(Imagem: Pexels)

Todas as Horas do Fim

E se amaram até o fim, vivendo muito do pouco que tinham, porque não teimaram em lembrar um ao outro, a todo instante, a toda hora, que haveria outro momento, que haveria outra vida, que haveria outra história.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
8 min readDec 20, 2016

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Não era a primeira vez e não seria a última que o boneco se apaixonava. Estranho então supor que daquela vez também quisesse que fosse para sempre. Mesmo sabendo que aquele não era o cara de sua vida. Mesmo sabendo que o cara, como anjo que era, estava reservado para outros destinos, para outros lugares, para mais alguém.

Quando o boneco encontrou o anjo — na sala do próprio apartamento, perdido dentro do seu computador — sequer desconfiava que ele fosse mesmo isso, um anjo. Só descobriu tempos mais tarde, quando o próprio anjo, entre lágrimas, lamentou-se não estar livre para viver o boneco como queria. Para amá-lo como ele realmente merecia. É que ardiam nele ainda os arranhões de uma certa queda. E a dor da ardência impedia-o de sentir a alegria do amor. Alegria que só viria a brotar tempos mais tarde, na exata medida em que o boneco assoprasse os arranhões e, uma vez cicatrizados, ele viesse a sentir só o amor, sem a dor.

A história era: o anjo viera à Terra. Não para morar ou habitar, mas sim para visitar. Embora não se percebesse logo de cara que ele era um anjo — suas asas haviam sido cortadas — , ainda assim alguma coisa nele revelava algo de sobre-humano. Como todos queremos algo de sobre-humano para dar as mãos, não faltaram mãos sedutoramente estendidas em direção às suas. E estando ele tão vulnerável ao amor e à paixão quanto um mortal, mas mantendo ao mesmo tempo sua ingenuidade de anjo, não tardou para que se atasse a uma delas.

E assim, pouco a pouco, o anjo foi insinuando ao seu parceiro de mãos dadas quem — ou o quê — ele era. Quando tardia e finalmente o outro entendeu que aquela criatura sobre-humana tentava revelar ser um anjo, cético e duvidoso, pediu que ele, como testemunho, lhe mostrasse então as asas. O anjo não gostava muito dessa história de testes, provas e desmentidos, mas era compreensivo e entendia que tudo isso eram mesmo atitudes tipicamente humanas. Então, por compaixão e pena da incredulidade e descrença dos mortais, aceitou o desafio.

Havia, contudo, um porém. Ao vir à Terra, as asas do anjo haviam sido cortadas em camuflagem. Só reapareceriam de novo quando ele voltasse para junto das estrelas, sua morada. Como poderia mostrar ao outro suas asas se na Terra não havia estrelas, e se quando voltasse para elas, não poderia levar consigo o companheiro das mãos dadas?

Foi assim que o outro conduziu o anjo ao precipício mais alto e perigoso do mundo. Ali, na beira do abismo, explicou ao anjo que aquele era o lugar mais alto onde um mortal poderia chegar. Tão alto que ao se encontrar com outra pessoa estando ali, com apenas um impulso, dizia-se, as duas chegariam às estrelas. O outro, então, pulou no colo do anjo e desafiou: “Vamos! Dê um impulso! Chegue às estrelas e me mostre suas asas!”

E assim foi. O anjo tomou um impulso e saltou. Quando atingiu o ponto mais alto do salto, o outro pôde ver surgir por detrás do anjo, às costas dele, um par de asas que só não era tão belo quanto o próprio anjo. As asas, em harmonia com sua fisionomia e seu sorriso, lhe tornavam incomensuravelmente tão mais belo ainda, que o coração do outro — ou de quem quer que o visse assim — pareceria sucumbir diante de tanta beleza e perfeição. Era linda a imagem daquele anjo, daquelas asas, daquelas estrelas.

No ápice da contemplação, paralisado diante de tanta poesia e encantamento em forma humana, menos por maldade ou por inveja do que por não saber o que fazer confrontado com tanta perfeição, o outro arrancou-lhe as asas. Era uma tentativa desesperada de tornar o anjo novamente humano e poder continuar vivendo ao seu lado. Afinal, não sabia que tratamento dispensar a um anjo. E assim, enquanto o outro pousava docemente sobre a Terra utilizando as asas que não eram suas, o anjo descobria o vácuo e o abismo que havia depois do Amor.

Lá embaixo, sozinho, com febre e a chorar, o anjo procurava desesperadamente por suas asas. Queria encontrar de volta o caminho das estrelas e ficar lá para sempre. Mas no desespero, ele esquecera que na Terra suas asas sumiam. “Camuflagem”, lembrava . Embora não soubesse exatamente o que significasse isso, apenas repetisse o que ouvira dizer quando o mandaram à Terra.

E assim se sucedeu algum tempo de tristeza e solidão à procura de suas asas. Até que. Um dia — ou uma noite, como prefiram os mais precisos — o anjo em sua casa na Terra, e o boneco em sua caixa, encontraram-se por acaso, escondidos atrás de outros nomes, outras ideias, outras histórias.

Ao se deparar com o boneco, o anjo então proferiu umas batidas à porta do coração dele que, só mais tarde perceberia, pareciam conter atrás de si um pedido de socorro. Algo como “por favor, me ajude a encontrar de volta o caminho para as estrelas” ou “fale-me do Sagrado Coração, porque eu preciso de ajuda”. E primeiro o boneco, com sua não-resposta, parecia dizer que não, que não ajudava. Mas logo depois, tomado de arrependimento e de uma vontade louca de pedir desculpas, metaforicamente estendeu-lhe a mão, sorriu e pôs-se a falar do Sagrado Coração. De agora em diante, prometeram-se, não teriam mais medo de tempestade.

