Limana, a biblioteca pessoal de Lima Barreto

Escritor montou seu acervo pessoal em seu quarto, no bairro de Todos os Santos, no Rio de Janeiro.

Roteiros Literarios
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11 min readMar 30, 2021

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por Leonardo de Lucas

O escritor Lima Barreto

O conto A biblioteca, de 1920, narra o drama de Fausto Carregal, um farmacêutico que transportou consigo, até a velhice, uma vasta coleção de livros; única herança dos tempos grandiosos da família. Todas as outras lembranças haviam sido vendidas, doadas e perdidas ao longo dos anos. Aqueles volumes antigos e raros eram sua referência à memória paterna, como se deles emanasse alguma energia ou espírito ancestral. A questão para Fausto, no fim da vida, se concentrava em saber quem iria preservar esse legado.

A história relatada parece refletir a própria preocupação do autor, Lima Barreto. Já combalido e muito doente, o romancista, morador do bairro de Todos os Santos, no Rio de Janeiro, talvez estivesse, por meio dessa história, a se perguntar sobre o destino de seus pertences literários. Ao longo de anos, o escritor constituiu uma substantiva e generosa coleção, cuidadosamente catalogada, com direito a ex-líbris em cada um dos exemplares.

Bibliotecas particulares por si só despertam fascínio e curiosidade. Os livros expostos em estantes, além de representarem simbolicamente a posse de conhecimento ou cultura, quase sempre também revelam um pouco da natureza de seu dono. Há por vezes toda uma configuração específica, com o uso de móveis finos e de materiais bem elaborados para se criar uma atmosfera de requinte e sofisticação.

No caso de Lima, o seu acervo pessoal, ao contrário do das casas abastadas dos bairros dos ricos, antes de consagrar e exemplificar a reprodução de estruturas absurdamente desiguais de poder político, econômico e cultural, se apresenta como uma teimosa exceção. Num país em que a imensa maioria era analfabeta e que há poucas décadas abolira o regime de escravidão, as centenas de livros de um escritor negro causam estranheza e desconfiança na vizinhança dos subúrbios.

Rua no bairro Todos os Santos, no Rio

O seu mundo cabe todo em um quarto na Rua Major Mascarenhas. É lá que se refugia, quando não está no centro da cidade. Além de biblioteca, o cômodo é o dormitório e o escritório do autor. Ali se distancia fisicamente da vizinhança e dos outros moradores: seus irmãos, diferentes dele em termos de visão de mundo (exceção para Evangelina, professora de piano, que lhe era mais próxima); e dos gritos e delírios do pai, adoecido há anos com problemas mentais.

Quatro anos após a mudança para a casa de número 42, Lima abre um caderno para relacionar os seus títulos e documentos: “Inventário. Este livro é destinado a inventariar as obras existentes na minha pequena biblioteca. O catálogo farei depois, por intermédio dele. Rio de Janeiro, neste lugar de Todos os Santos, em primeiro de setembro de mil novecentos e dezessete. […] A coleção chama-se ‘Limana’”. O nome era uma forma de mostrar a intimidade e o apreço que o escritor tinha por aquele espaço: junção de “Lima” com “mana”, de irmã.

Em meio a quatro grandes estantes bem ocupadas, Lima vive rodeado por ao menos oitocentas peças, contando obras impressas e manuscritas. Parte significativa da coleção é em francês, idioma que o escritor dominava, mas também há alguns exemplares em italiano e espanhol, fora os em português. Sobre os autores franceses destacam-se Balzac, Anatole France, Flaubert, Zola, George Sand, Taine, Renan, Diderot, Rousseau, Voltaire, Victor Hugo, Chateaubriand, La Fontaine, Descartes e Pascal.

Os escritores russos, muito apreciados pelo autor, também têm lugar cativo, próximo da cama: Dostoievski, Tchékhov, Turguêniev e Tolstói. Havia ainda um pouco de tudo em termos dos grandes nomes da literatura e do pensamento: Cervantes, Dante, Shakespeare, Camões, Eça de Queirós, Sófocles, Aristóteles, Nietzsche, Confúcio, Poincaré, Darwin, Spinoza e Schopenhauer, Autores nacionais aparecem em menor número, talvez pela facilidade de encontrá-los na Biblioteca Nacional: Machado de Assis, José de Alencar, Cruz e Souza, Joaquim Nabuco, Claudio Manuel da Costa, Monteiro Lobato, dentre outros.

No meio das estantes, acha-se um vasto acervo de obras sobre o determinismo racial, teoria filosófica e “científica” que estava em plena voga na época. Lima estudava esses textos e deles extraia críticas severas e originais, que de uma forma ou de outra percorrem a sua literatura. Desse rol de escritores abomináveis fazem parte: Le Bon, Topinard, Haeckel, Gobineau, Moreau, entre muitos outros. Os temas se centravam na natureza biológica das culturas, na hereditariedade das patologias sociais e psicológicas, na degeneração e na desigualdade das raças humanas; assuntos que pautavam discussões sobre eugenia e embranquecimento da população por meio de políticas como o estímulo a vinda de imigrantes europeus ao país.

