema e o teatro (como toda grande atriz, Guta é protagonista de uma bela história trágica: o dramaturgo Mário Bortolotto levou um tiro para livrá-la). E Carolina Fauquemont continua sendo atriz, bailarina depois dos 30 e desenhista quando lhe faltam as palavras. Estes, somos nós, a partir do que me veio d´eles.

"Poesia com sopa?", é a frase original da peça: "Que delícia!" | Foto: Annelize Tozetto

O teatro é a mesa ao redor da qual as famílias se reúnem

Assim como é ao redor da mesa que a família se reúne, também é nos ensaios de mesa — portanto, ao redor dela — que partem os ensaios. Como analisa o ator e diretor português Jorge Andrade, todos os espetáculos começam com ensaio de mesa: “nada melhor, então, do que colocar uma mesa em cena”, conta ele, que utiliza uma mesa como elemento cênico em quase todas as suas montagens. “Ainda mais em espetáculos que jogam o tempo todo com a criação teatral”, continua o diretor, que esteve em cartaz com Moçambique no Festival, no palco deste mesmo Guairinha.

“Assim como os atores, enquanto personagens, estão reunidos em cena com os Ministros ao redor da mesa, tentando fazer com que os negócios singrem para o bem do país deles, também estamos nós, os atores, ao redor da mesa, a fazer de tudo para que o espetáculo funcione”.

"Moçambique" (Dir.: Jorge Andrade) | Cia. Mala Voadora (Portugal) | Guairinha | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Leonardo Lima

As mesmas coisas

“Tá precisando de ajuda?”, pergunta, o tempo todo, a velha que precisa sair no espetáculo do Galpão, repetindo sempre as mesmas palavras. “Você pode me ajudar?”, responde Michelle Pucci, atriz, pedindo ajuda para a plateia em outro espetáculo, repetindo sempre As Mesmas Coisas.

Eu ajudando à Michelle Pucci | "As Mesmas Coisas" (Dir.: Nadja Naira) | Sede da Cia. Brasileira de Teatro | Curitiba-PR (março/2017) | Foto: Paula Morais

Dirigido por Nadja Naira — iluminadora de Nós e uma das cabeças criativas da Cia. Brasileira de Teatro — , a atriz, na peça, dirige-se o tempo todo à plateia.

Michelle Pucci "contracena" com Lydia del Picchia, atriz do Grupo Galpão, na plateia de "As Mesmas Coisas" | Sede da Cia. Brasileira de Teatro | Curitiba-PR (março/2017) | Foto: Paula Morais

Num espetáculo intimista ao extremo, Michelle pede ajuda para fazer várias coisas, sempre as mesmas: colar fotos na parede, costurá-las depois no seu vestido, jogar no lixo, começar de novo, e só contar comigo. Bebendo a mesma bebida, comendo a mesma comida, respirando o mesmo ar. Não interessa mais ninguém.

Ela e a plateia | "As Mesmas Coisas" | Sede da Cia. Brasileira de Teatro | Curitiba-PR (2017) | Foto: Paula Morais

Pensem nas crianças mudas telepáticas

Na manhã do dia em que assisti Nós, assisti também Os Três Sobreviventes de Hiroshima, onde vítimas da bomba atômica relatam suas histórias sobre ela. Longe de ser uma montagem deslumbrante como qualquer uma das outras mencionadas aqui, a peça toca pela sensibilidade do relato e pela beleza do encontro.

Junko Watabane, Kunihiko Bonkohara e Takashi Morita | "Os Três Sobreviventes de Hiroshima" (Dir.: Rogério Nagai) | Festival de Curitiba (2017) | Foto: Virgínia Benevenuto

Quer fosse pela música de Vinícius de Moraes ou pelo livro-reportagem de John Hersey, eu já havia pensado e me condoído muito pelas crianças mudas telepáticas, vítimas da “rosa de Hiroshima”. Mas só o teatro me deu a emoção de estar ali, junto com os sobreviventes de uma bomba atômica. Ainda que não bebendo a mesma comida, nem bebendo a mesma comida— posto que nessa peça não se bebia nem comia — , mas respirando o mesmo ar! Tem coisas… que só o teatro faz por você! Nós, no plural, vira quem!?

Apoteose final de “Nós”, encerrando o Festival de Curitiba no palco do Guairinha | 09/04/2017 |Vídeo: Rômulo Zanotto

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.