Sem demora, o anjo revelou ao boneco que procurava alguém. Não um alguém específico, como pudesse parecer escrito assim, mas “alguém para ter alguém, compreende?” Compreendia. Compreendia, sim. Mas compreendia também que, na verdade, o anjo não procurava ninguém. Ou procurava até, mas não para ter alguém — como afirmava — e sim para ajudá-lo a reencontrar suas asas, deixando-o partir depois. Afinal, não queria mais conviver com os homens. Queria viver para as estrelas. Era muito maior que o amor para reter-se a ele. Tinha medo também, é verdade. Mas era maior. Muito maior que ele. E por isso, desde o princípio, o boneco sabia que, por mais que quisesse, o anjo nunca seria dele. Queria ficar bom não para viver com ele, mas para ganhar as estrelas, que eram o seu lugar.

Mesmo ciente que o anjo precisava de seu amor menos para amá-lo em troca que para se fortalecer, mesmo ciente que teria que deixá-lo partir depois, o boneco deixou cativar-se. As duas criaturas foram, assim, se aproximando. O corpo do anjo se encaixando à espiral do boneco e a espiral do boneco se encaixando ao corpo do anjo de tal forma e a tal ponto que, se houvesse tempo — e não havia –, se houvesse permissão — e também não havia — , o encaixe seria tanto e tão perfeito, que um dia não se poderia mais dizer com precisão onde terminava o corpo de um e começava o de outro.

O boneco, então, sem contar ao anjo que sabia o que sabia, começou a cuidar dos ferimentos de seu corpo e de sua alma sem que ele se apercebesse disso. Tratou de soprar, beijar e acariciar cada fratura até que ela se transformasse em ferida, em cicatriz, em sombra, em som, em água, em nada. E foi embriagando o anjo com aquilo que lhe dava, sem saber que aquilo era amor.

Colocou uma foto do anjo numa moldura entre as estrelas, para que ele se sentisse em casa. Achava lindo olhá-lo, decifrá-lo, revelá-lo. Descobrir seus gostos, suas cores, seus cheiros. Descobrir que ele preferia os verdes aos azuis, que gostava mais de uvas que de maçãs, que tinha horror a copos de plástico e unhas compridas, que isso, que isso, que aquilo. Adorava aprender com o anjo que quando recebesse rosas amarelas eram alegria, brancas paz, vermelha amor.

O anjo fazia das tripas coração para não gostar do boneco mais do que o necessário. Só precisava que ele o ajudasse a alçar voo. Temia que, amando-o demais, descobrisse que estar ao lado dele já era voltar às estrelas. E nem esse aparente distanciamento do anjo assustava o boneco. Sabia que, quando estivesse curado, o anjo, mesmo não deixando de amá-lo, bateria suas asas e sairia voando a ganhar o mundo, como sempre sonhara. “Sou como um pássaro. Nasci para voar de um polo a outro.” Bobagem. Um polo a outro é mesmo coisa de pássaro. Quando se é anjo, deve-se falar em estrelas.

Foi quando o boneco voltou a pensar nisso, desta vez mais envolvido, que teve medo pela primeira vez. Medo do abandono. Medo de dar asas a alguém que, na verdade, ele só queria que morasse dentro de sua caixa. Medo de ajudar a ganhar o mundo alguém que ele só queria que ganhasse a si próprio, com toda sua humanidade e imperfeição.

De repente o medo. De repente a dor. De repente a angústia. De repente. Bem de repente.

E então a ponderação entre mandar embora, partir, não cuidar mais. Durante muitos dias, a dúvida: partir ou deixar ficar? E depois, uma única certeza. A de viver tanto e tão intensamente tudo o que restasse, que não houvesse tempo de pensar na morte. Ir até o fim. Se era três meses o tempo que tinha, viver com ele, em três meses, tudo o que planejara para uma vida toda. Ficar marcado de leve — mas indelével — em alguma — ou em todas — as partes do anjo.

O boneco só queria que dentre todas as pessoas e lugares que o anjo conhecesse, nunca se esquecesse dele. A distância é como um filtro, lera certa vez. Só ficam as coisas e as pessoas que realmente importam. Queria importar! Queria ficar eternamente cravado como uma memória no coração, na mente, no corpo e na alma do anjo.

Apesar da distância, o boneco tranquilizava-se sabendo que se encontrariam quando quisessem, todas as noites, quando sonhassem juntos, quando buscassem em outros braços seus abraços, em outros corpos seus corpos, quando lembrassem de tudo que viveram, quando se sentissem saudosos, quando se sentissem sozinhos, quando se sentissem, quando se, quando.

“Não sentirás minha falta?”, perguntou. “Sim. Mas eu mexo dentro de mim e te encontro.” Talvez.

De tudo isso, só lhe restava uma certeza Calcanhotto de que esse amor não iria parar de rolar, desencantar, nem ser tema de livro. Que o final não seria brusco como um ponto, mas suave como uma vírgula. E a beleza de toda a história seria chegar ao final e descobrir que as asas do anjo eram o próprio boneco.

“Camuflagem", lembraria-se então. E finalmente entenderia.

Este conto é parte integrante do prólogo do romance Quero ser Fernanda Young.

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.