Outra vertente teórica que o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma condenava e fazia verdadeira diatribe em seus romances, crônicas e ensaios era o positivismo. Assim como no caso do determinismo racial, Lima também possuía muitos volumes dos principais nomes dessa escola de pensamento, principalmente europeus e brasileiros, de Auguste Comte a Miguel Lemos. Desde os tempos de adolescente, o escritor desafiava os amigos em discussões sobre essa filosofia social francesa; a sua era uma das poucas vozes discordantes e dissonantes a esse canto das sereias que mesmerizou a sua época.

Amigo de Edgar Leuenroth, José Oiticica e de outros nomes conhecidos do movimento, Lima também possuía um espaço dedicado aos livros e às revistas anarquistas, muitas das quais ele colaborava com freqüência, inclusive com artigos sobre a violência contra a mulher. Próximo a esses estavam também os títulos sobre a Grécia Antiga e sobre a África Negra, além de muitos volumes sobre história e geografia, cronistas de viagens.

No mais, a biblioteca tinha também tesouros afetivos, alguns livros dos seus anos de ginásio, lembrança das primeiras professoras, e um volume do Manual do aprendiz compositor, de Jules Claye, traduzido e editado do francês pelo seu pai, João Henriques Lima Barreto. Seus próprios escritos eram organizados em cadernos especiais, identificados com a etiqueta “Retalhos de jornal”. Ali se encontrava uma mistura de textos com recortes de publicações estrangeiras, principalmente ligadas à temática da questão racial, seja na França ou nos Estados Unidos.

Na literatura do escritor, a Limana aparece na composição de alguns de seus personagens mais emblemáticos: o major Policarpo Quaresma, de Triste fim de Policarpo Quaresma; o intelectual Gonzaga de Sá, de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; e o dentista clandestino Meneses, de Clara dos Anjos. Desses, a descrição mais aproximada é a da biblioteca do major Quaresma, entusiasta das produções nacionais. A coleção de Lima assemelha-se não só com relação aos títulos apresentados, mas também nas informações sobre o quarto, a casa e o próprio bairro de Todos os Santos.

“O major entrou para um aposento próximo, enquanto sua irmã em direção ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a uma cadeira de balanço, descansando. Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo ele formado era formado de estantes de ferro. Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os livros de maior tomo.”

Durante esses anos, Lima se referia àquela casa da Rua Major Mascarenhas como “Vila Quilombo”. Na crônica Bailes e divertimentos suburbanos, o escritor explica que o nome da modesta residência era para “enfezar Copacabana”. Em outro registro nos diários diz que a intenção era “assustar Copacabana”. Lilia Schwarcz, em Lima Barreto: triste visionário, destaca que tal atitude era ao mesmo tempo um desaforo e uma identificação: “Desaforo contra os elegantes do centro do Rio, identificação com a história dos povos escravizados”.

No fim de ano de 1918, Lima muda-se para o nº 26 da mesma rua. A Limana o acompanha na mudança, assim como a referência à moradia como Vila Quilombo. Ali viveria seus últimos anos, resistindo como podia a tudo e a todos. Sua arma era a inteligência, a capacidade de transformar as contradições que vivenciava em literatura, temperada com ironia, crítica e humor. De seu gabinete “trabalhava horas a fio, sem interrupção, escrevendo contra os donos da vida”, como diria Francisco de Assis Barbosa em A vida de Lima Barreto.

Nos derradeiros anos, o escritor dá cabo a nada menos que cinco volumes: Histórias e sonhos, Marginália, Feiras e mafuás, Bagatela e Clara dos Anjos. Com a exceção do primeiro, não veria publicado nenhum dos outros. Esses anos também marcam a redação de partes da que talvez seria a sua obra-prima, O cemitério dos vivos (que trata da sua segunda internação no Hospital Nacional de Alienados; curiosamente, o nome do protagonista, Vicente Mascarenhas, é alusão e homenagem à Rua Major Mascarenhas).

Lima sabia que não tinha muito tempo. De dentro de sua Limana, a preocupação com o seu legado lhe ocupava a mente. O escritor sabia, por conta da importância financeira que tinha na manutenção da casa e de seus moradores, que o destino da sua coleção ligava-se ao seu. Que fim teriam seus escritos, suas cartas, seus diários? O que aconteceria com suas coleções de revistas, com seus recortes cuidadosamente catalogados? E os mais de setecentos títulos?

Em A biblioteca, no conto já mencionado, o romancista imaginou uma saída radical. Ao final da história, o personagem Fausto Carregal, percebendo que nenhum de seus herdeiros daria qualquer valor ao espólio de seus antepassados para além do interesse monetário, optou por incendiá-lo em várias piras. Quando a fumaça escura e espessa da combustão dos livros se dissipou, o clarão das chamas, “muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do desespero…”.

No início da primeira obra escrita por Lima, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, a argumentação de cunho filosófico convida o leitor a uma reflexão que é o fio narrativo sobre a vida de Gonzaga de Sá: “Para compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu; como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte e como Ela o abraçou”. Pois o jovem escritor por meio de seus personagens parecia lançar um questionamento sobre o seu próprio futuro.

Por orientação de Lima, após uma noite boa de sono, apesar do resfriado e da febre, os irmãos se concentraram em cuidar do pai. Evangelina, pensando na saúde de Lima, foi levar-lhe um chá e encontrou-o recostado na cama, lendo tranquilamente um exemplar da Revue de Deux Mondes, uma das revistas francesas sobre cultura e política de que o escritor tinha coleção. Após muitos momentos delicados na atenção ao patriarca, que estava com os dias contados segundo o médico da família, a irmã voltou-se ao aposento dos livros e notou que o romancista permanecia na mesma posição, com a publicação junto dele.

Manuscrito encontrado em 2015 na Biblioteca Nacional, no Rio, de uma crônica inédita do autor: “Portugueses na África”.

Era um fim de tarde chuvoso do primeiro dia de novembro. Não era só um resfriado, Lima provavelmente teve uma pneumonia que, associada aos problemas cardíacos, resultou num infarto fulminante. O escritor faleceu no aconchego de sua Limana, rodeado da matéria que constituía a sua obra. A morte “o abraçou”, como destaca Lilia Schwarcz, “do mesmo jeito que fizera com Gonzaga de Sá; veio rápida, súbita e sorrateira […] o levou pela mão, e seu corpo inerte conservou uma revista literária no colo”.

Numa incrível coincidência, Lima se foi no Dia de Todos os Santos, no bairro de Todos os Santos. O enterro se deu na tarde do dia seguinte, no Cemitério São João Batista, em Botafogo, bairro que o autor detestava. Não quis fazer dos subúrbios a sua última morada, talvez pressentisse algum de seus insólitos eventos narrados em crônicas e contos sobre os cortejos pelas esburacadas ruas da região. Para completar a tristeza e a tragédia familiar, em 3 de novembro, 48 horas após o funeral, morria João Henriques, o pai do romancista, ao que contam, depois de perguntar pelo filho.

E que fim levou a Limana?

Sem ter o dono para zelar por ela, coube aos irmãos a decisão sobre o futuro da coleção. Com as custas de dois enterros sucessivos, o lado financeiro falou mais alto. O grosso da biblioteca foi doado à pessoa que garantiu as cerimônias e todos os encargos funerais. O novo titular, sem saber o que fazer com todos aqueles livros, depositou-os numa casa de campo. Sem os devidos cuidados, e com a ação do tempo, os raros exemplares infelizmente se perderam. Não foi o fogo que os consumiu, como no caso de Fausto Carregal, mas algo ainda mais assustador: o descaso.

Algo se salvou daquele espaço tão íntimo e caro ao seu criador. Os manuscritos, as cartas e outros documentos pessoais foram preservados por Evangelina. Parte deles foi vendida à Biblioteca Nacional e parte ficou como agradecimento ao biógrafo Francisco de Assis Barbosa, que revitalizou a obra de Lima Barreto nos anos 1950. Após a morte de Francisco de Assis, os escritos foram doados ao grande bibliófilo José Mindlin e hoje fazem parte da Brasiliana Guita e José Mindlin, criada em 2005, na Universidade de São Paulo.

Lima Barreto e o Bairro de Todos os Santos

O bairro de Todos os Santos, suas ladeiras, seus bares, sua estação ferroviária (desativada atualmente), muito dessa geografia suburbana está presente na obra de Lima Barreto. No romance Clara dos Anjos, por exemplo, boa parte dos personagens mora nas redondezas; na crônica Os enterros de Inhaúma, o escritor narra de modo cômico o movimento na Rua José Bonifácio, com seus os cortejos fúnebres prejudicados pelo péssimo pavimento da via.

Antes de residir na Rua Major Mascarenhas, Lima morou no número 76 da Rua Boa Vista (hoje Rua Elisa de Albuquerque). Foi em 1903, logo após o surto do pai, João Henriques, quando Lima largou o curso na Escola Politécnica para cuidar da família. Nessa época, a casa onde habitavam ficou conhecida pelos vizinhos como “a casa do louco”, por conta dos gritos e delírios vindos do quarto do patriarca.

Casa na rua Boa Vista, conhecida como “casa do louco”

A Rua Major Mascarenhas é uma pequena via entre o NorteShopping e o estádio Engenhão. Há estudos que indicam que a Vila Quilombo, a primeira casa no logradouro, tinha por localização o número 32, e não o 42. Neste endereço, encontra-se hoje um condomínio de apartamentos. O professor André Luiz dos Santos tentou preservar o imóvel por meio de tombamento, mas não foi atendido. As outras edificações em que Lima residiu pelo bairro foram parcial ou totalmente modificadas.

No livro A vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa há um apêndice com a relação integral do inventário da Limana feito por Lima Barreto em 01/09/1917.

Lima e João Henriques estão enterrados no jazigo 8.024, na quadra 14, no Cemitério São João Batista, no bairro do Botafogo.

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